David Soares's Blog, page 71

August 29, 2011

Jogo de RPG baseado no meu romance "Batalha"




«Um jogo de simulação narrativa de Ricardo Tavares

baseado no livro Batalha de David Soares.»



Descobri hoje que fizeram um jogo de RPG baseado no meu novo romance Batalha.

Chama-se Animais Como Nós e foi criado por Ricardo Tavares: nesta ligação, podem descarregar as regras e o tabuleiro em PDF.







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Published on August 29, 2011 12:24

Entrevista com David Soares sobre "Batalha"

No passado dia 17, a convite da Livraria Bertrand, estive no Castrum Bar, em Castelo Branco, para apresentar o meu novo romance Batalha (Saída de Emergência, 2011). Nessa altura, fui entrevistado pelo jornalista Tiago Carvalho para o jornal regional Povo da Beira. Essa conversa, publicada no passado dia 23, pode ser lida na transcrição que se segue.





«O fenómeno religioso observado pelos animais

Um dos mais conceituados autores portugueses de literatura fantástica, David Soares, esteve em Castelo Branco, no passado dia 17 de Agosto, para apresentar o seu quarto romance, Batalha. O escritor, que soma distinções da crítica nacional e internacional, conversou com o "Povo da Beira", à margem da sessão de autógrafos promovida pela livraria Bertrand e pelo Castrum Bar, nas Docas.



Povo da Beira (PB) - Comecemos pelo novo livro. De que fala o "Batalha"?

David Soares (DS) – É um romance de literatura fantástica que fala sobre o fenómeno religioso, observado do ponto de vista dos animais. Na essência, é uma história alegórica que parte desse ponto de vista, não só para tentar perceber como nós funcionamos perante o sentimento do transcendente, do divino, como também para explorar as relações que existem entre vários sistemas de crenças, o modo como as sociedades se erguem e desaparecem. É também um romance que se preocupa muito com a linguagem.

PB - Prossegue os seus temas de eleição?

DS - Todos os meus romances fazem parte de um mesmo universo autoral, cujos temas basilares são o fantástico, o oculto, a história. O romance "Batalha" inscreve-se nesse universo, mas, por ter animais como personagens principais, foge um pouco à linha dos romances anteriores. Há uma grande alegoria que vai buscar material às mitologias maçónicas e alquímicas, e também à tradição mágica portuguesa e às nossas lendas populares.

PB - Porquê animais? Possibilita ir-se mais longe?

DS - Falar pela voz dos animais é uma boa forma de falar sobre os nossos próprios assuntos e as nossas próprias preocupações. Garante um distanciamento que nos faz observar as coisas de um modo muito mais isento. E isso é importante para se chegar a conclusões pertinentes e importantes. Neste caso em particular, o distanciamento resultante de falar do fenómeno religioso a partir da voz dos animais permitiu introduzir a minha própria voz, que, no que diz respeito à crença, está bastante distante destes assuntos do fenómeno religioso. Foi uma forma que encontrei de reunir essas duas vozes.

PB - Como funcionam as duas vozes?

DS - Apesar de escrever sobre estes temas, em que o fantástico se entrosa com o oculto, o hermetismo, o mitológico, não tenho crenças no sobrenatural, nem no religioso, nem na vida após a morte. Enquanto indivíduo, sou ateu. Mas a minha voz autoral dirige-se para estes assuntos, gosto de falar deles. O ponto de vista dos animais no livro "Batalha" é um ponto de vista distante, um pouco como se fosse o meu.

PB - Criar deuses e religiões é algo muito humano…

DS - Do ponto de vista científico será legítimo questionarmos se os animais têm religião? Bom, o certo é que está provado pela neurociência que os animais têm superstições, criam rotinas e vícios. Nesse sentido estão em sintonia connosco. Agora, para darem o passo além e acreditarem numa religião, seria preciso que os animais tivessem consciência da sua própria mortalidade, coisa que poderão não ter. Aquilo que separa uma religião de outra crença partilhada é que uma religião promete a salvação após a morte.

PB - O entrosamento da ficção com a história obriga a uma grande pesquisa?

DS - Sim. A pesquisa é feita toda no início. Proponho-me a escrever sobre determinado assunto, tento ler tudo o que encontrar sobre ele e depois começo a organizar a história. É delineada em esqueleto, num organigrama rigoroso, que é seguido à risca na fase da escrita. É raro desviar-me desse esqueleto, embora haja sempre espaço para o improviso.

PB - O género fantástico nem sempre é bem visto. Os prémios que o David ganha tornam-no um representante desta literatura?

DS – Antes de mais, infelizmente o mercado do fantástico, nos últimos dez anos, tem sido abanado por alguns fenómenos de mediatismo, cá e lá fora, em áreas que não passam pela literatura. E esse mediatismo cria algumas modas. As modas têm um lado bom, que é introduzir algumas pessoas a géneros que não conhecem, mas têm o reverso que é fazer com que todos os produtos desse género tenham de ser iguais, o que rouba diversidade e espontaneidade. No entanto, não olho para mim como sendo representante de nada. Faço o meu trabalho o melhor que consigo e tento fazer obras que não me envergonhem quando as for revisitar. O género fantástico tem uma vantagem: se as coisas forem bem feitas, os livros dificilmente se deixam datar. Para mim é muito importante criar um livro que perdure no tempo, que conserve a frescura.

PB - Além do romance, tem outras áreas literárias em que investe, não é?

DS - Na essência, sou um escritor e trabalho com linguagens literárias. O romance, o conto, o ensaio e a escrita de banda desenhada são linguagens que pertencem ao espectro das linguagens narrativas. Mesmo a banda desenhada, que é narrativa antes de ser visual. Nesse sentido, o trabalho que desenvolvo em cada linguagem é enriquecedor porque vai alimentar formas de fazer coisas noutras áreas.»

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Published on August 29, 2011 09:17

August 15, 2011

David Soares em Castelo Branco no dia 17 de Agosto



Na próxima quarta-feira, dia 17, às 21H00, estarei no mítico bar/galeria Castrum Bar, em Castelo Branco, para apresentar o meu novo romance Batalha (Saída de Emergência). A data consiste no aniversário do Castrum Bar que se associa às livrarias Bertrand nesta iniciativa. Apareçam: haverá bolo de anos, livros e um autor.

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Published on August 15, 2011 06:44

August 12, 2011

Hoje Como Ontem



Em meados do século XVIII, um grupo de tipógrafos que trabalhava à jorna na oficina do burguês Jacques Vincent, na Rue Séverin, em Paris, matou à paulada uma série de gatos; os apanhados vivos foram enforcados num julgamento satírico, nas traseiras da gráfica. Nicolas Contat, um dos dois organizadores do Grande Massacre dos Gatos, como ficou conhecido o episódio, deixou-nos um pormenorizado relato escrito, no qual assume a identidade fictícia de Jerome. Foi, nas suas palavras, a coisa mais hilariante que alguma vez aconteceu durante a estadia dele na Rue Séverin.

Este assunto foi analisado pelo historiador norte-americano Robert Darnton no livro The Great Cat Massacre, and Other Episodes in French Cultural History (1984), onde se conclui que o caso, embora revestido de um certo sentimento de reprovação da parte dos desgraçados jornaleiros contra o patrão endinheirado, consistiu mais num acontecimento simbólico que numa proto-rebelião, à guisa de Revolução Francesa avant la lettre. Pese o truísmo de que os servos sempre desprezaram, em menor ou maior grau, os amos, os protestos sociais do Ancien Régime mantiveram-se sempre ao nível do "simbólico", já que a consciência de que seria possível a criação de outro sistema político, igualitário, era inexistente. Com efeito, o próprio Darnton, em The Great Cat Massacre, avança com a ideia de que a grande satisfação das classes mais desfavorecidas da Idade Moderna consistiu na humilhação das classes superiores, mas não na abolição destas. O desenvolvimento do massacre dos gatos na Rue Séverin só foi possível porque a tortura e morte ritual de gatos era já uma prática predominante; em principal, nas festas de São João Baptista, em que os infelizes felinos eram incinerados vivos em fogueiras quasi-inquisitoriais. Para tal, concorreram, de certeza, as crenças populares nas supostas aptidões dos gatos para fazerem mal ou as suas alegadas associações a práticas de bruxaria. Com base em diversos elementos causadores, interligados com religião e superstição, o gato foi seleccionado com especificidade como sendo um animal expiatório - e quando o senhor Séverin, mais a esposa, pediram aos empregados Jerome (Contat) e Léveillé que se livrassem dos gatos vadios que não os deixavam dormir com os seus miados incessantes, os dois aprendizes de tipógrafo decidiram realizar a tarefa ao estilo das copies que animavam os seus dias na oficina.

Carnavalescas, as copies eram arremedos de boçais peças teatrais com happenings, improvisadas com ruído e gargalhadas pelos tipógrafos e representadas, posteriormente, em repetidas vezes (daí chamarem-se copies) na oficina durante as horas de trabalho. Serviam, de igual maneira, como uma espécie de mnemónicas da própria cultura da compagnonnage tipográfica, que também estava sujeita a práticas de iniciação, promoção e julgamento: apesar de trabalhar com a palavra impressa, a "ordem" dos aprendizes e tipógrafos jornaleiros possuía uma distintiva cultura oral, associada à desordem, ao escárnio e à fête, manifestada em partidas e brigas nas tabernas e nas ruas.

Ora, foi o encontro da cultura oral dos tipógrafos jornaleiros (que, mais do que sentirem fidelidade para com a sua "classe social", mantiveram fortíssimos laços de fidelidade entre a sua classe profissional - à semelhança dos restantes ofícios da cidade), a cultura das brincadeiras ruidosas das copies, com a cultural popular predominante, aprovadora da morte festiva e cerimonial de gatos, que permitiu o Grande Massacre dos Gatos: o enforcamento dos gatos foi, pois, inspirado nos julgamentos ritualísticos ensaiados nas copies.

Adstringido no espaço e no tempo, o Grande Massacre dos Gatos não manifestou nenhum descontentamento social generalizado, nem nasceu no seio de uma rebelião. Foi um fenómeno sub-cultural, complexo, é certo, mas simbólico em vez de ser político.

O mais cómico é que, no melhor estilo truculento das copies, foi Contat quem subiu durante a noite ao telhado dos aposentos do patrão e se pôs a imitar um gato, para não o deixar dormir.

Imagem: First Stage of Cruelty, William Hogarth (1751).

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Published on August 12, 2011 19:47

August 8, 2011

"O Pequeno Deus Cego": novidades

O desenho e as cores de O Pequeno Deus Cego já estão terminados. Este álbum de banda desenhada, escrito por mim e desenhado por Pedro Serpa será lançado no próximo Festival Internacional de Banda Desenhada da Amadora, numa edição da Kingpin Books.



Consistindo numa alegoria passada no período da China "feudal", O Pequeno Deus Cego conta a história de Sem-Olhos, uma criança que poderá ou não ser um pequeno deus sobre a terra. Ao mesmo tempo que a mãe submete Sem-Olhos à violência das tradições locais, duas presenças misteriosas vão ajudá-la a descobrir a sua verdadeira origem.







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Published on August 08, 2011 16:37

July 29, 2011

July 27, 2011

The Living End: novo vídeo de Ava Inferi em desenvolvimento

A banda de gothic doom Ava Inferi prepara um vídeo para o novo single The Living End, pertencente ao álbum mais recente Onyx. Consistirá numa história de fantasmas, passada em Sintra. Tenho o prazer de anunciar que o vídeo contará com a minha participação, enquanto personagem, mas ainda terão de esperar um pouco até saberem qual será esse papel.
Mais novidades para breve.
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Published on July 27, 2011 07:29

July 21, 2011

Notas sobre Aleister Crowley e Fernando Pessoa - Segunda Parte

Hermetismo Pessoano


Citando Teresa Rita Lopes, autora do livro Pessoa Por Conhecer, é legítimo afirmar que Pessoa continua, ainda, por conhecer - e a dimensão hermética da obra e da vida do poeta será aquela que é desconhecida pela grande parte dos leitores.

Eduardo Lourenço teoriza que a heteronímia pessoana, em particular os registos de Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, são abordagens que Pessoa fez à obra de Walt Whitman, subordinadas a diferentes perspectivas; da eulogia ao histerismo. Uma leitura atenta não pode deixar de o compreender, mas esse jogo de simetria não desvirtua a dedução que a cronologia do desdobramento da personalidade pessoana influencia. De facto, Pessoa começou a criar seres fictícios desde muito novo: os primeiros pseudónimos são o Chevalier de Pas e o Capitaine Thibeaut, ambos criados quando ele tinha seis anos de idade. Mais tarde, continuou a inventar personagens imaginárias como os irmãos David e Lucas Merrick, Charles Robert Anon e o mais familiar do público Alexander Search, apontado pelos académicos como o primeiro heterónimo de Pessoa e autor do poema O Círculo, no qual surge uma frase que pode servir de mote a toda a heteronímia: «O meu pensamento está condenado ao símbolo e à analogia».

A obra poética de Pessoa espraia-se em três períodos animados por preocupações distintas: uma breve, e formativa, fase filosófico-cristã; uma fase neo-pagã; e, finalmente, uma fase gnóstica que corresponde às últimas duas décadas de vida do poeta. Paralelamente à evolução da obra, pode acompanhar-se a evolução do sentido que Pessoa procurava imprimir na vida, através do estudo do hermetismo e das "ciências" ocultas. A sua obra nunca deixou de ser, em momento algum, mais do que uma ferramenta para ajudá-lo a alcançar o objectivo dessa busca espiritual, um muito nítido espelho do caminho esotérico traçado.

Antes de interessar-se pela Teosofia, pelo Rosicrucismo e pela Franco-Maçonaria, Pessoa revelou ter passado por uma série de experiências mediúnicas, confessadas pela primeira vez numa carta enviada à sua Tia Anica, também espírita, na qual escreveu: «Estou desenvolvendo qualidades não só de médium escrevente, mas também de médium vidente. Começo a ter aquilo a que os ocultistas chamam "a visão astral", e também a chamada "visão etérica"». Os espíritos que falam com Pessoa, como Henry More, Wardour e J. H. Hyslop, fazem-no com vozes mefistofélicas, até, comentando os últimos poemas escritos e oferecendo conselhos sentimentais que traduzem a sexualidade conturbada do seu invocador. Não é de todo estranho este fascínio pelo mundo fantasmático dos espíritos, porque, enquanto poeta – enquanto bardo –, a etimologia suporta essas inclinações: vates, o étimo latino de poeta, significa profeta ou numa tradução mais apurada: "aquele que tem visões". O próprio Hermes, de onde deriva a palavra hermetismo, era o mensageiro que fazia a comunicação entre o mundo dos mortos e o mundo dos vivos. Antes de assumir-se como criador de mitos, Pessoa procurou ser um emissário dessa estirpe hermética, traduzindo para português títulos como O Compêndio de Teosofia, de Charles Leadbeater, e A Voz do Silêncio, de Helena Blavatsky. Ainda no papel de emissário hermético, criou a tipografia Íbis, aludindo ao deus Thot, o equivalente egípcio do Hermes grego. O Íbis era também uma designação antiga, que o acompanhava desde a infância, e que se resumia a um disfarce teriomórfico vestido pelo poeta em diversas ocasiões: ele fingia ser um íbis em diversos momentos, em brincadeiras com os sobrinhos ou mesmo em passeios com o resto da família.

O interesse de Pessoa pela astrologia remota desde a adolescência e os registos astrológicos de maior complexidade e segurança datam de 1908, ou seja desde os vinte anos de idade. Pessoa planeou escrever um grande tratado de astrologia, sob o nome do heterónimo Raphael Baldaya, obra na qual apresentaria um estudo astrológico do país. Nunca chegou a escrever esse livro, mas deixou-nos um horóscopo de Portugal onde anotou posições ocupadas por Neptuno, planeta regente do signo Peixes, o "signo de Portugal", em momentos particulares da nossa história, como a derrota de Alcácer-Quibir ou a invasão espanhola de Lisboa. Pessoa deixou-nos temas astrológicos dos heterónimos e dele próprio, onde escreveu que a data da sua morte seria em Maio de 1935. Falecido em Novembro, a previsão apenas falhou por seis meses.

O sistema mágico intitulado O Caminho da Serpente, criado e desenvolvido por Pessoa, foi divulgado pela primeira vez no livro Fernando Pessoa e a Filosofia Hermética, de Yvette Kace Centeno. Trata-se de um sistema mágico que, aparentemente, resgata elementos pitagóricos, rosicrúcios e cabalísticos. Por desvendar encontra-se o significado da nomenclatura, assim como o sentido e o uso. Sabe-se que Pessoa devotou concentração a este tema no seguimento da demanda por iluminação hermética que o levou desde a mediunidade até à astrologia e da teosofia até à maçonaria. Não se revendo em nenhuma das tradições ocultistas que, por breves períodos, adoptou, Pessoa decidiu criar o seu próprio sistema mágico, já perto da data da morte.

Na minha opinião, o que é surpreendente n'O Caminho da Serpente é a depuração: não há nada de acessório nos escritos que Pessoa deixou sobre o sistema, assim como a simbologia geométrica que o compõe, a fazer lembrar as estruturas ocultas empregues nas telas de Almada Negreiros (seu companheiro tardio da boémia lisboeta e ocultista), está em sintonia com toda a tradição geomágica ocidental, desde os teoremas de Abellio até aos modernos sigilos de Austin Osman Spare.

Intui-se que O Caminho da Serpente é essencialmente simbólico (a fazer lembrar, lá está, o vaticínio expresso no poema O Círculo de Alexander Search), e a sê-lo remete-me para a simbologia do próprio caduceu hermético: o bastão erecto onde se enrolam duas serpentes, trepando em direcção à coroa alada. Ora Pessoa, designou por Fogo a parte superior da Bexiga de Peixe na qual inscreveu esse sistema mágico e designou por Terra o vértice inferior. Essa elevação da serpente, que assim se ergue da Terra – do lodo primordial – em direcção ao Fogo – à Imaginação – é o sentido oculto do bastão de Hermes; e, hoje em dia, encontra uma simetria tremenda com a estrutura em dupla espiral da molécula de ADN, descoberta dezoito anos depois da morte do poeta. Mas já no baralho de Tarot criado por Aleister Crowley e desenhado por Lady Frieda Harris se pode ver no Arcano Maior, O Universo, uma profecia dessa descoberta, caracterizada pela mulher que dança com a serpente, rodeada pelos quatro elementos e vigiada pela presença ocular da Mónade da qual tudo emana.

Uma representação artística que encerra na perfeição essas premissas é o painel de azulejos que o Mestre Lima de Freitas pintou para a plataforma da gare ferroviária do Rossio.


David Soares, Lisboa 2007

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Published on July 21, 2011 10:24

Notas sobre Aleister Crowley e Fernando Pessoa - Primeira Parte

Aleister Crowley: A Obra ao Vermelho

Crowley acompanhou a morte do século XIX e viveu no período mais violento do século XX, absorvendo horror e glamour para construir uma lenda pessoal. Foi um reconhecido alpinista e liderou as primeiras expedições às montanhas Kangchenjunga, no Nepal, e Chogo Ri (K2), nos Himalaias, antes de encarrilar a toda a velocidade no caminho da Magia. Em 1902, depois de visitar o amigo ocultista Allan Bennett, em Ceilão, Crowley começou a misturar os ritos orientais e o tradicional hermetismo ocidental com o objectivo de criar um novo sistema mágico. Na verdade, unir o sexo à magia não era um conceito inédito e Crowley deveria conhecer, com toda a certeza, os trabalhos de Paschal Beverly Randolph (que sentia um pavor patológico pela masturbação: prática fundamental na disciplina de Crowley) e de Alice Bunker Stockham (que desenvolveu o método Karezza: doutrina mais cúmplice da profilaxia que da magia, mas que, mesmo assim, advogava a sacralização do orgasmo). Nas sociedades iniciáticas criadas ou lideradas por Crowley, como a Argenteum Astrum (fundada após a saída da Hermetic Order of the Golden Dawn) e a Ordo Templi Orientis, o misticismo encontra-se impregnado de ritos de natureza sexual.

É seguro conjecturar que o advento da revolução sexual que rompeu na década de sessenta do século passado foi previamente ensaiado por Crowley e pelos "thelemitas" nos decénios de vinte e trinta. Sem a publicação da revista The Equinox, o conhecimento hermético aí revelado continuaria a ser coutada de exclusivas fraternidades secretas; e, aqui, o trabalho de Crowley na fertilização do imaginário ocidental foi importantíssimo: não enquanto criador de mitos, como Fernando Pessoa, seu amigo, almejava ser, mas como polinizador – aliás, o papel do Mago por excelência; cujo símbolo (a varinha) não deixa de se revestir com sentido alegórico correspondente à sexualidade.

Não creio que Crowley tivesse sido um homem mau, como o epíteto 'The Wickedest Man in the World' (apresentado pela primeira vez no jornal inglês John Bull) sugere. Penso que foi, no seu pior, muito egoísta (com péssimas consequências), mas sem cair no diabolismo cinemático que os media patentearam. Excepto na aproximação que faz ao individualismo filosófico (antecipando o Objectivismo cunhado pela escritora Ayn Rand) a doutrina "thelémica" nada tem de satânico ou de satanista. Em primeiro lugar, tal como se encontra descrita por Crowley, trata-se de um sistema iniciático, logo procura transmitir conhecimentos ocultos através de mensagens e rituais que namoriscam com o sobrenatural. Em seguida, o trajecto que o adepto precisa de cumprir nesse caminho iniciático é ferozmente demolidor do ego. E, para terminar, a disciplina de Thelema ainda incita o indivíduo na direcção de uma espécie de consciência social. Para isso concorreram as fontes de inspiração de Crowley: proto-anarquistas como François Rabelais e Jonathan Swift, mas também teóricos anarquistas e socialistas como Gracchus Babeuf, Louis Blanquis e Pierre Proudhon. É preciso lembrar que The Book of the Law foi recebido por diversos leitores como sendo um livro comunista e que Mussolini expulsou Crowley de Itália, alegando que a Abadia de Thelema, em Cefalù, era um órgão comunista. É confuso constatar que Crowley, inglês imperialista, manteve uma relação calorosa com ideias revolucionárias desta estirpe. Não é, pois, sensato ler o trabalho da auto-denominada Besta do Apocalipse, para quem o fin de siécle era todos os dias, sem ter em mente o sentido de humor provocante e escatológico que o atravessa. E sobre um autor cuja vida é impossível dissolver da obra, a exegese biográfica deve efectuar-se sob a mesma iluminação.

Inversamente aos trabalhos de outros ocultistas seus contemporâneos, junto dos quais foi buscar inspiração, a obra literária que deixou inscreve-se sem qualquer dificuldade no cânone ocidental da literatura hermética; e, pela porta grande, por avanço do já citado The Book of the Law, publicado pela primeira vez no décimo número da revista periódica The Equinox. Texto deliberadamente contraditório, The Book of the Law, a base do sistema mágico crowleyano, é, na minha opinião, uma colagem ao sistema dos Três Tempos (ou Eras) como foi plasmado pelo abade cisterciense Joaquim de Fiore. Ignoro se Crowley procurou esse mimetismo de modo consciente, mas é muito possível, pois possuía um conhecimento enciclopédico sobre hermetismo e tradições mágicas. O que interessa reter é que em virtude da aproximação que faz ao modelo de Fiore (os Tempos do Pai, do Filho e do Espírito Santo), Crowley conseguiu imprimir em The Book of the Law uma longevidade nutrida pela ressonância arquetípica: ou seja, o texto prolonga o impacto provocado na recepção, porque comunica connosco de um modo mais profundo que outros mitos mais juvenis.

A encadernação da edição do livro Moonchild, de Aleister Crowley, que a Sphere Books publicou na colecção The Dennis Wheatley Library of the Occult, em 1974, é bastante conveniente, já que um observador atento não pode deixar de ver Ra-Hoor-Khuit, ou Harpócrates, a versão infante de Hórus, sendo presenteado com a herança de Hadit, o embaixador do Tempo do Pai no segundo capítulo de The Book of the Law. Essa responsabilidade, simbolizada pela caveira, à guisa de fóssil de Ano Velho, é a referência da passagem de testemunho para o Tempo do Filho: o Éon de Hórus.

A sincronicidade desta imagem causa-me admiração; e se é verdade que Wheatley, mero anfitrião dessa colecção, à qual apenas emprestou o nome e o prestígio, foi alheio à escolha, é legítimo adivinhar que ela deixaria Crowley muito feliz.


David Soares, Lisboa 2007

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Published on July 21, 2011 10:20

Notas para uma exegese maçónica e hermética de "Blood Meridian" de Cormac McCarthy

(Esclarecimento: este pequeno ensaio foi escrito em 2005, para O Sonho de Newton, o weblog que eu mantinha nessa altura. Encontrei-o hoje, enquanto procurava outro texto, e achei que seria interessante republicá-lo.)


Horizonte sangrante

Em Blood Meridian, Cormac McCarthy (The Orchard Keeper, All The Pretty Horses, No Country For Old Men, The Road), propõe uma leitura tremenda sobre um grupo de desventureiros que atravessa o deserto norte-americano, em direcção ao México, numa demanda sanguisedenta por escalpes índios e latinos. Quem lidera os doze homens é o juiz Holden, homem de cultura, mas não menos bestial que os seus cães de guerra. Na base da pirâmide do poder encontramos Kid, um puto de catorze anos, engajado na pandilha por Toadvine, um criminoso brutal que já tentara matá-lo.

A linguagem usada por McCarthy é riquíssima; tão ritmada que o romance ganha um novo fôlego quando lido em voz alta. O uso do calão e do linguajar hispânico pontua com excentricidade este notável esforço literário. Com efeito, Blood Meridian concatena de modo perfeito duas fórmulas distintas: a acção violenta do western e o simbolismo hermético.

Blood Meridian é um romance gnóstico, mesclado de maçonaria e alquimia.

Alvenaria Insubstancial

No capítulo XI o juiz Holden narra um episódio que se conjectura auto-biográfico e que evoca – insuspeitamente – o mito de Hiram Abiff, o Filho da Viúva do mito maçónico: suposto arquitecto do Templo de Salomão, assassinado à traição por três obreiros, Jubela, Jubelo e Jubelum, quando pretendiam fazê-lo confessar os sinais secretos do ofício para progredirem na ordem sem diligência.

«As they walked (...) He Killed him with a rock and he took his clothes and bloodied himself with a flint and he told his wife they had been set up by robbers and the young traveler murdered and him only escaped. She began to cry and after a while she made him take her to the place and she took wild primrose which grew in plenty thereabout and she put it on the stones and she came there many times until she was old.

The harnessmaker lived until his son was grown and never did anyone harm again. As he lay dying he called the son to him and told him what he had done. (...) But the boy was not sorry for he was jealous of the dead man and before he went away he visited that place and cast away the rocks and dug up the bones and scattered them in the forest and then he went away. He went away to the west and he himself became a killer of men.

The old woman was still living at the time and she knew none of what had passed and she thought that wild animals had dug the bones and scattered them. Perhaps she did not find all the bones but such as she did she restored to the grave and she covered them up and piled the stones over them and carried flowers to that place as before. When she was an old woman she told people that it was her son buried there and perhaps by that time it was so.»

É possível reconhecer neste trecho o arquétipo do mito osiriano do esquartejamento e difusão dos fragmentos do falecido ancestral, que também pertence a outras culturas, como temos oportunidade de ler, por exemplo, no Kalevala, conjunto de contos do folclore finlandês, compilados por Elias Lönnrot em 1835, no qual os pedaços de Lemminkäinen, o irmão da personagem principal Väinämöinen, são resgatados pela mãe, a deusa Ilmatar, das águas do Tuonela, o mundo inferior.

Em seguida, no capítulo XXII, íntimo da conclusão de Blood Meridian, Kid encontra os cadáveres exenterados de um grupo de confrades, cobertos com o que parece ser uma forma vetusta de vestuário maçónico. Na vizinhança dos despojos sangrentos a personagem descobre uma anciã agachada no chão.

«He made his way among the corpses and stood before her. She was very old and her face was gray and leathery and sand had collected in the folds of her clothing. She did not look up. The shawl that covered her head was much faded of its color yet it bore like a pattern woven into the fabric the figures of stars and quartermoons and other insignia of a provenance unknown to him. (...) He reached into the little cove and touched her arm. She moved slightly, her whole body, light and rigid. She weighed nothing. She was just a dried shell and she had been dead in that place for years.»

Poderá esta personagem descaroçada ser a viúva mencionada no relato de Holden?

A paisagem rochosa do deserto norte-americano é ela própria a Pedra Bruta da Fundação que o iniciado sem avental precisa deslindar. Sob o Sol refulgente, símbolo de vida, força e equilíbrio, o Aprendiz ou Companheiro deve livrar-se das imperfeições que enodam o espírito e corrigir a facie acidentada da sua Obra, transmutando-a em Pedra Cúbica. Os cascos dos cavalos montados pelos 13 companheiros de viagem através do roteiro desse habitat ermo escolhido por Holden levantam sons anteriormente ocultos no solo que soam através das camadas estratigráficas mais fundas, reverberando com significação nas três paredes do Templo de Salomão: a oriente, a sul e a ocidente. A América selvagem é toda ela iniciática na visão de McCarthy: as crostas magmáticas que cobrem a terra e a areia criam nichos que convidam à oração e os violentos peregrinos que se refrigeram à sombra são Cavaleiros do Templo.

«Their spirit is entombed in the stone. It lies upon the land with the same weight and the same ubiquity. For whoever makes a shelter of reeds and hides has joined his spirit to the common destiny of creatures and he will subside back into the primal mud with scarcely a cry. But who builds in stone seeks to alter the structure of the universe and so it was with these masons however primitive their work may seem to us.»

Holden, descrito a dada altura como se fosse uma espécie de manatim humano, é uma figura alva que personifica Satã: o Cristo da Tradição Gnóstica. Holden, ou Ialdabaoth o Demiurgo, transfere para Blood Meridian outro avatar da literatura de língua inglesa: o leviatã de Herman Melville. Transcrevo de Moby Dick, do capítulo XLII, The Whitness of the Whale:

«This elusive quality it is, which causes the thought of whiteness, when divorced from more kindly associations, and coupled with any object terrible in itself, to heighten that terror to the furthest bounds. Witness the white bear of the poles, and the white shark of the tropics; what but their smooth, flaky whiteness makes them the transcendent horrors they are? That ghastly whiteness it is which imparts such an abhorrent mildness, even more loathsome than terrific, to the dumb gloating of their aspect. (…) What is it that in the Albino man so peculiarly repels and often shocks the eye, as that sometimes he is loathed by his own kith and kin! It is that whiteness which invests him, a thing expressed by the name he bears. The Albino is as well made as other men - has no substantive deformity - and yet this mere aspect of all-pervading whiteness makes him more strangely hideous than the ugliest abortion. Why should this be so?»

Este homicida pederasta de infinita sageza criado por McCarthy compila um bestiário natural num canhenho de bolso, desenhando fauna e flora que encontra no progresso das viagens.

«Toadvine sat watching him as he made his notations in the ledger, holding the book toward the fire for the light, and he asked him what was his purpose in all this. (...) The judge wrote on and then he folded the ledger shut and laid it to one side and pressed his hands together and passed them down over his nose and mouth and placed them palm down on his knees.

Whatever exists, he said. Whatever in creation exists without my knowledge exists without my consent. (...) The freedom of birds is an insult to me. I'd have them all in zoos.»

Esta unidade faz-me recordar uma personagem muito semelhante a Holden: John Steep – do romance Sacrament de Clive Barker; outra viagem iniciática, mas disfarçada de thriller homoerótico. A personagem principal é Will Rabjohns, um fotógrafo de espécies em vias de extinção.

«This is death. This is what you've photographed so many times. (...) All ephemeral things, running out of time.»

Steep, o vilão, cônjuge de Rosa McGee, que o acompanha nas suas incursões centenárias, viaja pelo globo procurando os últimos indivíduos das espécies mais raras para os matar.

«This will not come again... Nor this, nor this…»

Steep e Holden perseguem uma obssesão pelo Todo, mas a sede de sabedoria amedronta-os em vez de os iluminar e a regeneração de ambos cumpre-se pela violência. No final de Sacrament aprendemos que Steep e McGee são um Rebis, uma criatura chamada Nilotic, outrora dividida pela nigromância e reunida na conclusão da história. Ora em Blood Meridian, o juiz Holden, terror das crianças e dos animais, e Kid, arquétipo do neófito, acabam o seu percurso desta forma:

«The Judge was seated upon the closet. He was naked and he rose up smilling and gathered him in his arms against his immense and terrible flesh and shot the wooden bartlach home behind him.»

Mais nenhuma informação nos é dada sobre o destino de Kid e a cena seguinte ao segmento que apresentei é presenciada pelos figurantes, mas sonegada ao leitor. Seguidamente o juiz Holden emerge e junta-se a uma pequena bacchanalia que se organizou espontaneamente no saloon. O romance termina com Holden a dançar.

«Towering over them all is the judge and he is naked dancing, his small feet lively and quick and now in doubletime and bowing to the ladies, huge pale and hairless, like an enormous infant. He never sleeps, he says. He says he'll never die.»

E se Holden e Kid se fundiram, criando uma coisa repetida - um Rebis?

O grau de surpresa nas exclamações de pânico das testemunhas diante da cena escondida do leitor são muitíssimo suspeitas e conduzem a imaginação na direcção de algo, no mínimo, fabuloso.

O ofício de juiz baptiza o Sétimo Grau do Rito Escocês Antigo e Aceite da Maçonaria Especulativa: Juiz, Preboste ou Mestre Irlandês. Número saturnino, o algarismo 7 evoca as Sete Fornalhas da Alma (sublimações) de que falou William Blake: as destilações repetidas que o neófito tem de cumprir no processo de pureza e rectificação.

No início da segunda parte do capítulo XV, podemos ver na fuga de Kid os passos de uma iniciação maçónica; e no capítulo X, na história narrada a Kid por Tobbin, o ex-padre, sabemos que Holden é um engenhoso alquimista que consegue usar enxofre e urina para criar pólvora, num processo que parece corresponder aos estádios que concorrem para a depuração do mercúrio filosofal através da sublimação na Grande Obra.

A figura encalvecida e juvenil do juiz lembra a de um homúnculo: criatura artificial, gerada num atanor. Mas Holden é um homúnculo diferente das representações canónicas referentes à criação desse género de pessoas artificiais, como as que Paracelsus nos deixou; e também não tem nada em comum com Tristram Shandy, outro homúnculo literário.

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Published on July 21, 2011 08:05