Pedro Guilherme Moreira's Blog, page 11
January 27, 2016
Alpendorada, Alpendurada, portanto AlpendOurada
Vê-se na foto, que aliás é uma parte muito pequena das três turmas que me devolveram em atenção, escuta e entendimento a minha dedicação. Com efeito, mais uma vez, a foto ia sendo esquecida. Só nos lembramos no momento dos despojos da sessão. Mas veio a tempo. Verdade que os nossos sorrisos, sendo sinceros, são plásticos, e que ao fim de algumas fotos, como disse uma das meninas, com piada, a cara já doesse.Mas o que se vê na foto é a luz de AlpendOurada. A luz de fora e a luz de dentro. À centésima escola ainda é bom poder replicar e reiterar a evidência: há sempre coisas novas, há sempre coisas diferentes, e, quando denominamos as sessões por eles, pelas maravilhosas pessoas mais jovens que somos levados a contaminar e influenciar, nada pode correr mal, assim haja tempo, mesmo no meio do barulho, de ver os que querem ser vistos e de descobrir os que não querem, pelo menos para os ouvir. E isto também se aplica às professoras que aparecem, cujo nome, por não me lembrar, vou ser condenado a saber - sei que a da ponta era a de português, a Emília, mas a de Matemática, de cócoras, em pose de futebolista (pena não termos aprofundado a utilidade da Matemática na literatura!), não, nem a do meio, que era uma ternura. A menina do centro, e vocês sabem logo qual é a menina do centro, mesmo sem medir com uma régua, foi também a menina do centro na sessão e, por falarmos de uma pessoa de qualidade superior, sabe também, ela própria, que por já ser excepcional aos dezasseis anos, não é melhor do que os outros, os que não são tanto como ela: porque nós somos demasiado complexos para sermos definidos assim, e é esta, sempre, a mensagem que lhes levo.Uma menina que seja má aluna e pouco culta pode ser o pilar, em casa, de uma mãe doente, de quem trata e com quem consome todas as suas forças, provavelmente faz o mesmo a vizinhas e até apoia no lar da vila. E não será esta tão ou mais valorosa do que a menina do centro? É, mas a menina do centro é fenomenal e chama-se Ana Catarina Alves. Aquilo que ela nos deu de novo não é muito comum: a forma como está atenta às etapas da vida e as vai processando em termos práticos e até filosóficos e intelectuais. A visão da morte. Neste passo, custa-me não ser imenso. Verdade que - e ontem foi-me dado o que peço sempre: tempo -, quando tenho tempo, observo a postura corporal e o olhar de quase todos, para perceber se alguém quer dizer ou mostrar alguma coisa que não disse ou mostrou antes, e não diz ou não mostra por falta de coragem ou timidez, que é normal e até recomendável, por ser um exercício de humildade. Por isso, custa-me a ideia de ter partido e que algum menino ou menina não tenha tido coragem de dizer ou mostrar o que há tanto tempo queria dizer ou mostrar. Mas uma coisa que eles me devolveram, ontem, foi a gratidão, e fizeram-no de forma expressa, com as dedicatórias que deixaram escritas ou com a atitude, com o olhar de agradecimento: disseram, de forma expressa, que o que fiz, escrevi e disse, foi importante para eles. Que se sentiram vistos onde eram menos visíveis. Ontem de manhã não houve fugas nem colegas que, para mostrar coragem e rebeldia, questionaram os que colaboraram comigo. Ontem o meu pedido foi totalmente atendido: todos se consideraram parte daquilo, todos se consideraram alvo dos mimos e dos aforismos e dos princípios, mesmo os que não viram o seu nome mencionado. Por isso é que Ana Catarina serve, por exemplo, a qualquer Patrícia ou Paula ou Milene. Que o Zé Lemos pode ser o Henrique, Nuno ou José Pedro ou Leandro ou Marco. Que Diana pode ser Anabela, ou Margarida pode ser Fátima, que Sara pode ser Ana Isabel, que Samuel pode ser Ricardo. Mas os que vieram para junto de mim, os que o fizeram expressamente, dirão se valeu a pena. A Fatinha na orquestra de Berlim a tocar a primeira nota na sua flauta transversal. A Pereirinha e o elogio da insegurança ou da fragilidade. A tia Lúcia a aterrar de helicóptero no H do São João para o primeiro dia como enfermeira. A Rosário e a aprendizagem da imperfeição. A Inês que canta e quase ninguém sabia. A Ana Lopes, o closet e a espessura e o poder das palavras (e da pessoa). A Fátima Ferreira e a visibilidade e força dos invisíveis. A Inês Bouça e o nosso Prémio Nobel duplo. A Inês Sousa e os dentistas e o cinema e a Kika. A Joana Vieira e a veterinária da Common Wealth. A Bebiana do cantinho e as histórias secretas e poderosas. A Mariana Luís, oh, a discretíssima Mariana Luís e a beleza e a subtileza e o tamanho interior. A Elisabete homónima e as férias de Verão com ele dentro. A Mariana Correira Carneiro e o Einaudi e o Forrest Gump e o Johnny Depp e avó "francesa". A Rita Caetano e o abismo do futuro. O Zé Lemos, o Tino de Fandinhães, a sensibilidade, a ambição política e o sono da avó, que passou a ser a avó de todos nós. Depois disto tudo, claro, devíamos colher os tais despojos da sessão todos juntos. Mas não é assim. Abre-se o Douro e o Tâmega e já não há ninguém. E, mesmo que volte, mesmo que fique, eu já estou entre-rios.
PG-M 2016
PS: à sessão da tarde, dos 7ºs anos, e sendo uma estreia, dedico este Post Scriptum, e é deliberadamente um Post Scriptum. Serviu-me de profunda reflexão e far-me-á retirar lições e afinar o modelo. Não que tenha sido inútil. Retenho o olhar daquela professora loira de que não retive o nome e que tinha um grupo fantástico bem juntinho a ela, que veio e partiu sem que tivéssemos tempo de ser elemento uns dos outros. Lembro-me das meninas que sobreviveram ao barulho dos colegas do 7º e que até levaram mais livros do que as três notáveis turmas da parte da manhã (do 11º). Lembro-me do professor e dos entusiasmadíssimos meninos do 5º ano, que apareceram e ficaram de forma ordeira e me cercaram para autógrafos em cartolinas coloridas que contam emoldurar e pendurar no quarto, imaginem a honra. A minha reflexão não vai no sentido de exlcuir os 7ºs anos das sessões, poque são, tipificadamente, impossíveis de controlar. Mas o que é isto, meus senhores? Chegámos à Madeira? Da minha reflexão resulta que só deve estar quem quer, mesmo que seja pequenino. Que eles se apercebam de como a falta de ordem pode ter consequências. Eu gabo-me de conseguir controlar todas as sessões escolares, e, como disse, esta era a centésima escola. Nunca tal tinha acontecido (o barulho e a desordem, porque a sessão até se fez e nem correu mal de todo). Gosto e dou espaço ao burburinho que se segue a questões que geram debate entre eles: é positivo. O que me custa é a desordem e o desinteresse que impede os que são ordeiros, interessados e querem mesmo estar ali de desfrutar, que foi, aliás, o que aconteceu no final: ficaram os que queriam e desfrutaram. Defendo que, não por castigo, mas por selecção lógica, o sistema seja oportunidade-abdicação. Ou seja, depois de terem sido preparados pelos professores em aula, de pesquisarem e de tomarem contacto com a literatura, a imagem e o curricculum do autor presente, depois de a sessão ter início e eles peceberem o que estamos ali para lhes dar, se ainda assim não for possível penetrar nas epidermes de alguns, que abidquem, que lhes seja dado espaço para sair. Esses poderão ser arrumadores de carros, se for isso que escolherem - aliás, há muitas profissões relevantes e úteis que, não dispensando a cultura, acabam por se conformar com os que a rejeitam a vida toda. Uma coisa deve ficar claro: porque nunca tinha acontecido, não quer dizer que a culpa seja da Escola. Pareceu-me claro que a Escola é boa, tem mesmo muita qualidade. A culpa é minha, só minha. Não acontecerá de novo. Não nas próximas cem. O acidental e o negativo são parte da experiência. Mas nem sequer foi negativo o resultado, bem pelo contrário, como expressei aí em cima. Além da doce e empenhada professora loira e da sua turma e do fantástico professor do quinto ano e dos seus fantásticos meninos, destaco as meninas resistentes, a Marina Monteiro, Sofia Bouça e Maria Vieira . Uma palavra especial para a Alexandra: estás bem a tempo, gostei de ti: tu pensas que estás nas margens, mas és inteligente, estás bem dentro e contas. Eu vi-te bem. Luta por ti, pequenita. Desculpem se esqueci de alguma. Obrigado a todos. - Ah, e a delegada Paula Chaves, a minha estreia com apoio, foi incansável e inexcedível! Obrigado :)
Published on January 27, 2016 05:50
January 13, 2016
tenho de to explicar no título - nem chamar poema a isto te fazia justiça, por isso calo-me e digo-te apenas, de um forma definitiva:
Published on January 13, 2016 08:26
January 2, 2016
ManelAAzevedo
Não há nada de deslocado no tempo, sequer o próprio tempo, quando o que o move é o corpo, nem há nada de deslocado no pensamento, sequer o próprio pensamento, quando o que o move é o mesmo corpo, muito menos há o que quer que seja de desconexo no corpo quando ele se move apesar do tempo e do pensamento.A culpa é da vontade.
Uma ideia me ocorreu quando o corpo fervia de pulsão para passar ao ecrã pelas teclas o que, provavelmente, reside nas profundezas da alma de quase todos os seres humanos menos dos escritores, que dificilmente são humanos e provavelmente não são seres, talvez sejam entidades diabólicas amaldiçoadas pela inquietação de nomear o que pertence ao domínio do silêncio, e talvez a mais sublime literatura seja aquela que diz tão pouco que o não desaquieta, ao silêncio, pelo menos a literatura que usa um braço para entrar nas cabeças, nos corpos e no intermúndio, ou seja, os corpos e o espaço entre eles.
A ideia ocorreu-me nesta semana de intenso convívio familiar em que estamos bem simplesmente calados ou no conforto de família e amigos, olhando em volta sem grande agitação cerebral: eu gostava de vos dizer, irmãos, primos, filhos, pais, mães, tios, o tanto que quero escrever sobre tantas coisas e pessoas, mas o mais certo é vocês estarem-se marimbando
(na minha mente nortenha estava outra expressão, mas uma cura intensa de "Dowton Abbey" fez-me ver que o tempero quente do nortenho pode ser servido com certa elegância, e que uma coisa é ter orgulho no verbos largos, que são do bem, não do mal, outra é vulgarizá-los, pelo que evitei usar a expressão "estarem-se a cagar" ou o "vão-se foder", que mais à frente também omitirei )
o mais certo é vocês estarem-se marimbando para tudo o que eu queira dizer sobre o que quero escrever. E tenho aquela ideia de que os que me estão mais próximos só me descobrirão morto. Talvez seja por isso que tantos escritores se matam: quando têm produção suficiente para a poder mostrar à família, têm de se matar para serem lidos em profundidade dentro de casa. Para a família, o gajo que escreve é apenas mais um. Se já não é normal ouvirmo-nos, realmente, em família, e daí o espaço para os amigos e para as redes sociais, menos normal é apreciarmos os ofícios uns dos outros, a não ser quando coincide com o nosso ou nos interessa por qualquer razão operacional. É normal que eles já se estejam todos marimbando para o que eu escrevo. Que fará para o que eu quero escrever.
E foi assim, com este pensamento suicida, que me encontrei no canto mais remoto da sala grande de ano novo, empenhado em não ler e em parar de consultar as redes sociais e disponibilizar-me para alguma actividade colectiva como ver um mau filme na televisão, que é uma saudável tradição. Como o comando da televisão estava em mãos epilépticas e não havia maneira de a proposta televisiva estabilizar, tomei nas mãos uma "shotgun" Nerf que estava em cima do aparador e experimentei alguns disparos, primeiro com alter-alvos humanos, que não acharam grande piada, depois apontando-a ao céu da boca e à própria têmpora direita. Se aquilo magoa moderadamente à distância, é um descarga de adrenalina sobre o próprio corpo. E aí surgiu o pensamento. Vocês não querem saber dos meus projectos de escrita e têm a razão toda.
A culpa não é do vento
se a minha voz se calar
Então, num acesso de tédio que é raro, mas saboroso, quando ocorre comigo, tomei outra coisa nas mãos, que também estava pelo aparador, pousada ao acaso: a edição dos espectáculos ao vivo dos "Humanos", um grupo formado em meados da primeira década deste terceiro milénio para celebrar o génio do António Variações. Eu tinha sido comprador do cd de estúdio de 2004 e estive no concerto ao vivo no Coliseu do Porto do dia 4 de Julho de 2005, que foi um de três concertos únicos desta superbanda. Aquilo interessava-me. Interessava-me voltar a ouvir versões que me haviam arrebatado ao vivo e que eu nunca mais voltara a ouvir. Na altura, arranjei apenas dois bilhetes para a plateia, mas, como o meu filho, prestes a fazer apenas 6 anos, era o fã número um da banda, deixei-o ir com a mãe. Mais tarde, consegui um bilhete para os galinheiros, e estive nessa estranha posição de observar, quase na vertical, "os meus", e eles a ter de olhar para o "céu" para ver o pai, prenúncio destas ideias suicidas. Isso também me permitiu ver o concerto à minha maneira, ou seja, foi profundamente intimista. E, embora os cds e os dvds sejam, cada vez mais, retro, encontrei um computador para os ver e ouvir (é um cd áudio e dois dvd - dos concertos nos Coliseus e do concerto no festival do sudoeste, além de um documentário onde descobri algo de notável, que já vos conto).
Claro que o que mais me perturbou e arrebatou foi a senhora que dá título a este post.A Manela-Azevedo-dos-Clã, como quase toda a gente a trata, foi minha colega no curso de Direito 88-93, na Universidade de Coimbra. Mal me lembro dela, como ela mal se deve lembrar de mim. Sei que era pequenina e discreta, sempre afastada dos olhares primários dos adolescentes tardios que começam um curso universitário. Era, por isso, mais fácil eu não a admirar e anunciar aos amigos, como aliás faço, sempre que posso, que a "Manela-Azevedo
-dos-Clã" foi minha colega de curso, e aí se esgotaria a "Manela", numa abordagem egocêntrica deste que vos escreve. A "Manela" sou eu, eu é que sou importante.
Acontece que aquela menina discreta dos Gerais da Faculdade de Direito era agora uma mulher brilhante com uma capacidade ímpar, não só de dominar o espaço do palco e a emoção da plateia, mas de se comover com o corpo todo. Não só de dominar o espaço do palco, mas o intermúndio, o espaço entre os corpos. A culpa é da vontade. Que, no caso da Manela, nem com a idade morre. Além de profundamente sensual na reacção à música, quase nos arranca a pele na forma como no-la mostra, como usa a voz toda e a faz sumir e reassomar, como é humilde e, ao mesmo tempo, olímpica e intrépida, insolente e audaciosa. A forma como ela se moveu e interpretou, nessa noite de 4 de Julho de 2005, "A culpa é da vontade", dançando "visceralmente" (não há palavra melhor) no mesmo lugar e afastando e aproximando de si o microfone sem que a base do suporte saísse do lugar, voltando e baixando a cabeça em veneração à música, mas o torso sempre voltado para o público, fez-me perder o ar e pensar que afinal era possível, que a entidade-intérprete era tão ou mais diabólica como ou do que a entidade-escrevente (que, contudo, raramente se exibe fisicamente, embora seja cada vez mais requisitada para tal). O cabelo curto e as linhas gregas da "Manela", a forma como, sendo mãe, move naturalmente e com uma leveza extrema o próprio corpo, faz da experiência de a ver em palco uma experiência religiosa.
Não é quase-religosa. É religiosa mesmo.
A "Manela" é, para mim, a melhor intérprete do Pop-Rock português dos últimos vinte anos. Vê-la deste lugar e ter chegado a este ponto é mais uma lição de vida. É evidente que as coisas são mesmo assim, que nós não iremos hoje a correr para ninguém a quem amanhã, no funeral, pediremos o impossível, ou seja, que não nos morra e que viva mais um dia para que o possamos abraçar ainda quente. A experiência da perda é fundamental, às vezes endógena, à valorização do perdido. Há uma existência vital na morte - como há uma evidência mortal na vida. Mas a culpa aparece quando nos construímos a vísceras, como aquele ou aquela que admiramos e, depois de termos estado tão perto, nos tornamos distantes e pouco acessíveis ou, pior ainda, indiferentes. Fica o lamento pelo que não se conversou, debateu, viveu, bebeu, ouviu. Está bem que os nossos se estejam marimbando para o que fazemos e construimos para nós à margem da vida deles. Já não está bem que nós, os de vísceras, nos percamos constantemente uns dos outros.
E a vida, a estética e até o tempo dão-nos belas lições.No final do documentário sobre os concertos dos Humanos aparecem imagens do delírio no Coliseu do Porto. A câmara volta-se para o lado direito da plateia, esquerdo de quem olha a partir do palco. No colo de uma bonita rapariga que eu identifico atónito - porque era a minha mulher - está um rapaz de quase seis anitos que eu e ela fizemos na condição de voltarmos ao nada para ele ser tudo. Uma inesperada e intensa viagem no tempo, já nem tanto a nostalgia dos Humanos. Depois de a ManelAAzevedo me ter relembrado a comoção de ver como é genial a "Manela-Azevedo-dos-Clã", ali, em frente à Manela-de-pandeireta-a-bater-ritmadamente-na-anca, o sentido da minha vida. Lembro-me que a Manela interpretou o "Anjo da Guarda", que a minha miúda me disse, no final do concerto, ter de lhe arranjar:
"Tens de me arranjar esta".
Está aqui. Dez anos depois, mais uns trocos.O rapazito de quase seis anitos, vestido com umas jardineiras vermelhas, é hoje conhecido como o rapaz voador e está do meu tamanho. A minha mulher olha brevemente para os galinheiros. Nunca é tarde para escrever isto, muito menos para exaltar a ManelAAzevedo dos Gerais. Embora o que sempre tenha sentido por todos eles nunca tenham sido coisas confusas. Nem problemas de expressão.Sobre ela, sem mais palavras, eis:
PG-M 2015
Published on January 02, 2016 20:08
December 27, 2015
Galeguita
(letra de unha cançom sem música)
conheci unha galega
binha em gestos de cetim
e um bestido de jasmim
com um botom mesm´ó centro
e o mar todo por dentro.
tinha rochas de tristeza
que passabam no olhar
"e atopaban a beleza"
d’um sorriso a naufragar
nom me chores, Galeguita,
traz a alma e o fole em pranto
canta encanto Galeguita,
canta o meu país aos pés
na metade do que és
nunca ficarás sozinha
Galeguita
e se nos olhos penedos
e no coraçom degredos
pinta as unhas de um berniz
que traz frases do passado
nom me chores, Galeguita,
traz a alma e o fole em pranto
canta encanto Galeguita,
canta o meu país aos pés
na metade do que és
nunca ficarás sozinha
Galeguita
PG-M 2012
fonte da foto
Published on December 27, 2015 02:18
December 18, 2015
Conto invertido de natal - Parte VI, VII e VIII (final)
(não comece pelo meio: anterior aqui)
VI - O ÚLTIMO NATAL
Entre o segundo e o último natal, Otnas, Oinotna e Narce
juntaram-se às carrinhas de apoio e foi só
o que passaram a fazer às vésperas,
e o que pensou fazer Airf,
em vez de em casa cultivar a solidão e o
desprezo por todos os que trilham a linha
média das coisas
Então Airf saiu à rua pela primeira vez em três
anos, e dirigiu-se ao bairro sem casa de onde
saíra Narce, e o que viu foi muito estranho,
um grande cartaz que se replicava pelos
lugares onde costumavam comer e dormir
as pessoas sem casa, e dizia assim
"hoje somos príncipes sob telha no Palácio X"
e dizia o nome do palácio,
onde, por acaso, Airf costumava ir a exposições
e conferências e a um ou outro jantar formal
da companhia que a empregava,
e caminhou para lá, abraçando-se a si própria
para afastar o frio
mas não o azedo na boca nem
a incurável tristeza
À porta do Palácio X paravam carruagens
e um mordomo encartado anunciava
os títulos e as pessoas que saíam e
entravam para o baile de gala real
como se lia na faixa de vinil gigante
que tapava a fachada,
"I Baile de Gala Real de Natal",
e não dizia em lado nenhum
que era das pessoas sem casa,
mas era; a Airf falhava uma
certa sensibilidade, e então
deixou que a raiva tomasse
conta de um lado de si que ela
pensava ser um modelo de altruísmo,
mas não passava de um espelho liminar
onde todos os teóricos vivem, como a
Alice num país sem maravilhas,
onde a música é sempre a menos ouvida
e o livro sempre o menos lido
e as pessoas sempre as menos parecidas
com as outras
Primeiro Airf tentou entrar no Palácio X
e foi vedada pela segurança
Depois Airf dirigiu-se à primeira princesa
e tentou arrancar-lhe a peruca
e foi vedada pelo príncipe,
a saber, um homem obeso,
que ouve tudo o que Airf diz
quando lhes tenta destruir
o sonho, e lhe agarra o pulso e diz
"Menina,
ainda ontem eu era apenas
um homem obeso que ouve tudo o que os outros dizem,tinha apenas uma camisa azul às riscas com os botões
rebentados em baixo e a barriga à mostra
apesar do frio, e cedia sempre refeição
aos que chegavam de novo e dormia
na soleira do Banco Z até o pessoal me
enxotar às sete da manhã, mas, sabe,
nas nossas soleiras não se conversa
sonha-se, e eu,
que me chamo Osso,
deixei-me sonhar e hoje vou de
white tie cortado à medida e trago ao baile
de gala real a princesa Emof, que até ontem
era só uma mulher magra com uma tristeza
incurável e vários trapos
sofisticados a sorver
a sopa ruidosamente
(mas sabe-lhe bem comer a sopa assim)
e hoje vem formal, de brinco de camafeu
e clutch
Airf, envergonhada,
deixa-se cair na escadaria e
Emof passa por cima, cobrindo-lhe
o corpo e o rosto com cetim
azul
Narce, o mordomo,
aponta para um homem cego
com óculos escuros azuis
marca Ray-Ban,
trajado de gala, nomeadamente
casaca em vermelho veneziano com paramentos
brancos do regimento de infantaria de sua
majestade, mas com um rádio de pilhas
nas mãos, que lhe pergunta
- Há rabanadas no baile?
(certamente, sua senhoria! - e faz-lhe
uma vénia) e o cego
Zedicul ampara o seu par e diz- hoje não há notícias,
mas pela mão traz
a mulher sem dentes e cabelo vermelho
que ganhara uns dentes novos
num patrocinador
e foi à televisão mostrar o antes e o depois
e diz discretamente ao ouvido de Narce
- adoro cabeças de bacalhau
(tê-las-á, Milady, tê-las-á),
e também gosto mais
da minha saia em patchworkassim alinhavada: um quadrado com um menino sentado à carteira da escola cose-se a um quadrado com dois meninos de pé à porta da escola e este cose-se a um quadrado com um menino sentado à carteira da escola e faz o padrão que se repetiu pelas colchas em certos anos de certas modas,
mas chamo-me Arugrama e hoje sou rainha
e trajo uma estilista conhecidacujo nome direi a todo orepórter, vestido longo salmãocom brilhos e pedrarias, luvas esapatos de salto alto forrado a tecidocujo andar treinei com as noivas desanto antónio, colar de pérolassonhei a vida toda comeste colar de pérolas
e assim por diante entrarão no baile de gala trintapares de príncipes e princesas ou reis e rainhasAirf quis testemunhar a beleza,mas o mordomo não tinha ordens ee Otnas achou-aapagada, mesmo cinzenta,para abrir a excepçãoOinotna, contudo, não conseguiraconvencer Ana a vir e veio eleà escadaria tomar Airfe acender-lhe os olhos,habilidade que tomarade uma menina de cadeiano segundo natalsaiu no pasquim de vinte e seis,porque o baile só terminou depois dofecho da edição de natal, que no I Baile Realde Natal se dançoutoda a noite e com propriedademúsica de reis
nomeadamente todos os clichés de baile que Airfteria condenado horas antes, mas era vê-laevoluindo no soalho imperial do baile realconduzida por Oinotna ao Danúbio Azulna verdade, Airf,estava tão macilenta quequase não tocava no chãoou seria elegante, na verdadenão levara vestido apropriadoe era a mais pobre da festa,e eis que Arugrama e Emof lhe cederamduas peças de estilo que a cobrirampara sobreviver, depois de Strauss,à Valsa do Imperador, de Rieu,que fez todos rir e crescer e no fimeram mesmo príncipes e princesas,reis e rainhas,até Airf,a quem Oinotna contou que,pela primeira vez em três anos,o peito tinha menos dor e nãosentia os círculos das pálpebrascomo cursos agudos de sangueabertos a navalha
VII - O ÚLTIMO FIM
Deve o conto abrir, porque é invertido, e não
fechar, como o texto clássico. Abrir como a vida,
que às vezes é como nos contos, fechada e
resolvida, e outras não é;
Nem Osso, nem Emof, nem Zedicul, nem Arugrama,
saíram do bairro sem casa,
mas nas soleiras deles continua a sonhar-se mais
e a conversar menos,
até porque casarão aos pares,
eles com elas,
e os bailes reais do bairro sem casa
se repetirão pelas eras;
Narce, sim, saiu, mas ainda não tem emprego,
tem esperança, e Lós também,foram morar para o topojunto ao chão,porque Aleb lhe explicouporquê;Oinotna já não sente culpa por expressaras emoções positivas, nem obrigação decultivar as negativas, mas,por muito que isso fosse querido,não podemos mentir no fim deste conto que se abreao infinito,Ana, cujo nome está ao contrário,abandonou Oinotna e não esteve em mais lado nenhumdeste conto, ou talvez numsó, que já recordamos;No primeiro Natal, Ana era felizcom Azeralc, mas no seguintecomeçou a devolver Azeralcà terra, arranhou Oinotnae não saiu de junto da camaarticulada da enfermariao natal todo;deu muitos beijinhos à menina,que ainda se riu a ver televisãoe a ver os palhaços e as festascom confetis e a sentir o mimodos homens e mulheres de sorte;mas, como nem todas as tragédias têm de ser tragédiaso tempo todo, também nem sempre é possível seguirem frente; Ana não seguiu.Quando Azeralc lhe disse que estava tão cansadaera dia de reis, Airf diria que a estrela de belém,como corpo de crianças sem sorte,é um insuportável cliché,mas este conto fechará a transbordar dessamatéria, a dos homens e das estrelas de quefalou Herberto,Azeralc estava sentada na cama a receber um mimode reis; quando Ana lhe estava a explicaro que ela podia fazer com uma lanternade leds com uma bateria extraordináriaa estrela de belém, no enfiamento da janelada enfermaria, quase a cegou, porqueacabara de incorporarAzeralc; quando Anaolhou para a filha,viu-a dormir sem sinais dedesfalecimento ou apneia;quando percebeu a morte,ela sim, desfaleceu,e, durante os natais seguintes,onde tudo para ela foi insuportável esem recuperação possível,Anasentiu a culpa de cada minuto queperdeu de Azeralc, cada momentoao acordar, cada segundo a mais quedemorou a responder às chamadasda filha, cada momento que passoua fumar na varanda dos fumadoresda enfermaria, e isto não era só nosnatais, era sempre;então morreu Ana"talvez por delicadeza" ou deuma incurável tristeza
VIII - EXÓRDIOE este conto de natal é invertido porque acaba com uma
inversão de vida, felicidade e até de tristeza,no sentido mais profundo das estrelas, cuja substância é a mesmados homens e da
própria tristeza, que,
como todos os sentimentos maiores,
podem bem estar acima daqueles;
e se não escondemos as crianças sem sorte
é porque elas, ao serem a maior de todas as
perdas, as simbolizam a todas,
todos os que já partiram e voltam à mesa de
natal, ou só voltam para os que não a querem
fazer e sobrevivem a todas as festas com esta
tristeza incurável
não há nada de desumano no incurável,
talvez só na consciência da morte, que é talvez
a mais humana de todas as manifestações;
Oinotna guardou o arranhão de Ana
como marca de uma eternidade
não física
A finitude do corpo e a infinitude
do pensamento e do
sentimento. Ou a rotação e a translação.
Sabemos que o nosso corpo acaba. Não sabemos
se o pensamento acaba. Sabemos que o sentimento
pode acabar ou propagar-se entre corpos e mesmo
para lá deles. Sabemos que o pensamento e o sentimento
transcendem a morte. O corpo não. É por isso que tentar
encolher o pensamento e o sentimento no espaço limitado
dos corpos será sempre mal sucedido. O que pensamos e
sentimos, parecendo contido nas nossas paredes,
vai muito para lá delas. O natal é um esforço de consciência
colectiva, todos os corações de um certo mundo
centrados no transtorno do egoísmo travestido
temporariamente de altruísmo. Um travão na rotação,
para que o pai natal cumpra, uma flexão na translação
para que o planeta desalije o peso da ilusão.
Os corpos, que acabam, não são reais. Voltam os mortos
mais queridos e o pensamento vai descendo e subindo
montanhas russas. Há abraços em todas as suas formas.
Alguns inimigos cessam. Os amigos prosseguem,
menos ignorados. Há mais luz, há mais acessórios,
são flagradas todas as manifestações do supérfluo.
Até chegar um momento em que todos mirram
e o mundo dobra reduzindo o espaço entre as casas.
Pairará sobre as mesas de natal, sobre o bacalhau,
sobre o molho fervido, sobre o vinho quente com canela
e açúcar, um só sentimento. Que é um calor raro
ao centro de peitos potencialmente
infinitos. Diz-se bom natal e a estrada segue,
vagarosa, no regresso a cada planeta.
P R I N C Í P I O
Personagens e respectivos Actores,
por ordem de entrada em cena:
Mark Kozelek - Mark Kozelek
Dickens - Dickens
Herberto Helder - Herberto
Oinotna - António
Ana - Ana
Azeralc - Clareza
Ojna - Anjo
James Earl Jones - James Earl Jones
Nat King Cole - Natalie Cole
David Prowse - Darth Vader
Airf - Fria
Shhhhhhhhhh! - Enfermeira
Otnas - Santo
Narce Oizav - Ecrã Vazio
Emof - Fome
Zedicul - Lucidez (Sr)
Arugrama - Amargura
Osso - Osso
Menina dos olhos acesos - Menina dos olhos acesos
Lós - Sol (menina)
Aleb - Bela
Alice no país sem maravilhas - Alice
PG-M 2015
VI - O ÚLTIMO NATAL
Entre o segundo e o último natal, Otnas, Oinotna e Narce
juntaram-se às carrinhas de apoio e foi só
o que passaram a fazer às vésperas,
e o que pensou fazer Airf,
em vez de em casa cultivar a solidão e o
desprezo por todos os que trilham a linha
média das coisas
Então Airf saiu à rua pela primeira vez em três
anos, e dirigiu-se ao bairro sem casa de onde
saíra Narce, e o que viu foi muito estranho,
um grande cartaz que se replicava pelos
lugares onde costumavam comer e dormir
as pessoas sem casa, e dizia assim
"hoje somos príncipes sob telha no Palácio X"
e dizia o nome do palácio,
onde, por acaso, Airf costumava ir a exposições
e conferências e a um ou outro jantar formal
da companhia que a empregava,
e caminhou para lá, abraçando-se a si própria
para afastar o frio
mas não o azedo na boca nem
a incurável tristeza
À porta do Palácio X paravam carruagens
e um mordomo encartado anunciava
os títulos e as pessoas que saíam e
entravam para o baile de gala real
como se lia na faixa de vinil gigante
que tapava a fachada,
"I Baile de Gala Real de Natal",
e não dizia em lado nenhum
que era das pessoas sem casa,
mas era; a Airf falhava uma
certa sensibilidade, e então
deixou que a raiva tomasse
conta de um lado de si que ela
pensava ser um modelo de altruísmo,
mas não passava de um espelho liminar
onde todos os teóricos vivem, como a
Alice num país sem maravilhas,
onde a música é sempre a menos ouvida
e o livro sempre o menos lido
e as pessoas sempre as menos parecidas
com as outras
Primeiro Airf tentou entrar no Palácio X
e foi vedada pela segurança
Depois Airf dirigiu-se à primeira princesa
e tentou arrancar-lhe a peruca
e foi vedada pelo príncipe,
a saber, um homem obeso,
que ouve tudo o que Airf diz
quando lhes tenta destruir
o sonho, e lhe agarra o pulso e diz
"Menina,
ainda ontem eu era apenas
um homem obeso que ouve tudo o que os outros dizem,tinha apenas uma camisa azul às riscas com os botões
rebentados em baixo e a barriga à mostra
apesar do frio, e cedia sempre refeição
aos que chegavam de novo e dormia
na soleira do Banco Z até o pessoal me
enxotar às sete da manhã, mas, sabe,
nas nossas soleiras não se conversa
sonha-se, e eu,
que me chamo Osso,
deixei-me sonhar e hoje vou de
white tie cortado à medida e trago ao baile
de gala real a princesa Emof, que até ontem
era só uma mulher magra com uma tristeza
incurável e vários trapos
sofisticados a sorver
a sopa ruidosamente
(mas sabe-lhe bem comer a sopa assim)
e hoje vem formal, de brinco de camafeu
e clutch
Airf, envergonhada,
deixa-se cair na escadaria e
Emof passa por cima, cobrindo-lhe
o corpo e o rosto com cetim
azul
Narce, o mordomo,
aponta para um homem cego
com óculos escuros azuis
marca Ray-Ban,
trajado de gala, nomeadamente
casaca em vermelho veneziano com paramentos
brancos do regimento de infantaria de sua
majestade, mas com um rádio de pilhas
nas mãos, que lhe pergunta
- Há rabanadas no baile?
(certamente, sua senhoria! - e faz-lhe
uma vénia) e o cego
Zedicul ampara o seu par e diz- hoje não há notícias,
mas pela mão traz
a mulher sem dentes e cabelo vermelho
que ganhara uns dentes novos
num patrocinador
e foi à televisão mostrar o antes e o depois
e diz discretamente ao ouvido de Narce
- adoro cabeças de bacalhau
(tê-las-á, Milady, tê-las-á),
e também gosto mais
da minha saia em patchworkassim alinhavada: um quadrado com um menino sentado à carteira da escola cose-se a um quadrado com dois meninos de pé à porta da escola e este cose-se a um quadrado com um menino sentado à carteira da escola e faz o padrão que se repetiu pelas colchas em certos anos de certas modas,
mas chamo-me Arugrama e hoje sou rainha
e trajo uma estilista conhecidacujo nome direi a todo orepórter, vestido longo salmãocom brilhos e pedrarias, luvas esapatos de salto alto forrado a tecidocujo andar treinei com as noivas desanto antónio, colar de pérolassonhei a vida toda comeste colar de pérolas
e assim por diante entrarão no baile de gala trintapares de príncipes e princesas ou reis e rainhasAirf quis testemunhar a beleza,mas o mordomo não tinha ordens ee Otnas achou-aapagada, mesmo cinzenta,para abrir a excepçãoOinotna, contudo, não conseguiraconvencer Ana a vir e veio eleà escadaria tomar Airfe acender-lhe os olhos,habilidade que tomarade uma menina de cadeiano segundo natalsaiu no pasquim de vinte e seis,porque o baile só terminou depois dofecho da edição de natal, que no I Baile Realde Natal se dançoutoda a noite e com propriedademúsica de reis
nomeadamente todos os clichés de baile que Airfteria condenado horas antes, mas era vê-laevoluindo no soalho imperial do baile realconduzida por Oinotna ao Danúbio Azulna verdade, Airf,estava tão macilenta quequase não tocava no chãoou seria elegante, na verdadenão levara vestido apropriadoe era a mais pobre da festa,e eis que Arugrama e Emof lhe cederamduas peças de estilo que a cobrirampara sobreviver, depois de Strauss,à Valsa do Imperador, de Rieu,que fez todos rir e crescer e no fimeram mesmo príncipes e princesas,reis e rainhas,até Airf,a quem Oinotna contou que,pela primeira vez em três anos,o peito tinha menos dor e nãosentia os círculos das pálpebrascomo cursos agudos de sangueabertos a navalhaVII - O ÚLTIMO FIM
Deve o conto abrir, porque é invertido, e não
fechar, como o texto clássico. Abrir como a vida,
que às vezes é como nos contos, fechada e
resolvida, e outras não é;
Nem Osso, nem Emof, nem Zedicul, nem Arugrama,
saíram do bairro sem casa,
mas nas soleiras deles continua a sonhar-se mais
e a conversar menos,
até porque casarão aos pares,
eles com elas,
e os bailes reais do bairro sem casa
se repetirão pelas eras;
Narce, sim, saiu, mas ainda não tem emprego,
tem esperança, e Lós também,foram morar para o topojunto ao chão,porque Aleb lhe explicouporquê;Oinotna já não sente culpa por expressaras emoções positivas, nem obrigação decultivar as negativas, mas,por muito que isso fosse querido,não podemos mentir no fim deste conto que se abreao infinito,Ana, cujo nome está ao contrário,abandonou Oinotna e não esteve em mais lado nenhumdeste conto, ou talvez numsó, que já recordamos;No primeiro Natal, Ana era felizcom Azeralc, mas no seguintecomeçou a devolver Azeralcà terra, arranhou Oinotnae não saiu de junto da camaarticulada da enfermariao natal todo;deu muitos beijinhos à menina,que ainda se riu a ver televisãoe a ver os palhaços e as festascom confetis e a sentir o mimodos homens e mulheres de sorte;mas, como nem todas as tragédias têm de ser tragédiaso tempo todo, também nem sempre é possível seguirem frente; Ana não seguiu.Quando Azeralc lhe disse que estava tão cansadaera dia de reis, Airf diria que a estrela de belém,como corpo de crianças sem sorte,é um insuportável cliché,mas este conto fechará a transbordar dessamatéria, a dos homens e das estrelas de quefalou Herberto,Azeralc estava sentada na cama a receber um mimode reis; quando Ana lhe estava a explicaro que ela podia fazer com uma lanternade leds com uma bateria extraordináriaa estrela de belém, no enfiamento da janelada enfermaria, quase a cegou, porqueacabara de incorporarAzeralc; quando Anaolhou para a filha,viu-a dormir sem sinais dedesfalecimento ou apneia;quando percebeu a morte,ela sim, desfaleceu,e, durante os natais seguintes,onde tudo para ela foi insuportável esem recuperação possível,Anasentiu a culpa de cada minuto queperdeu de Azeralc, cada momentoao acordar, cada segundo a mais quedemorou a responder às chamadasda filha, cada momento que passoua fumar na varanda dos fumadoresda enfermaria, e isto não era só nosnatais, era sempre;então morreu Ana"talvez por delicadeza" ou deuma incurável tristeza
VIII - EXÓRDIOE este conto de natal é invertido porque acaba com uma
inversão de vida, felicidade e até de tristeza,no sentido mais profundo das estrelas, cuja substância é a mesmados homens e da
própria tristeza, que,
como todos os sentimentos maiores,
podem bem estar acima daqueles;
e se não escondemos as crianças sem sorte
é porque elas, ao serem a maior de todas as
perdas, as simbolizam a todas,
todos os que já partiram e voltam à mesa de
natal, ou só voltam para os que não a querem
fazer e sobrevivem a todas as festas com esta
tristeza incurável
não há nada de desumano no incurável,
talvez só na consciência da morte, que é talvez
a mais humana de todas as manifestações;
Oinotna guardou o arranhão de Ana
como marca de uma eternidade
não física
A finitude do corpo e a infinitude
do pensamento e do
sentimento. Ou a rotação e a translação.
Sabemos que o nosso corpo acaba. Não sabemos
se o pensamento acaba. Sabemos que o sentimento
pode acabar ou propagar-se entre corpos e mesmo
para lá deles. Sabemos que o pensamento e o sentimento
transcendem a morte. O corpo não. É por isso que tentar
encolher o pensamento e o sentimento no espaço limitado
dos corpos será sempre mal sucedido. O que pensamos e
sentimos, parecendo contido nas nossas paredes,
vai muito para lá delas. O natal é um esforço de consciência
colectiva, todos os corações de um certo mundo
centrados no transtorno do egoísmo travestido
temporariamente de altruísmo. Um travão na rotação,
para que o pai natal cumpra, uma flexão na translação
para que o planeta desalije o peso da ilusão.
Os corpos, que acabam, não são reais. Voltam os mortos
mais queridos e o pensamento vai descendo e subindo
montanhas russas. Há abraços em todas as suas formas.
Alguns inimigos cessam. Os amigos prosseguem,
menos ignorados. Há mais luz, há mais acessórios,
são flagradas todas as manifestações do supérfluo.
Até chegar um momento em que todos mirram
e o mundo dobra reduzindo o espaço entre as casas.
Pairará sobre as mesas de natal, sobre o bacalhau,
sobre o molho fervido, sobre o vinho quente com canela
e açúcar, um só sentimento. Que é um calor raro
ao centro de peitos potencialmente
infinitos. Diz-se bom natal e a estrada segue,
vagarosa, no regresso a cada planeta.
P R I N C Í P I O
Personagens e respectivos Actores,
por ordem de entrada em cena:
Mark Kozelek - Mark KozelekDickens - Dickens
Herberto Helder - Herberto
Oinotna - António
Ana - Ana
Azeralc - Clareza
Ojna - Anjo
James Earl Jones - James Earl Jones
Nat King Cole - Natalie Cole
David Prowse - Darth Vader
Airf - Fria
Shhhhhhhhhh! - Enfermeira
Otnas - Santo
Narce Oizav - Ecrã Vazio
Emof - Fome
Zedicul - Lucidez (Sr)
Arugrama - Amargura
Osso - Osso
Menina dos olhos acesos - Menina dos olhos acesos
Lós - Sol (menina)
Aleb - Bela
Alice no país sem maravilhas - Alice
PG-M 2015
Published on December 18, 2015 10:30
Conto invertido de natal - Parte V (secção b)
Parte V - (secção a) aqui
vão cear ao aeroportonão vão de carro, apanhamo metro vazio, velhos a ocupar a faixade rodagem com uma só muleta o aeroporto vaziovêem banhos de sangue nos ecrãs gigantes e as pessoasa dizer não temos medo e a vida normalos olhos da empregada da grande cadeiade restauração ficam acesos e as pestanasparecem a difusão das estrelas e damatéria dos homens, que - diz o Herberto -é a mesma, a matéria dos homens que a olham e aa matéria dos homens em geral, então o que temospara a ceia de natal?nada de especial, desculpe, nunca vemninguém neste dia, e a massa emtrânsito come o que houver
(tal como nós, tal como nós)
A ceia corre bem, é mesmo perfeita e quente,com a luz certa e um murmúrio deconversa, silêncio nenhum
quatro hambúrgueres, em vez de bacalhau,e quatro francesinhas,em vez de perufinos, em vez de vinho quente
a menina dos olhos acesos não se calou umsegundoquando acabam de comer, abraçam-natodos, um por um,e o vazio e o silêncio voltamao aeroportoe a menina dos olhos acesosapaga-os
Narce não chegou a vestir o sobretudopara cear.Veste-o agora para mostrar os nataisnas janelas. Continuam a pépara a zona rica(eu preferia ver os pobres, nãosei porque é que venho semprever os ricos)e se este ano mudasses?olham ambos para Oinotnao que achas tu?Oinotna encolhe os ombros de umatristeza incurável, como Emof,tanto me faz
vislumbram no topo os prédiosde vidroe no vale as casas cinzentasa deitar fumono topo brilham janelas junto aochão, como no vale(não sei como é que as pessoas compramcasas em rés do chãoque nem elevados são) decidem então descer(neste dia é como se o torsopartisse ao meio, e é quaseinsuportável a dor pela faltade Lós)a tua filha(e de Aleb, também a faltade Aleb)a tua mulher(mas Lós é o meucorpo, Lós sou eudecalcado)e entram no bairro e asjanelas estão acesas comoos olhos da menina da cadeianesta noite todas as casas estão quentese há couves com batatas e algum bacalhau(venham por aqui, o ano passado - aliestá ela de novo - estive a fumar um cigarroencostado à parede de tijolo uns bons trintaminutos, e vi tudo, aquela senhora entrousem conhecimento, amparada pela filha,chegada do hospício para passar o natal,todos diziam não vale a pena mas pode ser que valha,e valeu, a senhora chegou alienada, sentou-seem frente às luzes do pinheiro, o cura, que éprimo, deu-lhe a mão e afinal a loucura não eraloucura, era uma tristeza curável que a própria filhajá tinha no rosto, não via uma emoção na cara da mãehá vinte anos, desde a morte do pai, e vinha de compora travessa que dividia sempre com a mãe, excepto nosnatais que ela passou no hospício porque não valia apena, duas boas postas de bacalhau, batata, couve galega,brócolos, tudo mergulhado em muito azeite, e viu a mãedar a mão ao primo cura e subitamente o conhecimentosubiu-lhe aos olhos, desceu à boca, a comoção foi tantaque à filha caiu a travessa, mas ela, em vez de chorar,riu, riu muito, riram todos, eu também, e o meu natal valeu,mesmo sem Lós e Aleb, o meu natal valeu.)
viraram à direita (por essa rua não queria entrar)alguma razão especial?(moram aí os meus sogros)eu sei bem que moram aquios teus sogrosOinotna liga-seNarce detém-sePorque é que ela nunca se divorciou de ti?Narce arregala os olhos, que ficam emterror; não, terror não, medo,não, medo não, entram numaespécie de purgatório
(separou-se de bens)
separou-se de bens?(por causa das dívidas)mas nunca de ti(não me faças isso)
confessa. tens vindo aqui todos os anosa ver se os espreitasem ceia de natal(não, não, não! é mentira! isso seria o pior,esperá-los perto e sabê-los longe) é verdade, pelo que soube,passaram alguns natais na américa(pelo que soubeste por quem?)
Já nada importa a Oinotna, temum sorriso largo, temos todosum sorriso largo, e Otnas dizEntendes agora?Oinotna sorri, Narce puxade um cigarro(não me faças isto)
entram pela rua dos sogrospostam-se na parede dooutro lado da rua,em frente à janela acesa,encostam-se os três à paredede tijolo, Narce tira uma passa,solta o fumo, atrás do fumovê os tufos dourados de Lósde costas para eles e de frentepara a árvore de natal ecomeça a chorar convulsivamente(afinal sempre se chora neste conto);a mulher, Aleb, não o ouve, maspressente, e toma a decisãoinconsciente de vir à portafumar, também ela, o cigarrodepois da ceiaNarce ouve a voz dela dentro de casa"Mãe, vou só fumar um cigarrinhoe já ajudo"dentro da cabeça Narcequer fugir e esconder-se,mas o corpo não se mexe
Aleb fecha a porta atrás de si e protege o isqueiroe dá a primeira passa a olhar para nadacom um sorriso suave que incluiuma tristeza incurável
passa a menina dos olhos acesos com eles apagadosa caminho de casareconhece Narce e acende-os e Narce,apesar do pânico, responde- Então por aqui?(é verdade, por aqui)Aleb não está a tomar sentido mas reage ao timbre deNarce e a sua atençãodesce à rua- Eu já despeguei e vou para casa cear.a menina da cadeia prosseguemas deixa os olhos todosacesosAleb perscruta Oinotna com educaçãoacha-o tão triste como ela, talvez mais,Narce está no meio e Alebnão chega a Otnas,porque no meio da rua, perante si,se junta tudo o que reservara nos últimosnatais:o passado, o som do choro convulsivo eo timbre de Narce, o desespero ea vontade, a raiva e aqueles olhospelos quais se apaixonara faziamuito tempo
"oh, meu deus, não é possível!"
(não tive culpa, não fui eu que quis vir,foi uma cilada de amigos, desculpa)ainda diz que não se chora neste conto;Aleb atravessou a rua e não fez juízos,abraçou-o e ficaram a soluçare as mãos subiram às bocase as lágrimas aos olhosde Otnas e Oinotna
Oinotna e Otnas, a dupla invencível!
"Ela não te pode ver assim, não compreenderia"(falas da barba?)"sim. espera aqui. não saias daí, ouviste?"Otnas levantou a camisola grossatinha uma tshirt com uma gilettedesenhada; riram ou fungaram,não se sabe bem"Mãe, tens uma máquina de cortar cabelo?"e com gestos vigorosos voltou pouco depois"entra por aqui, vai direitinho ao wc"
e durante um quarto de hora, sem saber porquê,Oinotna deixou que a imagem do filhodentro de uma caixa lhe invadisse afelicidade que sentia, como se a culpa,a grande culpa, não consentisse nenhumaluz dentro da sombra eterna, nem os cheirosdo natal, Otnas abraçou-o e obrigou-o afumar, é um conto fora de moda, e passadosuns minutos veio Aleb à soleira entregarduas canecas de barro de vinho quentecom canela e uma rodela de limão"esperem só um bocadinho, já entram,está bem?"Não é preciso, não é preciso.E ficaram ali a fumar e a beber vinho quentee a ver Narce chegar à sala, e a menina,de quem só viam os olhos e o cabelo,teria uns seis anos agora,a olhar muito espantada para o paie os sogros a chorar(e não se chorava neste conto)ouviram qualquer coisa como"Lembras-te do pai nas fotografias?"Lós, inerte, foi tomada nos braçospor Narce, que, quando tomou desi a alma, se voltou para fora eagradeceu com o olhar
que a menina da cadeira acendera Partes VI até ao fim aqui
vão cear ao aeroportonão vão de carro, apanhamo metro vazio, velhos a ocupar a faixade rodagem com uma só muleta o aeroporto vaziovêem banhos de sangue nos ecrãs gigantes e as pessoasa dizer não temos medo e a vida normalos olhos da empregada da grande cadeiade restauração ficam acesos e as pestanasparecem a difusão das estrelas e damatéria dos homens, que - diz o Herberto -é a mesma, a matéria dos homens que a olham e aa matéria dos homens em geral, então o que temospara a ceia de natal?nada de especial, desculpe, nunca vemninguém neste dia, e a massa emtrânsito come o que houver
(tal como nós, tal como nós)
A ceia corre bem, é mesmo perfeita e quente,com a luz certa e um murmúrio deconversa, silêncio nenhum
quatro hambúrgueres, em vez de bacalhau,e quatro francesinhas,em vez de perufinos, em vez de vinho quente
a menina dos olhos acesos não se calou umsegundoquando acabam de comer, abraçam-natodos, um por um,e o vazio e o silêncio voltamao aeroportoe a menina dos olhos acesosapaga-os
Narce não chegou a vestir o sobretudopara cear.Veste-o agora para mostrar os nataisnas janelas. Continuam a pépara a zona rica(eu preferia ver os pobres, nãosei porque é que venho semprever os ricos)e se este ano mudasses?olham ambos para Oinotnao que achas tu?Oinotna encolhe os ombros de umatristeza incurável, como Emof,tanto me faz
vislumbram no topo os prédiosde vidroe no vale as casas cinzentasa deitar fumono topo brilham janelas junto aochão, como no vale(não sei como é que as pessoas compramcasas em rés do chãoque nem elevados são) decidem então descer(neste dia é como se o torsopartisse ao meio, e é quaseinsuportável a dor pela faltade Lós)a tua filha(e de Aleb, também a faltade Aleb)a tua mulher(mas Lós é o meucorpo, Lós sou eudecalcado)e entram no bairro e asjanelas estão acesas comoos olhos da menina da cadeianesta noite todas as casas estão quentese há couves com batatas e algum bacalhau(venham por aqui, o ano passado - aliestá ela de novo - estive a fumar um cigarroencostado à parede de tijolo uns bons trintaminutos, e vi tudo, aquela senhora entrousem conhecimento, amparada pela filha,chegada do hospício para passar o natal,todos diziam não vale a pena mas pode ser que valha,e valeu, a senhora chegou alienada, sentou-seem frente às luzes do pinheiro, o cura, que éprimo, deu-lhe a mão e afinal a loucura não eraloucura, era uma tristeza curável que a própria filhajá tinha no rosto, não via uma emoção na cara da mãehá vinte anos, desde a morte do pai, e vinha de compora travessa que dividia sempre com a mãe, excepto nosnatais que ela passou no hospício porque não valia apena, duas boas postas de bacalhau, batata, couve galega,brócolos, tudo mergulhado em muito azeite, e viu a mãedar a mão ao primo cura e subitamente o conhecimentosubiu-lhe aos olhos, desceu à boca, a comoção foi tantaque à filha caiu a travessa, mas ela, em vez de chorar,riu, riu muito, riram todos, eu também, e o meu natal valeu,mesmo sem Lós e Aleb, o meu natal valeu.)
viraram à direita (por essa rua não queria entrar)alguma razão especial?(moram aí os meus sogros)eu sei bem que moram aquios teus sogrosOinotna liga-seNarce detém-sePorque é que ela nunca se divorciou de ti?Narce arregala os olhos, que ficam emterror; não, terror não, medo,não, medo não, entram numaespécie de purgatório
(separou-se de bens)
separou-se de bens?(por causa das dívidas)mas nunca de ti(não me faças isso)
confessa. tens vindo aqui todos os anosa ver se os espreitasem ceia de natal(não, não, não! é mentira! isso seria o pior,esperá-los perto e sabê-los longe) é verdade, pelo que soube,passaram alguns natais na américa(pelo que soubeste por quem?)
Já nada importa a Oinotna, temum sorriso largo, temos todosum sorriso largo, e Otnas dizEntendes agora?Oinotna sorri, Narce puxade um cigarro(não me faças isto)
entram pela rua dos sogrospostam-se na parede dooutro lado da rua,em frente à janela acesa,encostam-se os três à paredede tijolo, Narce tira uma passa,solta o fumo, atrás do fumovê os tufos dourados de Lósde costas para eles e de frentepara a árvore de natal ecomeça a chorar convulsivamente(afinal sempre se chora neste conto);a mulher, Aleb, não o ouve, maspressente, e toma a decisãoinconsciente de vir à portafumar, também ela, o cigarrodepois da ceiaNarce ouve a voz dela dentro de casa"Mãe, vou só fumar um cigarrinhoe já ajudo"dentro da cabeça Narcequer fugir e esconder-se,mas o corpo não se mexe
Aleb fecha a porta atrás de si e protege o isqueiroe dá a primeira passa a olhar para nadacom um sorriso suave que incluiuma tristeza incurável
passa a menina dos olhos acesos com eles apagadosa caminho de casareconhece Narce e acende-os e Narce,apesar do pânico, responde- Então por aqui?(é verdade, por aqui)Aleb não está a tomar sentido mas reage ao timbre deNarce e a sua atençãodesce à rua- Eu já despeguei e vou para casa cear.a menina da cadeia prosseguemas deixa os olhos todosacesosAleb perscruta Oinotna com educaçãoacha-o tão triste como ela, talvez mais,Narce está no meio e Alebnão chega a Otnas,porque no meio da rua, perante si,se junta tudo o que reservara nos últimosnatais:o passado, o som do choro convulsivo eo timbre de Narce, o desespero ea vontade, a raiva e aqueles olhospelos quais se apaixonara faziamuito tempo
"oh, meu deus, não é possível!"
(não tive culpa, não fui eu que quis vir,foi uma cilada de amigos, desculpa)ainda diz que não se chora neste conto;Aleb atravessou a rua e não fez juízos,abraçou-o e ficaram a soluçare as mãos subiram às bocase as lágrimas aos olhosde Otnas e Oinotna
Oinotna e Otnas, a dupla invencível!
"Ela não te pode ver assim, não compreenderia"(falas da barba?)"sim. espera aqui. não saias daí, ouviste?"Otnas levantou a camisola grossatinha uma tshirt com uma gilettedesenhada; riram ou fungaram,não se sabe bem"Mãe, tens uma máquina de cortar cabelo?"e com gestos vigorosos voltou pouco depois"entra por aqui, vai direitinho ao wc"
e durante um quarto de hora, sem saber porquê,Oinotna deixou que a imagem do filhodentro de uma caixa lhe invadisse afelicidade que sentia, como se a culpa,a grande culpa, não consentisse nenhumaluz dentro da sombra eterna, nem os cheirosdo natal, Otnas abraçou-o e obrigou-o afumar, é um conto fora de moda, e passadosuns minutos veio Aleb à soleira entregarduas canecas de barro de vinho quentecom canela e uma rodela de limão"esperem só um bocadinho, já entram,está bem?"Não é preciso, não é preciso.E ficaram ali a fumar e a beber vinho quentee a ver Narce chegar à sala, e a menina,de quem só viam os olhos e o cabelo,teria uns seis anos agora,a olhar muito espantada para o paie os sogros a chorar(e não se chorava neste conto)ouviram qualquer coisa como"Lembras-te do pai nas fotografias?"Lós, inerte, foi tomada nos braçospor Narce, que, quando tomou desi a alma, se voltou para fora eagradeceu com o olhar
que a menina da cadeira acendera Partes VI até ao fim aqui
Published on December 18, 2015 10:28
O conto invertido de Natal - parte V - secção a
(Partes I a IV aqui) - não comece pelo meio
V - O SEGUNDO NATAL
Na antevéspera do natal seguinte fazia um ano que Ojna
morrera na cama articulada da enfermaria.
Não foi o primeiro natal de Oinotna.
Meteu férias a vinte e dois e, como Airf,
fechou a porta de casa com as três voltas da
chave, desligou o telefone e o telemóvel e
tudo o que comeu ou bebeu foi o espaço
vazio de Ojna, que beijou na boca como
fazia desde bebé, sobre os foguetões
desenhados no edredon
eu gosto muito deste edredon, papá
mas, provavelmente,
é demasiado infantil para a tua idade,
adivinhou o pai
Ojna socou o pai, que
encaixou, caindo inanimado
no foguetão maior,
onde agora estava
o espaço vazio,
o único lugar onde havia
vida no ano seguinte
Passou outro ano e o pai fez o mesmo,
mas o astuto Otnas,
amigo das horas todas,
conseguiu convencer a empregada doméstica a emprestar-lhe
a chave que desatou as três voltas e o tirou do espaço
Oinotna e Otnas, a dupla invencível!
Não posso, amigo, não posso, desculpa.
Não desculpo e vais sair à minha frente. Não vamos ver
coisas bonitas, vamos ao segundo nível
das ruas, para lá dos pobres da sopa, vamos
aos que desistem, aos que morrem de frio e
de fome e de solidão, os clichés que os
cómodos usam para justificar a
abdicação, vamos ao olho
do inferno e depois, só depois,
deixo-te livre.
Era então a véspera do segundo natal depois
do fim do mundo deOinotna.
Oinotna e Otnas, a dupla invencível!
Olha o cliché dos pobres da sopa.
Olha o cliché das carrinhas de apoio.
Olha aqui o cliché dos corpos que
passam a noite de natal debaixo
de cartões.
Este nem uma fogueira tem
por perto, só cartões e frio
na mesma
Como é que te chamas?
(gemido)
Amigo, como é que te
(deixe-me em paz)
Tenho sopa quente e comida
(deixe-me em paz)
já jantaste?
(deixe-me em paz)
não te vou deixar em paz
(quer apanhar?)
não tenho medo de ti
(deixe-me em paz!)
vá, deixa-o em paz, Otnas.
(deixe-me em paz, já disse!)
olá, Narce.
(silêncio)
(deixe-me em paz)
olá, Narce.
Como Narce? Narce Oizav?
O pivô de televisão?
Ele mesmo.
(deixem-me em paz!)
Narce Oizav abandonou a fama vazia
para ser assessor de um político
e o político caiu em desgraça,
foi contratado por uma agência de
comunicação que fez as apostas
erradas, depois por um consultor
de bolsa onde, finalmente,
exerceu a licenciatura, mas
fez as apostas erradas,
isso eu sei, estive lá,
no mesmo open space
que engoliu os empregos,
tentou voltar à estação de
televisão,
mas nem sequer passou
a segurança,
os amigos também não -
- ficaram a acenar-lhe
da parte de dentro
dos torniquetes;
quando ceava a fama
vazia, pediu sempre
para trabalhar na noite
de natal, porque não
suportava a casa
de quinhentos metros
quadrados, fora
logradouro,
e, vê bem, Oinotna, trouxe-te ao Narce
para nenhum conforto,
mas porque a vida ainda lhe conseguiu
tirar um filho como a ti e a muitos,
infelizmente muitos, cada vez mais
pode ser que abrande um dia,
pode ser que abrande um dia,
este não é o dia
e o Narce sumiu para dentro,
nas ruas da cidade que o
cultivou e exaltou e
examinou;
há dois anos, quando Ojna
morreu, Narce
desapareceu do planeta
para este lugar,
e só as carrinhas de apoio
que o olham nos olhos e sob
os cartões e a barba, sabem que
ainda existe;
deixou mulher em
pânico e filha pequenina
(foram embora)
sim, foram embora
emigraram para a américa
Oinotna ficou como a estátua da noite
Narce sentou-se, Otna deixou a mão
para ser apertada, Narce baixou
a cabeça e não chorou,
ninguém chora neste conto
invertido de natal;
Eu sei que costumas ir ver os natais nas janelas,
Narce
(sim - a voz sumida - mas muito mais tarde)
levas-nos?
(silêncio)
Oinotna, como a estátua da noite,
afinal está a chorar,
caramba,
afinal está a chorar
(levo)
(mas muito mais tarde)
trouxe um casaco para poderes ir jantar
connosco
(mas as calças não estão capazes)
é um sobretudo
Oinotna volta-se para Narce:
Desculpa perguntar. O teu menino...
(podes perguntar)
Oinotna estende-lhe a mão.
Narce baixa a cabeça.
Que idade tinha?
(nove)
Oinotna olha para Otnas.
Otnas estende-lhe a chave da empregada:
devolve-lha e agradece,
por favor.
Narce levanta-se.
(visto o sobretudo mais tarde,
venham comigo)
Passam junto à fogueira, a ceia é farta, as
pessoas sem casa exclamam
Olha o famoso! Saíste da toca, este ano?
Não nos apresentas os amigos?
Narce aponta
para uma mulher magra com uma tristeza
incurável e vários trapos
sofisticados a sorver
a sopa ruidosamente
- aquela é a Emof, deu-me cobertores
na primeira noite
Emof diz:
- sabe-me bem comer a sopa assim
Narce aponta para um homem cego
que ouve um rádio
e come uma rabanada
tem uns óculos escuros azuis
marca Ray-Ban
- aquele é Zedicul, deu-me o primeiro
abraço quando cheguei
a esta comunidade que
reserva as melhores soleiras
deste quarteirão;
Zedicul diz:
- hoje não há notícias
Narce aponta para uma mulher sem dentes
e cabelo vermelho
que chupa uma cabeça de
bacalhau
tem uma saia em patchwork
assim alinhavada: um quadrado com um menino sentado à carteira da escola cose-se a um quadrado com dois meninos de pé à porta da escola e este cose-se a um quadrado com um menino sentado à carteira da escola e faz o padrão que se repetiu pelas colchas em certos anos de certas modas.
- aquela é Arugrama, deu-me o primeiro
alento, disse
isto é o princípio, não o fim
Arugrama diz
- adoro cabeças de bacalhau
Narce aponta para um homem obeso
que ouve tudo o que Narce diz quando
apresenta os outros
tem uma camisa azul às riscas com os botões
rebentados em baixo e a barriga à mostra
apesar do frio
- este (não aquele, porque este olha para
nós) é o Osso, que, se repararem,
é um nome escrito ao contrário
como Ana e todos os outros até
aqui, e, quando cheguei,
cedeu-me a sua única refeição
do dia.
Osso diz
- nas nossas soleiras não se conversa,
sonha-se
(secção b da Parte V aqui)
V - O SEGUNDO NATAL
Na antevéspera do natal seguinte fazia um ano que Ojna
morrera na cama articulada da enfermaria.
Não foi o primeiro natal de Oinotna.
Meteu férias a vinte e dois e, como Airf,
fechou a porta de casa com as três voltas da
chave, desligou o telefone e o telemóvel e
tudo o que comeu ou bebeu foi o espaço
vazio de Ojna, que beijou na boca como
fazia desde bebé, sobre os foguetões
desenhados no edredon
eu gosto muito deste edredon, papá
mas, provavelmente,
é demasiado infantil para a tua idade,
adivinhou o pai
Ojna socou o pai, que
encaixou, caindo inanimado
no foguetão maior,
onde agora estava
o espaço vazio,
o único lugar onde havia
vida no ano seguinte
Passou outro ano e o pai fez o mesmo,
mas o astuto Otnas,
amigo das horas todas,
conseguiu convencer a empregada doméstica a emprestar-lhe
a chave que desatou as três voltas e o tirou do espaço
Oinotna e Otnas, a dupla invencível!
Não posso, amigo, não posso, desculpa.
Não desculpo e vais sair à minha frente. Não vamos ver
coisas bonitas, vamos ao segundo nível
das ruas, para lá dos pobres da sopa, vamos
aos que desistem, aos que morrem de frio e
de fome e de solidão, os clichés que os
cómodos usam para justificar a
abdicação, vamos ao olho
do inferno e depois, só depois,
deixo-te livre.
Era então a véspera do segundo natal depois
do fim do mundo deOinotna.
Oinotna e Otnas, a dupla invencível!
Olha o cliché dos pobres da sopa.
Olha o cliché das carrinhas de apoio.
Olha aqui o cliché dos corpos que
passam a noite de natal debaixo
de cartões.
Este nem uma fogueira tem
por perto, só cartões e frio
na mesma
Como é que te chamas?
(gemido)
Amigo, como é que te
(deixe-me em paz)
Tenho sopa quente e comida
(deixe-me em paz)
já jantaste?
(deixe-me em paz)
não te vou deixar em paz
(quer apanhar?)
não tenho medo de ti
(deixe-me em paz!)
vá, deixa-o em paz, Otnas.
(deixe-me em paz, já disse!)
olá, Narce.
(silêncio)
(deixe-me em paz)
olá, Narce.
Como Narce? Narce Oizav?
O pivô de televisão?
Ele mesmo.
(deixem-me em paz!)
Narce Oizav abandonou a fama vazia
para ser assessor de um político
e o político caiu em desgraça,
foi contratado por uma agência de
comunicação que fez as apostas
erradas, depois por um consultor
de bolsa onde, finalmente,
exerceu a licenciatura, mas
fez as apostas erradas,
isso eu sei, estive lá,
no mesmo open space
que engoliu os empregos,
tentou voltar à estação de
televisão,
mas nem sequer passou
a segurança,
os amigos também não -
- ficaram a acenar-lhe
da parte de dentro
dos torniquetes;
quando ceava a fama
vazia, pediu sempre
para trabalhar na noite
de natal, porque não
suportava a casa
de quinhentos metros
quadrados, fora
logradouro,
e, vê bem, Oinotna, trouxe-te ao Narce
para nenhum conforto,
mas porque a vida ainda lhe conseguiu
tirar um filho como a ti e a muitos,
infelizmente muitos, cada vez mais
pode ser que abrande um dia,
pode ser que abrande um dia,
este não é o dia
e o Narce sumiu para dentro,
nas ruas da cidade que o
cultivou e exaltou e
examinou;
há dois anos, quando Ojna
morreu, Narce
desapareceu do planeta
para este lugar,
e só as carrinhas de apoio
que o olham nos olhos e sob
os cartões e a barba, sabem que
ainda existe;
deixou mulher em
pânico e filha pequenina
(foram embora)
sim, foram embora
emigraram para a américa
Oinotna ficou como a estátua da noite
Narce sentou-se, Otna deixou a mão
para ser apertada, Narce baixou
a cabeça e não chorou,
ninguém chora neste conto
invertido de natal;
Eu sei que costumas ir ver os natais nas janelas,
Narce
(sim - a voz sumida - mas muito mais tarde)
levas-nos?
(silêncio)
Oinotna, como a estátua da noite,
afinal está a chorar,
caramba,
afinal está a chorar
(levo)
(mas muito mais tarde)
trouxe um casaco para poderes ir jantar
connosco
(mas as calças não estão capazes)
é um sobretudo
Oinotna volta-se para Narce:
Desculpa perguntar. O teu menino...
(podes perguntar)
Oinotna estende-lhe a mão.
Narce baixa a cabeça.
Que idade tinha?
(nove)
Oinotna olha para Otnas.
Otnas estende-lhe a chave da empregada:
devolve-lha e agradece,
por favor.
Narce levanta-se.
(visto o sobretudo mais tarde,
venham comigo)
Passam junto à fogueira, a ceia é farta, as
pessoas sem casa exclamam
Olha o famoso! Saíste da toca, este ano?
Não nos apresentas os amigos?
Narce aponta
para uma mulher magra com uma tristeza
incurável e vários trapos
sofisticados a sorver
a sopa ruidosamente
- aquela é a Emof, deu-me cobertores
na primeira noite
Emof diz:
- sabe-me bem comer a sopa assim
Narce aponta para um homem cego
que ouve um rádio
e come uma rabanada
tem uns óculos escuros azuis
marca Ray-Ban
- aquele é Zedicul, deu-me o primeiro
abraço quando cheguei
a esta comunidade que
reserva as melhores soleiras
deste quarteirão;
Zedicul diz:
- hoje não há notícias
Narce aponta para uma mulher sem dentes
e cabelo vermelho
que chupa uma cabeça de
bacalhau
tem uma saia em patchwork
assim alinhavada: um quadrado com um menino sentado à carteira da escola cose-se a um quadrado com dois meninos de pé à porta da escola e este cose-se a um quadrado com um menino sentado à carteira da escola e faz o padrão que se repetiu pelas colchas em certos anos de certas modas.
- aquela é Arugrama, deu-me o primeiro
alento, disse
isto é o princípio, não o fim
Arugrama diz
- adoro cabeças de bacalhau
Narce aponta para um homem obeso
que ouve tudo o que Narce diz quando
apresenta os outros
tem uma camisa azul às riscas com os botões
rebentados em baixo e a barriga à mostra
apesar do frio
- este (não aquele, porque este olha para
nós) é o Osso, que, se repararem,
é um nome escrito ao contrário
como Ana e todos os outros até
aqui, e, quando cheguei,
cedeu-me a sua única refeição
do dia.
Osso diz
- nas nossas soleiras não se conversa,
sonha-se
(secção b da Parte V aqui)
Published on December 18, 2015 10:21
Conto Invertido de Natal - Partes I, II, III e IV
F I M:
I - PERORAÇÃOII - OINOTNAIII - AIRFIV - O PRIMEIRO FIMV - O SEGUNDO NATALVI - O ÚLTIMO NATALVII - O ÚLTIMO FIMVIII - EXÓRDIO
I - PERORAÇÃOEste conto de natal começa pelo fime em fade in:o tríptico de notas musicais de um cântico de natalque não é de natal, mas uma tragédia moderna, chamada"Ceiling Gazin", de Mark Kozelek, um poema íntimo cantadoa olhar para o tecto, ou melhor, a ler a vida toda
no tecto; ao contrário deste, que pretende partir dochão e ter a forma equívoca de um poema,como a novela de natal de Dickens, que emcertas edições foi impressa e dita em verso - e todo o leitorolha o texto de forma orgânica e a prosa, se aparenta verso,parece mais nobre e eloquente. Não terá, contudo, a qualidadeda eternidade- oh! uma rima espontânea! -,como tem Dickens, nem personagens-tipo,
porque vivemos tempos de míngua de ideias e de sábios,porque esquecemos de que o vento sopra da mesma forma em todas as épocas,e as janelas cheias de neve criam a mesma ilusão em todos os nataisde todos os tempos, mesmo antes de cristo e apesar decristo e em qualquer religião,em que a reuniãoe o propósito colectivo temporário do bem são sempre a mesma coisa e o mesmo natal - já dizia Herberto Helder -,a substância de um homem e de uma estrela,a mesma.
II - OINOTNAAssim começa o nosso conto: um pai coloca no topode uma árvore artificialde nataluma estrela que declara corporizar o próprio filho,falecido três anos antes numa confortável enfermaria,rodeado de palhaços e confetis; neste natal, o paitenta provar à sua nova companheira, que ele conheceuna mesma enfermaria há coisa de uma semana, quandofoi distribuir abraços pênseis e prendas simbólicas aosenfermeiros e médicos que o ampararam nomartírio; dizíamos, tenta Oinotna, o pai, provar a Ana,companheira dele e mãe de Azeralc, que a filha dela,uma menina de sete anos internada no dia de ano novo com
a mesma doença do seu filho morto, Ojna,(reparem como Ana é um nome escrito ao contrário,como Oinotna, Azeralc e Ojna)
pode vir a ter, num futuro de horror que Ana
antecipa todas as noites, a mesma existência
pacífica que o filho tem hoje dentro de si;
Oinotna e Ana estreitam os corposnum primeiro momento, mas num segundoela arranha-o e empurra-o e morde-o, acusando-o de estara matar Azeralc antes do tempo,
mesmo que digam que ela já não tem
tempo. Oinotna reserva o arranhãocomo marca de dureza de vida para um terceiro momento.Já cá voltamos. Agora saimos daqui. De acordo, de acordo,evitaremos as frases curtas para que o conto sejaclássico e possa ser recitado, depois de devidamente traduzido para inglês e dito pela voz off do James Earl Jones num filme de época, e, se ele houver morrido, que as maravilhas da técnica o desenterrem, como fizeram ao Nat King Cole naquele dueto com a filha oucomo enterraram vivo David Prowse, o actor que fez de
Darth Vader; na verdade, há três anos nem Oinotna nem todaa família que se reuniu em torno do caixão branco de Ojna no dia de acção de graças, pensariam sequer em celebrar o natal seguinte,e era isso que Ana se recusava a fazer desde que Azeralcfora internada no dia de ano novo; é assim com todos os sofredores e desencantados da quadra, todos para quem ela significa apenas dor ou nojo, sejam próprios ou alheios,mas este conto invertido contempla;
III - AIRF
À conta de uma pasta crua de sentimentos que incluem
solidão, revolta contra os outros e contra os seus sentimentos
não autênticos, contra o desfasamento entre o declarado
e o feito, Airf tornou-se uma mulher amarga.
Em tempos, entretinha-se a destruir natais,
fosse da empresa, fosse das famílias que a
acolhiam como sua, fosse dos passantes
dos centros comerciais; agora
limita-se a ficar em casa como se não
nevasse lá fora ou não existissem renas
voadoras nem pai natal nem menino
jesus e os presentes fossem o centro
da ignomínia do mundo; tem, claro,
uma televisão de mais de um metro,
colunas sem fio e iphone de referência
alta, muito alta, e sigla superior, tem
janelas de vidro quádruplo e
aquecimento central, tem
painéis solares e filtros
de água, tem
máquina nespresso e cápsulas
para um ano, tem
cinco metros de pé
direito e está encolhida
sobre si própria em
posição fetal; só já
não chora porque
tudo secou
dentro dela.
IV - O PRIMEIRO FIM
Ao tempo em que Airf recolhia a casa,
três natais atrás, Oinotna cingia
Ojna sobre a cama branca
articulada, estava primeiro sentado
com os pés de fora, depois tirou as botas
e meteu-se na cama com o filho, ele
riu-se; ainda dói? o doutor mandara
parar com a medicação e as injecções
dois dias antes da noite de natal,
e morfina com tento, para que Ojna
entendesse o presente do pai, nada
de sinuoso, tem de ser simples e
bem pontuado e ser percebido, embora um
menino de nove anos que adoece ganhe
a sabedoria que em mundo fomos
desalijando; é
uma lanterna de leds que, se
quiseres, dura uma noite
inteira e de manhã pedes
à enfermeira que a carregue
até escurecer outra vez; Ojna
iluminou-se e apontou para a concha
da própria mão, fez reflexo no
cateter, deu um abraço ao pai
e puxou-o para debaixo dos
lençóis e riram-se tanto que
a enfermeira passou
shhhhhhhhhhhhhhhhh!
ihihihihihihihih
não foi o pai que chorou
foi ele
estava feliz
não disse nada de eloquente
nem impressionante para uma
criança que sabe que vai
morrer; todos sabemos,
se tivermos sorte e tempo,
mas quanta ironia,
se é precisamente
sorte e tempo
o que faltou a Ojna;
Ojna
pediu ao pai para ir embora
queria dormir
deu-lhe um curto beijo na boca
como fazia desde bebé
Oinotna só aparentemente partiu
quando voltou atrás e espreitou
um tubo de luz corria ao lado
do corpo do filho
na cama articulada
da enfermaria
shhhhhhhhhhhhhhhhh!
ihihihihihihihih
(continua aqui)
Published on December 18, 2015 10:17
December 9, 2015
Se me queres ouvir, não me comas à luz artificial
Se me queres ouvir, não me comas sob o novomobiliário urbano da vila, comparece contudo
defronte do banco de praça que o paisagista
rasgou oblíquo no mundo
Se me queres ouvir, não me comas nos festivais
onde uma versão temerária de mim e nenhum
pensamento circulará pelo auditório
minimal que o arquitecto municipal
ergueu apesar do mundo
Se me queres ouvir, não me comas na televisão
onde uma versão temerosa de mim e nenhum
olhar cegará os cinescópios datados
que o designer do cerco riscou apesar
do mundo
do mundo
volta atrás sem esperar o anúncio dos nossos
funerais e não me perguntes se vou publicar
e deixa os editores em paz que eles têm a corda
no pescoço por imperativos de mercado não
de literatura e então,
se me quiseres ouvir,
não me comas à luz artificial do novo
mobiliário urbano, chega-te ao banco
defronte do meu e observa as minhas
mãos a olhar para as tuas e os meus
joelhos a mostrar os teus e os meus
olhos a tomar os teus e o silêncio
a dizer o que ambos
queríamos ouvir
a mãe morreu
tem sido um prédio comprido de escalar entre
as costelas
lembras-te da milene? sim, até ficámos
de tomar café mal a vida toda cheia
ficasse vazia, porquê?
porque também morreu
foi quando?
foi ontem
foi ontem
foi ontem
ah, que alívio, então o funeral...
não foi, é amanhã
às três da tarde
quando as casas vazias
que bom, que bom,
vamos juntos
vamos juntos, sim
vai ser bom
vai, vai ser bom
e depois é o nosso
pois é, depois é o nosso
ao menos
que não seja no mesmo dia
ahahahahahahahahahahahahah (treze sílabas métricas)
uma gargalhada subiu aos postes imaginados
pelo arquitecto paisagista e entrou
nos auditórios minimais
e nos velhos
cinescópios
os amigos continuarão a adiar-se
e a morrer sozinhos
(sem querer)
os escritores a dizer as mesmas coisas, mas felizmente
a escrever outras
que ao menos não se comam uns aos outros
à luz artificial
PG-M 2015
foto de Jessical Ceballos, por Tyler Curtis: clique aqui para fonte da foto
Published on December 09, 2015 07:02
December 8, 2015
Confissão (III) impertinente de PaloblyK - dos dez aos vinte
Senhor padre, com efeito aflige-me que não esteja cá quando eu voltar para lhe confessar os próximos trinta anos. Terá oitenta anos quando eu tiver sessenta? Não, não creio que seja substituível. Na vida, há coisas que só se fazem com uma pessoa ou jamais. Ficam latentes ou incompletas. Não tem nada que agradecer. É um destino comum. Aconteceu, porque me falaram de alguém que sabia ouvir. Estávamos na casa de chá que virá a ser da Tzufit, ainda não tem o papel de parede dos beija-flor, claro que não tem, e eu perguntei, confesso (já que estamos para isto) que com espanto:- Como assim? Tens a certeza? Um ser humano? Em Nova Iorque? E sabe mesmo ouvir?
Sabe ouvir. É um padre católico. Páraco na Church of the Holy Innocents, na 32nd.Ah, é um padre católico.Passou um thanksgiving. Passaram dois. A ideia evoluiu dentro de mim como um penhasco que se faz ao infinito. O infinito em todas as direcções, percebe, senhor padre? Podia ser só o infinito em frente. O infinito do abismo. O infinito do firmamento. O infinito do passado, o peso da História. Não. Não era "só" nenhum deles, mas todos. Uma aurora boreal dentro da minha boca, porque a cabeça sempre teve algo de confinado, de conformado. Quando tomei a decisão de me confessar, o pior era que o senhor padre me dissesse, Desculpa, meu filho, agora tenho muito que fazer, volta para a semana; eu não voltaria; conheço-me e sei que não voltaria; sei que ficaria profundamente envergonhado com o aspecto do meu das linhas no meu movimento de aproximação à sua igreja, iria rever na cabeça até ali confinada a minha atitude pouco preclara nos quarteirões adjacentes, já sei, já sei, ou é preclaro ou não é, "pouco preclaro" não existe, "pouco preclaro" não é concebível, mas não, não, senhor padre, eu fui até aqui indivíduo cinzento dos meios-termos, envergonhado da paixão mais precoce da humanidade, o indivíduo que é capaz de estragar, com a forma como inclina o pescoço para fazer uma vénia ou retira o chapéu para um cumprimento, a atitude de cavalheiro que se espera de um homem da minha condição.
Por isso lhe confesso.
Confesso que, nos primeiro anos a seguir aos dez, fui como que um ente tácito, omisso, de reprodução assexuada, qual laranja da Baía. Apenas preocupado com a sobrevivência no meio líquido que recusa o peso da História, que é como quem diz no recreio de barro a minha cara de lorpa (“olha para aquela cara de lorpa”) e a minha altura (“tão crescidinho e tão anormal”) de um colégio só de rapazes colocaram no topo das prioridades a mera sobrevivência. Como num fim de mundo, era o fim da infância e o começo de uma pasta lamacenta de ideias, borbulhas e revoluções hormonais – não ideológicas, nunca ideológicas, só hormonais. No colégio, todas as manhãs eram submersas, senhor padre. E eu até acho que tive sorte por nunca ter sido violado pelos internos. Foram mais ou menos quatro anos de tareia dissimulada, e isso foi bom, senhor padre, porque nunca perdi a consciência, e, com o advento do “fight back” (ou será flight back?), eu, que nunca fui corajoso, fiquei dotado de todos os maus e vigorosos sentimentos com tracção às quatro patas, tal qual os meus agressores, só que agora já não era o cara de lorpa e anormal e crescidinho, era um bovídeo precoce que teria sido uma estrela se neozelandês, isso pode escrever, e, nessa altura, quatro anos depois de nunca mais ter pensado em miúdas a não ser nos verões, claro, os verões efémeros e falsos que vendem amor dentro das bisnagas bronzeadoras, quando o bully mais simpático do grupo me desferiu o centésimo pontapé nas canelas - sabendo que estava sob moratória, a saber, se me voltas a dar pontapés por cima desta feridas (quer dizer que, se houvessem sarado, lhos teria consentido outra vez), juro que te parto o focinho – e eu observei a ferida-sobre-ferida a sangrar, e eu vi a reflexão de mim nos vidros da porta de acesso à escadaria central do colégio, possuído e moreno, ao contrário de mole e branco, como soía acusarem-me nos anos precedentes, puxei o gordo do bully para mim e enfiei-lhe um soco, bastou um soco, na boca, que imediatamente rebentou num festival vermelho vivo que eu nunca tivera o privilégio de observar de fora, só de dentro, e o rapaz nem sequer reagiu, só chorou; era, na verdade, um cobarde, mas um cobarde fraco, com a convicção de um falso ascendente que cedia perante qualquer demonstração de força. Não era assim com os líderes dos gangues de bulliers que extorquiam de tudo um pouco à comunidade escolar, sendo que a mim, isso concedo, apenas me extorquiram a dignidade e a infância, nada mais, pelo que, poucos dias depois, quando, ciente dos meus direitos e dessa dignidade, não já da infância, tive de arrumar uma peça de roupa de um dos líderes nos cabides dos balneários de desporto escolar, ele ocupava cinco cabides e ficou a ocupar quatro para eu poder pendurar a minha roupa num, tive uma espera no fim da aula e os asas do Dzhamaldin, assim se chamava o líder, era de origem tchechena, mas de terceira geração, ate porque sempre actuou em todo o esplendor americano, prenderam-me as mãos e as pernas e o Dzhamaldin socou-me os testículos até eu desmaiar. Não houve discussão prévia nem ameaças, graças a deus, foi uma tareia limpa que me marcou para sempre. Quando recobrei os sentidos, senhor padre, estava determinado e sabia que aquele era o último dia em que estaria demasiado ocupado a sobreviver para poder dar atenção a raparigas e ter espaço para me apaixonar e ser humilhado – como eu sonhava ser humilhado por elas, cansado de ser humilhado por eles – por belas mulheres. Fui ao rabino que tratava da disciplinas e fiz queixa formal. Ele não a reduziu a escrito e disse-me para resolver os meus problemas, como eu esperava. Eu assim fiz. Esperei pela hora do lanche, esperei que o Dzhamlaldin e os seus asas saíssem da aula a que não fui, por ter desmaiado, avisei-o antes que nunca mais me faria tal coisa, nem a mim nem a ninguém, e deixei-o estendido no chão. Foram só três murros seguidos. Depois alguns amigos agarraram-me. Foi melhor para o Dzhamaldin, para mim foi indiferente, creio que o teria assassinado ali mesmo, mas agarraram-me. Depois fui lanchar, ele e os asas, quando recuperaram, também, e acabou a minha existência assexuada. Para sempre.
Dizia-lhe ao princípio, senhor padre, que o quero para, pelo menos, mais uma confissão depois destas, aos sessenta, e há que aguentar-se, meu caro padre, pelas boas graças deste infiel. Aos noventa já não será preciso. Quem já leu esta série toda, principalmente "A Tese de um grande amor", sabe que aos noventa me confessarei a um amor de vida, não a um padre. Sendo passado, e estando no terço dessa idade, não tenho isso presente, claro que não tenho, mas desconfio. E confio que, em chegando aos noventa, não precisarei da religião, porque a terei superado ou ela terá acabado comigo ou com o mundo, e, se o mundo pós-existir a essa minha determinação de ter a equação resolvida, o que é muito improvável, eu saberei apresentar-me na forma pós-apocalítpica (o senhor padre sabe, melhor do que eu, que apocalipse é uma palavra grega que significa descoberta e não fim ou existência depois de tudo: kaliptó é coberto, apo é um prefixo de negação) que os homens já não terão presente nessa altura, o olhos-nos-olhos, perante quem amei ou amarei. (O que é olhos-nos-olhos?, perguntarão as crianças desse tempo, tentando descobrir a cara do pai entre ecrãs)
Confesso que, dos catorze em diante, voltei a ver as mulheres como elas são e então, com todas as possibilidades da relação e da masturbação, me esplanei pelos campos primaveris de liberdade. Mas a relação assustava-me e a masturbação era um processo de culpa ainda sem a revelação da maturidade, onde é equilíbrio e relação, ou, dito de forma mais prosaica, equilíbrio de relações sãs, relativizando o sexo como apriorístico - o mundo precisa de um Havelock Ellis, outra vez, senhor padre, e o Woody Allen não conta, ou de rever o mito de Onã, que "desperdiçou o seu esperma na terra", e de perceber que o onanismo é, verdadeiramente, o coito interrompido e não a iluminação da masturbação como processo de contenção superior, sem inteligibilidade para os brutos mas clareza para os sábios. Confesso que me perdi de amores por todas as raparigas da equipa de voleibol do colégio, já de si tardias, porque o colégio só admitiu raparigas quando eu me aproximava dos quinze. E aí foram as sombras e os dias negros. Não das meninas do voleibol, que eram a luz, mas
confesso que tive a ilusão de amar uma mulher que se apresentava nos interstícios de todas as minhas inseguranças, que por ela mudei a minha califragia e nem isso lhe bastou como prova de amor, que por ela voltei a abdicar da minha honra, tal como quando me conformava com as tareias dos bulliers, e durante dois anos deixei de existir, o que perfaz quase seis anos de anulação no centro albar da sexualidade - oh, aquela aurora boreal dentro da minha boca de onze anos estava agora sobre o meu corpo -, e acabei o tirocínio nas formas de anti-amor com a determinação de lhe possuir apenas o corpo, já sem qualquer respeito por ela, e por isso peço que me aplique a mais exemplar penitência, senhor padre.
Não posso, disse o padre, ainda não posso, meu filho. Terá uma só penitência no final da confissão. Uma só ou nenhuma. Prossiga.
Confesso que tive amores de compensação. As gémeas de Venice Beach: resolvi apaixonar-me apenas por uma, e no fim do verão, no momento do beijo que o encerraria, ela teve um assomo de honestidade e confessou-me um compromisso prévio. Que a irmã estava livre, mas ela não. Foi o momento de maior devassa que vivi, senhor padre. Uma gémea oferecer a sua irmã idêntica como substituta e pensar que estava a honrar algum dos homens da equação. Ao menos foi honesta, dirá o senhor padre. Não. Mais honesto teria sido a lhaneza de um beijo que selava um verão e a memória de vida. Fui eu o culpado. Claro que fui eu o culpado. Devia ter desperdiçado o meu esperma na terra, como Onã.
Confesso que, durante uma semana, beijei uma mulher diferente todas as noites. E que cada beijo me soube, crescentemente, mais e mais, a terra, a pó, como se, pelo vazio e antes da morte, regressasse à minha própria fundação, como me estivesse a enterrar vivo, obviamente sozinho, porque elas eram mais e mais bonitas e eu sentia mais e mais pó nos lábios até um último beijo, que foi o deserto.
Confesso que, depois dos rituais de substituição todos, me apaixonei pela mulher com quem ainda hoje estou, conto agora uns treze anos e contarei a vida toda.
Nesse caso, meu filho, vou convidá-lo para um café e deixa a sua Ida, e o que mais houver, para um tomo IV da sua confissão, o que acha?
Toma-se bom café por estes quarteirões?
Não é que não tome, mas eu preferia levá-lo a um boteco numa esquina de Greenwich Village.
Greenwich? Não me diga que me vai levar ao boteco que o Hopper pintou no Nighthawks.
É esse mesmo, é por isso mesmo. E vamos a pé, se não se importar?
Isso não é exagerado, senhor padre?
O boteco ou a caminhada?
A caminhada.
Não. Nunca seria. Sabe como se faz o caminho. E bem precisa. Mas há aqui uma questão relevante que não me passou despercebida, mas passou aos seus leitores.
E qual seria ela, senhor padre?
A minha igreja não fica na 32nd, meu caro. Certamente indicou ao taxista a igreja, não a rua, ou já saberia.
Então? Estamos onde?
Na 37th, meu caro. Na 37th.
São só cinco de diferença.
São cinco, sim, de número, mas também são cinco de horas e de caminho. Mas para o café é só meia, e dá-me o tomo IV pelo caminho, se não se importar.
Não me importo, mas abomino esta liberdade criativa totalmente em desuso, que anda entre a metaliteratura e o nonsense, senhor padre.
Não, é só café.
Café num lugar mítico. Uma coisa pagã, portanto.
É só café, Solomon, é só café.
PG-M 2015
Relacionados: Parte I da confissão, Parte II da confissão, O Natal de Pbloblyk, À(s) muher(es) desconhecida(s) e A tese de um grande amor,
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Published on December 08, 2015 04:02


