Vitor Frazão's Blog, page 8

June 6, 2012

Conto: "Dança do Corvo (7ª parte) – Uma nova Era"


   Hayato repôs o cachimbo na boca, balançando-o pensativamente. Não sabia o que o seu povo decidiria, nem lhe interessava. Ele não iria abandonar o mundo e recolher para uma aldeola perdida nas montanhas, onde passaria os seus últimos dias como um qualquer velho caduco e aleijado. Os tengu e os yokai em geral ainda precisavam da sua espada e, enquanto tivesse força para a erguer, viveria segundo ela.               Abolida a sakoku humana, agora, mais do que nunca, crescia o risco dos Ocultos estrageiros invadirem aquele solo, corrompendo-o com os seus conflitos, que dilacerariam o modo de vida dos yokai, os Ocultos japoneses. Isto para não falar do risco crescente de entrarem no país Obliteradores, soldados dessa gigantesca sociedade secreta cujo único propósito parecia ser exterminar seres paranormais. Foram as histórias de Eleanora sobre o horror desse flagelo que atormentava as espécies sobrenaturais além-mar, que insuflaram em Hayato a necessidade de manter-se vigilante. Ironicamente, a única Oculta que desejava conservar no país, era aquela que não conseguia.               - Os yokai têm muito para decidir sozinhos e esses são debates em que não me quero envolver – justifica Eleanora, passando as mãos pelo cabelo, procurando verificar se ele regenerara o suficiente para voltar a ser preso.                - Sentes falta do que deixaste, não é? – inquire, tão perspicaz como sempre, enchendo a taça com sake e tragando-o de um gole, antes de voltar a equilibrar o cachimbo na boca.                 - Sim – confirma, prendendo os cabelos e sendo incapaz de evitar um sorriso perante as memórias das terras e gentes que conhecera do outro lado do mar. – Além do mais, não consigo afastar esta ideia, talvez utópica, de o resto do mundo usufruir do mesmo que vocês criaram. A comunidade yokai pode não ser perfeita, mas sempre é melhor que o caos generalizado que há lá fora! Talvez com ela tivéssemos hipótese de enfrentar os Obliteradores, de viver algo parecido com uma existência livre, sem olhar constantemente por cima do ombro. Não sei… se calhar é uma tarefa demasiado grande para uma simples vampira…               - Bah! Também o é manter escumalha Oculta longe desta terra – atira Hayato, batendo com o metal do cachimbo no cinzeiro, para se livrar dos restos carbonizado, enquanto lançava à vampira um sorriso que tinha tanto de troça como de encorajamento – mas a ideia é, justamente, não teres de o fazer sozinha. Eleanora-chan, enfrentaste a justiça yokaie ganhaste, quão difícil poderá ser combater milénios de ódios para unir todos os Ocultos e exterminar os Obliteradores? Caso para se resolver numa estação, certamente, não?               - Ah! Ah! Mais uma vez dá-me mais crédito do que mereço, Hayato-san – agradece, rasgando um imenso sorriso e fazendo uma pequena vénia. – Tentarei não desiludir.               Apoio não era algo que o velho tengu desse à toa. Por ligeiro e informal que fosse o seu tom, a força e confiança patente nele era suficiente para dispersar as dúvidas que enublavam a mente de Eleanora, pelo menos, durante algum tempo. A vampira batia-o em idade e vira muito mais do que ele, todavia, por algum motivo, a sabedoria simples e a autoridade sólida do ancião, confortavam-na, como se viessem de alguém muito mais velho, cujo saber assentava nas raízes do Tempo.            
   Hayato desejava que ela ficasse, porém, compreendia porque é que ela tinha que partir. Tal como ele não se sentia capaz de aceitar o exílio numa aldeola perdida nas montanhas, vendo o mundo passar, Eleanora não conseguiria ficar escondida entre os yokai, enquanto lá fora os Ocultos continuavam a ser exterminados pelos Obliteradores. Nenhum deles era capaz de cruzar os braços, quando sabiam poder fazer algo.
Amanhã, 7 de Junho de 2012, a conclusão: "Dança do Corvo (8ª parte) – Despedidas"
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Published on June 06, 2012 13:01

June 5, 2012

Conto: "Dança do Corvo (6ª parte) – Entre velhos amigos"


   A única coisa que Hayato, como todos os da sua espécie, odiava mais que caminhar em vez de voar, era ter um tecto sobre a cabeça. Espaços fechados eram para vermes, seres que não conheciam a glória e liberdade de planar pelos céus. Excepto durante tempestades, escolhia sempre estar ao ar livre, por isso a pequena celebração que mandara preparar para Eleanora ocorrera sob as estrelas e a Lua. Nada de muito elaborado, pois o velho tenguera um guerreiro simples, pouco dado a luxos. Apenas uma toalha vermelha, numa clareira limpa, sobre a qual fora colocada uma mesa baixa, com sake e sushi, enquanto, para a vampira, fora reservada uma bela e pálida mulher, de longos cabelos negros, vestida apenas com um fino quimono íntimo, branco como a mais pura das neves.               A refeição aproxima-se do fim. Hayato, sentado na toalha, de pernas cruzadas debaixo do corpo, fuma o seu delgado e longo cachimbo, lançando anéis de fumo, enquanto Sora e Shou levam a mortal drenada pela vampira. Apesar de completamente desidratada, a sua expressão é tranquila, como se tivesse adormecido pacificamente, para nunca mais acordar.               O velho tengu vê Eleanora repor o haori negro desprovido de emblemas sobre o ombro, cobrindo o braço decepado. Levará tempo, mas voltará a crescer. Ela afirma-o e ele sabe que assim é, lembrando-se perfeitamente da noite, há quase 30 anos, em que lhe cortara um braço e quase a matara. Trocar o privilégio de caminhar sob o sol por imortalidade, a capacidade de curar feridas num piscar de olhos e insensibilidade à dor, parecia um bom negócio a Hayato. Pudesse a sua espécie executar tal transformação e ele não hesitaria, por impuros que os vampiros fossem considerados pelos yokai.               Foram tais poderes que deram a vitória à vampira, embora de pouco lhe tivessem servido no passado. Hayato e Eleanora tinham o mesmo peso e força muscular, mas a velocidade superior dele tê-la-ia fulminado se ela não usasse o próprio braço com escudo, abrandando o golpe da katana do tengu por uma fracção de tempo, tão pequena que era impossível de medir. Um batimento de coração. Um piscar de olhos. Quantas vezes a vida de um guerreiro era decidida nessas meras fracções?                “Um bom combate” pensa Hayato, sorrindo com o cachimbo nos lábios, lamentando apenas não poder repetir a experiência tão cedo.               - Ajuda este velho tolo a entender, Eleanora-chan – pede, afastando o cachimbo e voltando o rosto para os lábios da convidada, pintados com sangue fresco. – Decides colocar pé nestas terras numa época em que a tua presença é ilegal, tanto pela lei humana como yokai. Sofres e passas todas as nossas provas pelo direito a ficar, recebendo dos yokai o salvo-conduto que te permite caminhar entre nós. Privilégio conquistado por poucos Ocultos, devo acrescentar. Escapas também à justiça humana, para a qual eras um alvo tão fácil, com os teus cabelos louros e redondos olhos claros, tão vincadamente estrangeiros. Mantiveste-te entre nós durante os turbulentos dias do fim da Era Tokugawa. Agora, com sakoku abolida há quase vinte anos, em que o teu aspecto já não é motivo para perseguição humana e que a Bakumatsu acabou, dando-nos algo parecido com paz, é que desejas partir? Sei que esta Era Meiji ainda tem muito que provar, mas já estiveste ao nosso lado durante pior.               - Hayato-san – retorque, acariciando a bainha negra da sua katana desprovida de guarda, que lhe jazia junto ao joelhos – se é verdade que uma parte de mim deseja ficar e que os dias que se avizinham aparentem ser mais pacíficos que os anteriores, especialmente para uma Oculta estrangeira, também é inegável que, com o fim da Guerra do Ano do Dragão, os yokai se vêem, cada vez mais, obrigados a tomar importantes decisões sobre o seu lugar no mundo dos homens. Tokugawa acabou. Bom ou mau, o tempo dos Meiji não será igual.               Hayato sabia-o bem. A abertura aos estrangeiros, que ele defendera como uma das razões para Eleanora permanecer, obrigara, e ainda obrigava, a mudar séculos de tradicional interacção entre os yokaie os humanos daquele país. Ao contrário dos oni, cuja tolerância e colaboração com os humanos variavam de indivíduo para indivíduo, durante séculos os tengutinham lutado lado a lado com os samurais, aliando-se aos clãs dos senhores feudais que conquistavam o seu respeito. Agora, com a queda da nobreza feudal, erguiam-se vozes dissonantes. Alguns defendiam que deviam retirar-se completamente do mundo humano, procurando refúgio nas suas aldeias nas montanhas, tal como, segundo as lendas, os seus parentes do continente fizeram, há milénios atrás. Outros afirmavam que o melhor seria camuflarem-se na sociedade humana, tal como alguns Ocultos ocidentais. Eleanora tinha razão, cada espécie, cada indivíduo, teria de escolher como enfrentar aquele mundo em mudanças.

Amanhã, 6 de Junho de 2012: "Dança do Corvo (7ª parte) – Uma nova Era"
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Published on June 05, 2012 09:06

June 4, 2012

Conto: "Dança do Corvo (5ª parte) – Por honra"


   - Não desonrarei meus mestres alegando que a vitória se deveu a sorte, contudo, também recuso a garantir, sem sombra de dúvida, que seria capaz de repetir a proeza – defende, embainhando a katana, colocando-se de joelhos e fazendo a testa tocar no solo, na mais profunda e respeitosa das vénias. – O desabrochar de uma única flor não embeleza a cerejeira. Ainda tenho muito que aprender dos nobres mestres que me precederam até poder considerar-me ao seu nível. Perdoe-me se na minha ânsia por mostrar o que aprendi e para me provar perante si o ofendi, todavia, creio que pior teria sido fingir-me inferior. Em todo o caso – acrescenta, sorrindo, incerta se não estaria ir longe demais – se fôsseis um guerreiro menos… controlado, as costelas e braço que lhe parti não fariam o meu golpe parecer tão clemente.               Por resistente que um tengu fosse, os seus ossos ocos, cruciais para voar, eram mais delicados que os dos humanos. Embora não tão sangrento como o corte de uma lâmina, o golpe de Eleanora poderia ter sido igualmente fatal, espetando ossos partidos de encontro a órgãos internos. O mero acto de respirar devia provocar-lhe dores horríveis, mas Hayato, numa incrível demonstração de autocontrolo, escondia-o magistralmente.               Eleanora manteve a testa no chão, à mercê dos yokaivoadores, não sabendo se a sua ousadia conseguira salvar amizade e honra, até que uma poderosa gargalha ecoa pela noite.       - Ah! Ah! Ah! Espantoso! Espantoso! Ah! Ah! Bem dito, Eleanora-chan! – elogia Hayato, rasgando um imenso sorriso, que o fazia assemelhar-se a um animado velhote após beber mais que a sua conta. Cada gargalhada fazia vibrar as costelas partidas, sem que ele parecesse importar-se muito com isso, ignorando por completo as dores. A agressividade do seu rosto evapora-se como se toda a tensão anterior tivesse sido apena parte de uma piada. – Um bom combate, sem dúvida. Há muito que não me divertia tanto! Aprendeste muito desde o nosso primeiro encontro, Eleanora-chan.       - Apenas porque enfrento grandes lutadores como Hayato-shishio e Shou-senpai – garante, levantando-se e fazendo uma pequena vénia para o jovem tengu.               - Não sejas tão modesta e formal! – pede, bem-disposto, à medida que os arqueiros aterram aos seus pés, um deles com a bainha da sua katana. – Mais uma vez provaste que fizemos bem em poupar-te, Oculta-chan, e deixar-te caminhar em solo yokai. Vem, celebremos, Irmãzinha, e talvez me possas contar aquilo que te perturba, enublando ambiente tão festivo. Shou-kun, fecha a boca! Sora-kun, mexe essas asinhas e manda preparar repasto. Estou esganado!                Eleanora não conseguiu evitar sorrir. Assim era Hayato, ferocidade em batalha apenas superada pela sua hospitalidade e boa disposição.      Amanhã, 5 de Junho de 2012: "Dança do Corvo (6ª parte) – Entre velhos amigos"
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Published on June 04, 2012 08:52

June 3, 2012

Conto: "Dança do Corvo (4ª parte) – No fio da lâmina"


   Os dedos magros, sólidos e providos de garras da mão direita de Hayato mantém-se em redor do punho da katana, que nem ao ser arremessado largou, a sua expressão de ave de rapina tão acutilante como o gume da ancestral lâmina. A pele vermelha é coberta por um quimono cinzento, folgado, de tecido barato, com aberturas nas costas para as asas, e por uma tanga larga, diante da qual se encontra um grande pedaço de tecido rectangular que se alonga até aos joelhos, no qual está pintado o kanji para corvo, o emblema do seu esquadrão. No solo, as suas asas, com penas negras e brancas, parecem desgrenhadas, velhas e decadentes, tendo uma penugem mais própria para um espanador do que para um nobre tengu, porém, no ar são transformadas pela graciosidade de um voo capaz de fazer cisnes parecerem desajeitados.               - Kenji-kun treinou-te bem, Eleanora-chan – elogia o ancião, tenso apesar do tratamento informal. O seu rosto vermelho, ladeado por orelhas bicudas, era iluminado pelo luar, enquanto os guerreiros em redor se mantinham na escuridão.                - Akio-sensei foi apenas um de muitos cuja sabedoria abençoou esta humilde estudante, Hayato-sama – afirma, fazendo uma respeitosa vénia, sem tirar os olhos do yokai ou embainhar a espada, bem consciente da proximidade de Shou e da letal lâmina curva da naginata dividida. – As suas bondosas palavras honram-me e às suas ilustres casas.               - Agrada-me saber que ensinar o seu estouvado avô não foi tempo perdido – confessa, flectindo as asas com aparente indiferença. – Contudo, desde os dias que Ichimaru-kun subiu a montanha em busca da sabedoria tengu na arte da espada, que ninguém da sua nobre casa conseguiu voar tão alto.               - Não tenho o privilégio de pertencer a tão nobre casa – alega, compreendendo bem o rumo da conversa e o que estava em causa, mesmo sem estar segura do resultado. Hayato era um guerreiro nobre e sábio, mas também orgulhoso e, pelo que constava, a idade tornara-o temperamental e instável.               - O que não te impediu de não só derrotar, como poupar um velho tolo – acusa o ancião, amargura bem patente na voz.               Aí reside o cerne da questão. Os guerreiros de Hayato vivem por um conjunto regras de conduta reduzidas em número, mas abrangentes em efeito, entre as quais tomam primazia a honra, a abnegação perante a morte e a ferocidade em combate. A arte da guerra era levada muito a sério e, mesmo em sessões de treino como aquela, cada ataque era feito com intento de matar. Embora os guerreiros mais jovens, como Shou, ainda tivessem dificuldade em abraçar a noção, a morte de um camarada de armas, mesmo às mãos de um aliado, por algo tão banal como um treino, não era motivo para tristeza, raiva ou culpa, pois a preparação para a batalha tomava precedente face a tudo o resto. Vida era insignificante perante a honra. O facto de Eleanora não só ter conseguido vencer Hayato, como tido o sangue frio para, em pleno ataque, golpeá-lo com o lado rombo da katana e não com o gume, provava a sua superioridade a um ponto que o mestre consideraria humilhante. Um guerreiro orgulhoso como o velho tengupreferiria a honra do golpe fatal, à clemência e agora, mantendo-se diante dela, em digno silêncio, exigia saber o porquê da atitude.                No ver da vampira, qualquer que fosse a sua resposta, só poderiam existir dois possíveis resultados, Hayato insistiria no combate, pretendendo limpar a humilhação com sangue, qualquer que fosse a sua fonte, ou dar-lhe-ia a honra de requerer a sua ajuda durante o ritual de seppuku. Embora não desejasse decapitá-lo enquanto ele se esventrava, também não arriscaria ofendê-lo, ainda mais, recusando. Não desejava a morte do velho tengu… A única esperança residia nas suas palavras poderem criar uma terceira alternativa.

Amanhã, 4 de Junho de 2012:  "Dança do Corvo (5ª parte) – Por honra"
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Published on June 03, 2012 08:37

June 2, 2012

Conto: "Dança do Corvo (3ª parte) – A queda"


   Shou pisca os olhos e o combate entre a vampira e velho tengu termina, tão rápido que apenas os danos provam que ocorreu de todo. Um braço é decepado por entre uma nuvem de sangue, convertendo-se em osso e depois em pó antes de cair no chão, sofrendo numa fracção de segundo a decomposição que lhe fora negada durante séculos pelos poderes da filha da noite. O sangue no coto estanca quase de imediato, enquanto os farrapos ensanguentados da manga esvoaçam em redor. Regenerando perante o olhar de todos, uma linha vermelha rasga a garganta de Eleanora de lado a lado, indicando que o fim não estivera longe, contudo, é o seu inimigo que jaz a vários metros de distância, arremessado pelo impacto do golpe.           - Sensei!       - Hayato-sama!      Aflitos, os yokai voadores confluem sobre o mestre caído, ignorando a adversária. Apenas Shou, o mais novo, solta um clamor de fúria e dor, lançando-se sobre Eleanora, num suicida voo picado, naginata em punho. A vampira mal tem tempo de se voltar para enfrentar a investida, antes de ser abalroada. Os adversários rebolam pelo chão, por entre folhas secas e poeira. Quando se afastam, preparando o ataque seguinte, a arma do tenguestá cortada ao meio e a filha da noite é obrigada a regenerar outra ferida no pescoço. Mais dois ou três centímetros teria sofrido uma decapitação e com ela a derradeira morte…
   Sem perder tempo, o tengu atira as asas de penas castanhas em frente, utilizando-as como uma espécie de capa para cobrir as mãos e os fragmentos da arma dividida. A técnica visava esconder a direcção do ataque que executaria com as armas improvisadas, estratégia que não funcionaria tão bem contra alguém que podia ver sangue através de objectos sólidos…
   Shou prepara-se, Eleanora segura a katanacom firmeza, usando apenas uma mão, posicionando-a num ângulo em que o seu próprio corpo a esconde do adversário, e lançam-se um sobre o outro.
   - PAREM!      O grito em japonês que ecoa pela noite não é um apelo desesperado, mas uma ordem férrea, proferida por uma voz habituada a ser obedecida. Sem magia para além da autoridade e respeito que o portador inspira, a palavra suspende os adversários em pleno ataque, impedindo-os de cortarem a garganta um ao outro.      - Hayato-jijii? – pergunta Shou, chocado, sem afastar do pescoço da vampira a lâmina curva da naginata partida.      Ombreado pelos yokai mais novos, o velho tengu ergue-se sobre as próprias pernas, os seus pés bifurcados, cada um dos quais providos de duas garras aquilinas à frente e uma atrás, cravados no solo. Mantinha a habitual dignidade e autoridade, apesar dos cabelos, normalmente presos no topo da cabeça, caírem soltos pelo rosto e de ter folhas mortas na triangular barba branca que lhe desce até ao peito, onde, surpreendentemente, apenas espreita um hematoma por entre o meio aberto e largo quimono cinzento, em vez do rasgão sangrento que o golpe da vampira deveria ter deixado.       - Shou-kun – diz o ancião, dando a entender que o jovem devia baixar a arma e afastar-se da vampira.      O mais jovem dos yokai demora a cumprir a ordem, tendo dificuldade em lidar com a mistura de raiva, orgulho, alívio e surpresa que experiencia.       - Puff! – solta, ao recuar e colocar descontraidamente ao ombro a ponta provida de lâmina da arma cortada, rasgando um sorriso trocista para simular indiferença e procurar esconder aquilo que sente. – Parece que afinal, Shisho-jijii não foi abatido, só tropeçou.       Um dos outros yokai pretende repreender Shou pela rudeza, mas Hayato, habituado a ela e dando-lhe pouca importância, impede-o, voltando os olhos negros e longo nariz aduncado para a vampira. Eleanora baixa a katana e retribui o olhar, como se não existisse mais ninguém no mundo senão ela, aquele humanóide alado, de pele vermelha, e uma tensão de cortar à faca entre eles. Embora não parecesse, a batalha ainda não terminara…            

Amanhã, 3 de Junho de 2012: "Dança do Corvo (4ª parte) – No fio da lâmina"
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Published on June 02, 2012 10:24

June 1, 2012

Conto: "Dança do Corvo (2ª parte) – O mais poderoso"


   Disparadas da segurança da copa das árvores, pelos assimétricos yumi dos tengu, com uma força impossível a qualquer arco de fabrico humano, as flechas não só são extremamente rápidas, como invisíveis ao Pulsar. Felizmente, os ouvidos de Eleanora foram treinados para detectar o menor sinal de disparo e os seus reflexos são sobrenaturais. Desvia-se do primeiro projéctil, que se vai espetar no solo remexido, e move-se ligeiramente para levar com o segundo no peito em vez do ombro. Consciente que uma flecha nas articulações lhe toldará os movimentos, tornando-a um alvo fácil, dá-se ao trabalho de fugir de projécteis que não a podem matar ou sequer provocar dor.              As vagas de ataques tornam-se mais intensas, obrigando-a a mover-se freneticamente em redor, saltando, rodando sobre si mesma e rebolando pelo chão, por entre uma cacofonia de metal a cantar de encontro a metal. Nem todos os golpes são desviados ou aparados, cortes nas vestes e pele multiplicam-se. Onde outros contemplariam uma situação cada vez mais desesperada, Eleanora vê oportunidades. Três soldados de infantaria, dois arqueiros, cinco atacantes, ou seja, muitas falhas na rede. E estavam a ficar cada vez mais descuidados…        Eleanora volta a atirar-se ao chão, rebolando para o lado e aproveitando para agarrar um punhado de terra, que lança ao tengumais próximo, ao levantar-se, fazendo-o falhar o ataque e quase não conseguir defender o contra-ataque. O tengu da katana afasta-se, executando um voo muito mais largo do que o habitual, enquanto esfrega os olhos. Ao mesmo tempo, a vampira desvia-se de uma investida e corta a ponta da lança do adversário seguinte, que é forçado a uma manobra de emergência para evitar despenhar-se. O terceiro yokai quase lhe arranca a katana das mãos com a naginata, mas as suas forças acabam por provar-se demasiado equilibradas para uma se sobrepor à outra.      Recebendo mais duas flechas nas costas, enquanto vê os inimigos voarem para longe, de modo a ganharem balanço para as investidas seguintes, Eleanora não se sente aliviada com as tréguas, pois sabe que ainda lhe falta enfrentar o mais velho, perigoso e poderoso dos yokai voadores. Ele encontra-se perto, nas sombras, à espera da altura certa para atacar…      Todos eles eram fulminantemente rápidos e furtivos, mas Hayato fazia os demais parecerem folhas a cair com indolência numa brisa outonal. Ao senti-lo aproximar-se por trás, atacando de um ângulo impossível, Eleanora apenas tem tempo de tirar a mão esquerda da katana enquanto se vira. Um golpe. Tudo ou nada, num único movimento. Sem espaço para errar.  

Amanhã, 2 de Junho de 2012: "Dança do Corvo (3ª parte) – A queda"
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Published on June 01, 2012 11:06

May 31, 2012

Conto: "Dança do Corvo (1ª parte) - Asas na escuridão"

   O vento desliza pelos ramos, fazendo estalar as folhas ao luar. Pés pequenos, envoltos em waraji esmagam o solo amolecido pela chuva, ao adoptarem uma posição sólida, em preparação para a batalha. Uma mão pálida, aparentemente delicada, ergue-se para agarrar a bainha negra à cintura, atada com firmeza de encontro ao hakama, enquanto outra atravessa diante da barriga, pousando sobre o punho da katana desprovida de guarda.

   Entre árvores milenares, cuja altura parece desafiar o Céu, envolta em sombras que enegrecem a sua palidez sobrenatural, está uma pequena guerreira loura de feições cheias, quase angelicais. Os seus olhos azul-esverdeados brilham a cada mudança de luz.
   O silêncio e o negrume escondem uma paz falsa. Ela sabe que não está sozinha. Sente o bater dos corações e, pelo canto do olho, consegue ver os inimigos moverem-se entre as copas. À distância que estão, o sangue que lhes corre nas veias, que devia ser para ela como fogo na escuridão, não passa de uma faísca fugaz. Conhecendo bem a rapidez dos adversários, a filha da noite não se deixa enganar pela ilusória segurança que o espaço entre eles proporciona.

   Procurando suprimir o nervosismo, a vampira passa a língua pelos caninos. Nesse exacto momento, um dos corações bate mais depressa, fazendo-a virar para o atacante, que voa na sua direcção, batendo as asas ruidosamente, naginata em mãos. 
   “É uma distracção” apercebe-se, sacando da espada e preparando-se para atacar o outro inimigo que plana na sua direcção, vindo de trás. Vê-o, ficando impressionada por constatar que se encontra tão relaxado, que o coração bate como se estivesse sentado a beber chá e não no coração de uma batalha. Não fosse pela sua experiência, a vampira nunca o teria sentido aproximar-se. Infelizmente, também ele era um engodo. 
   Mesmo com Pulsar, Eleanora quase não detecta a tempo um tengu que cai do céu em voo picado, directamente sobre a sua cabeça, qual falcão-peregrino a tomar partido do ângulo morto, sendo apenas graças aos seus reflexos sobrenaturais que consegue evitar ser empalada pela longa lança. Desviada pela katana, a lâmina dupla da lança limita-se a rasgar de alto a baixo a manga esquerda do quimono masculino, enquanto Eleanora recua, saindo do caminho do Oculto voador, na esperança que ele se despenhe ao falhar o alvo. Demonstrando uma incrível perícia física e agilidade mental, o yokaivoador recupera de imediato, planado graciosamente para longe, sem sequer tocar no chão. A vampira sente as penas das asas do inimigo no rosto, mas não reage a tempo de lhe acertar.
   Quase de imediato, vê-se obrigada a usar a katanapara desviar a lâmina de outro tengue depois a rebolar sobre o ombro para fugir à naginata de um terceiro, aquele cujo coração batia com o poder de ondas a esmagarem-se contra penedos. 
   A mortal dança prossegue. Os três yokaivoadores, rápidos e precisos, acossam-na em círculos cada vez mais apertados, em vagas que a impedem de concentrar-se num alvo. A vampira baixa-se e, em vez de ficar sem pescoço, é-lhe cortado o rabo-de-cavalo louro, preso no topo da cabeça. Rolando para a frente desvia-se de uma arma e, dessa posição vulnerável, deflecte outra com a katana. Os cabelos soltos caem-lhe sobre o rosto ao erguer-se, sendo então que os arqueiros atacam.


Amanhã, 1 de Junho de 2012: "Dança do Corvo (2ª parte) – O mais poderoso"
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Published on May 31, 2012 09:43

May 30, 2012

Temos conto!

  Amanhã, aqui no blogue, começarão as publicações do conto com a personagem que escolheram de "Crónicas Obscuras - A Vingança do Lobo", Eleanora "Lâmina Sangrenta" Reeve, intitulado:
Crónicas Obscuras: Dança do Corvo   

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Published on May 30, 2012 08:56

May 29, 2012

Behind the Scenes: Novidade e aviso

NOVIDADE: o conto já anda pelos beta-readers. Já não falta muito...

AVISO: enquanto estiverem a ser publicadas as partes do conto (para não ser o texto todo de uma vez, à bruta) não farei posts de "Diário Visual", "Writer's Log" e afins. Acho que sempre fica menos confuso e mais prático. O que acham? 
   

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Published on May 29, 2012 08:18

May 28, 2012

Diário Visual: 28 de Maio de 2012

Conto "500 seguidores" com Eleanora it's a work in progress...
Kiseru (cachimbo japonês). Primeiro draft do conto de Eleanora está feito.   O que falta?  Outra passagem de olhos, martelar certos pormenores, rever, deixar a marinar, rever outras vez, passar pelos beta-readers e voltar a rever. (Será que estou a rever quanto baste? Que se lixe, quando em dúvida mais uma revisão).
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Published on May 28, 2012 11:30