David Soares's Blog, page 49

December 5, 2012

Eles trazem ouro. Trazem ouro nas almas.

Sol Invicto by David Soares / Charles Sangnoir
«Aqui, a realidade não é a dominada pelos reis, nem a demarcada por racimosos reinos a eles consagrados pelos navegadores pós-medievais, mas a de um vastíssimo continente impossível de cartografar e onde convergem desiguais grandezas de lengalenga e fantasmagoria. Há música aqui, arreigada às vozes destes mortos simultâneos que parecem falar num prolépsico dialecto que soa a preguear de penas e brindes em copos de cristal. E, sobre todos, sobre a estupefacção esperançosa que os anima, está o Sol só deles.

O Sol invicto.
Invicto pelo sarcasmo e pela sordidez, mas também invicto pela violência e pela injustiça. Um Sol perfeito para uma insólita e rutilante ocasião; comburente e, por isso, inapreciável. Olhando para além das mulheres, dos homens e do asno, é possível ver que, como fósseis outrora cativos por grades estratigráficas ainda mais fundas, muitos outros anormais de Lisboa se aliaram à invencível convocação.
Antes dos anormais entrarem novamente em Lisboa, sem terem a certeza de que voltam para ficar, o trofoneurótico Mano das Manas aproxima-se de nós e oferece-nos com amabilidade uma caixinha de papelão pintado: as suas mãos aleijadas são pútridas, consumidas pelos sarcofamintos, mas a caixa resplandece com a luz imensa do Sol Invicto em escalas mais excelsas que as das jóias da Jerusalém Celeste. A pulcritude desse presente é tremenda – chamejante – e espiritualiza-nos os corações.
             Eles trazem ouro. Trazem ouro nas almas.»

(De «Sol Invicto» em «Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense» , spoken word escrito e interpretado por David Soares e musicado por Charles Sangnoir.)
 
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Published on December 05, 2012 11:29

December 1, 2012

Aleister Crowley: 1 de Dezembro de 1947



Além de ser o Dia da Restauração da Independência de Portugal, 1 de Dezembro também é a data da morte do mago inglês Aleister Crowley (no ano de 1947). Para lembrar esse homem tão incompreendido - não foi satanista, ou satânico, por exemplo, como tantas vezes aparece descrito na comunicação social sensacionalista -, cujas crenças pessoais até o aproximavam do ateísmo, partilho a minha leitura de um excerto do meu romance «A Conspiração dos Antepassados» (Saída de Emergência, 2007), no qual ele, juntamente com Fernando Pessoa, é protagonista.
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Published on December 01, 2012 12:03

November 30, 2012

O último feriado de 1 de Dezembro: entre o passado e o presente


Hoje é 1 de Dezembro, o dia da chamada Restauração de Portugal, que interrompeu cinquenta e nove anos de jugo espanhol, sob a dinastia filipina. Na verdade, a dita Restauração só se completou vinte e oito anos depois, cessando um período instável em que Portugal e Espanha (o correcto é dizer Portugal e Castela), numa espécie de "guerra fria" traiçoeira em que várias vezes o exército castelhano entrou por território nacional adentro, cristalizaram um antagonismo que ainda perdura nos chavões mais ou menos rancorosos e humorísticos que circulam nos nossos dias sobre aquilo que os espanhóis pensam dos portugueses e sobre aquilo que os portugueses pensam dos espanhóis. Porém, e como em quase tudo o que faz parte da exegese da história, a verdade não é tão simples quanto parece e no que concerne à perda da independência de Portugal para Espanha ela não consistiu numa perda de independência como hoje entendemos esse conceito: para efeito de simplificação, pode dizer-se que Portugal passou a ser governado por um rei que também governava os diferentes três reinos espanhóis (Castela-Leão-Galiza, Navarra e Aragão), mas o nosso país nunca foi integrado na Espanha - que, esclareça-se, nem sequer existia enquanto estado único. Os Filipes de Portugal nunca se intitularam reis de Espanha, por exemplo: a ideia de uma Espanha unificada - um estado uno - foi um conceito que só começou a tomar forma mais à frente, com o reinado de Filipe V de Espanha. Acrescente-se que Filipe II de Espanha, I de Portugal, nem sequer era espanhol: era neto de D. Manuel I, com mãe portuguesa e pai alemão (D. Isabel de Portugal e Carlos de Habsburgo, V imperador do Sacro-Império Romano-Germânico).
Avançando a partir daqui, importa reter que Portugal conservou-se enquanto reino e nunca foi a tal província espanhola que por vezes se ouve dizer: conservámos o aparelho jurídico, a administração das colónias, a moeda - e, quanto à língua, a Península Ibérica sempre foi meio-bilingue, para começar. A língua erudita em Portugal, a dada altura, passou a ser o castelhano: Camões e outros poetas portugueses escreveram em castelhano, por exemplo, muito antes de Filipe I de Portugal subir ao trono.

Somente a partir do reinado de Filipe III de Portugal é que a situação de relativa estabilidade - e até de progresso económico - que o reino de Portugal viveu com Filipe I e II começou a deteriorar-se, com a criação de novos impostos e uma política muito menos simpática para com a nobreza portuguesa que até aí frequentou com distinção e primor os corredores e os salões dos solares e palácios castelhanos. Foi um período turbulento em que na Catalunha, como hoje, sopraram ventos de separação com Castela; e Filipe III de Portugal deu ordens para que o exército português fosse ajudar a pôr os catalães na ordem. Estabeleceu-se, assim, as bases principais para fortalecer-se um enorme sentimento português de revolta, nobre e popular, contra Madrid.

Serviu este prolegómeno para, em seguida, introduzir o relato de um episódio operado pelos "conjurados" que arquitectaram a conspiração política que levou D. João IV ao trono e que eu considero interessantíssimo - sobretudo quanto cotejado com a actual conjuntura.

Em 1640, o secretário de estado português (equivalente ao actual cargo de Primeiro Ministro) era um indivíduo chamado Miguel de Vasconcelos. Era filho de outro burocrata, chamado Pedro Barbosa: homem que, pelo hábito de tanto se curvar diante de Madrid, de modo absolutamente inacreditável, não se salvou de ver a sua casa invadida e apedrejada pelos cidadãos de Lisboa, fartos dos seus abusos de poder (é o tal "povo de brandos costumes"); Barbosa fugiu, confundido e atrapalhado, mas foi descoberto e morto uns dias depois, não se sabe por quem. Sabe-se é que o seu filho, o supramencionado Vasconcelos, não menos subserviente à corte de Madrid (os relatos históricos denunciam que se tratava, de facto, de um indivíduo autoritário e insuportável) também não conheceu melhor destino: na manhã de 1 de Dezembro de 1640, os "conjurados" subiram até ao seu gabinete no Paço Real, no Terreiro do Paço, e debalde o procuraram para eliminá-lo. Diz-se que quando estavam quase a desistir, viram uma resma de papéis a cair de dentro de um armário: foram investigar e descobriram Vasconcelos escondido no interior. Abateram-no a tiro, como planeado, e, para mostrar à população que a revolução tinha começado, atiraram-no de uma janela para o Terreiro do Paço. Mas os "conjurados" tiveram azar, porque não havia quase ninguém no Terreiro do Paço para assistir à façanha: aparentemente, apenas andava por ali meia-dúzia de gatos-pingados, no lado oposto ao do Paço, que até estava com receio de se aproximar e de meter-se onde não era chamada. Então, para atrair gente para perto do corpo, os "conjurados" começaram a atirar pela janela todo o tipo de coisas que foram encontrando nos aposentos do malquisto Vasconcelos: em principal, uma baixela de prata e várias delícias, como doces e até queijos. O engodo funcionou e, de imediato, uma turba entusiasmada - entusiasmada com a revelada revolução e entusiasmada pelas dádivas requintadas - reuniu-se junto do cadáver e, com uma corda, arrastou-o pelas ruas de Lisboa.

Por um lado, temos o corrupto secretário de estado (primeiro-ministro), amiguista e servil aos pedidos de aumentos de impostos exigidos pelo rei estrangeiro, que é defenestrado para dar início a uma revolução política que, sem dúvida, devolveu Portugal a um rumo histórico independente - pois sem essa revolução, Portugal teria sido transformado inexoravelmente numa província espanhola, a partir do reinado de Filipe V de Espanha. Por outro lado, temos o povo medroso, apático, com receio de aproximar-se do cadáver estendido no Terreiro do Paço, e que só se avizinha com o lançamento de bens materiais e de comida pela janela. Eu acho que esta história dá muitíssimo que pensar.
Aproveitem para pensar nela neste dia que, por vontade do governo, será o último dia feriado de 1 de Dezembro.

(Imagem: Cena da Restauração. Gravura da obra «Histoire des Révolutions de Portugal» (1712) de René-Aubert Vertot.)
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Published on November 30, 2012 19:14

O último feriado de 1 de Dezembro: entre o passado e o presente


Hoje é 1 de Dezembro, o dia da chamada Restauração de Portugal, que interrompeu cinquenta e nove anos de jugo espanhol, sob a dinastia filipina. Na verdade, a dita Restauração só se completou vinte e oito anos depois, cessando um período instável em que Portugal e Espanha (o correcto é dizer Portugal e Castela), numa espécie de "guerra fria" traiçoeira em que várias vezes o exército castelhano entrou por território nacional adentro, cristalizaram um antagonismo que ainda perdura nos chavões mais ou menos rancorosos e humorísticos que circulam nos nossos dias sobre aquilo que os espanhóis pensam dos portugueses e sobre aquilo que os portugueses pensam dos espanhóis. Porém, e como em quase tudo o que faz parte da exegese da história, a verdade não é tão simples quanto parece e no que concerne à perda da independência de Portugal para Espanha ela não consistiu numa perda de independência como hoje entendemos esse conceito: para efeito de simplificação, pode dizer-se que Portugal passou a ser governado por um rei que também governava os diferentes três reinos espanhóis (Castela-Leão-Galiza, Navarra e Aragão), mas o nosso país nunca foi integrado na Espanha - que, esclareça-se, nem sequer existia enquanto estado único. Os Filipes de Portugal nunca se intitularam reis de Espanha, por exemplo: a ideia de uma Espanha unificada - um estado uno - foi um conceito que só começou a tomar forma mais à frente, com o reinado de Filipe V de Espanha. Acrescente-se que Filipe II de Espanha, I de Portugal, nem sequer era espanhol: era neto de D. Manuel I, com mãe portuguesa e pai alemão (D. Isabel de Portugal e Carlos de Habsburgo, V imperador do Sacro-Império Romano-Germânico).
Avançando a partir daqui, importa reter que Portugal conservou-se enquanto reino e nunca foi a tal província espanhola que por vezes se ouve dizer: conservámos o aparelho jurídico, a administração das colónias, a moeda - e, quanto à língua, a Península Ibérica sempre foi meio-bilingue, para começar. A língua erudita em Portugal, a dada altura, passou a ser o castelhano: Camões e outros poetas portugueses escreveram em castelhano, por exemplo, muito antes de Filipe I de Portugal subir ao trono.

Somente a partir do reinado de Filipe III de Portugal é que a situação de relativa estabilidade - e até de progresso económico - que o reino de Portugal viveu com Filipe I e II começou a deteriorar-se, com a criação de novos impostos e uma política muito menos simpática para com a nobreza portuguesa que até aí frequentou com distinção e primor os corredores e os salões dos solares e palácios castelhanos. Foi um período turbulento em que na Catalunha, como hoje, sopraram ventos de separação com Castela; e Filipe III de Portugal deu ordens para que o exército português fosse ajudar a pôr os catalães na ordem. Estabeleceu-se, assim, as bases principais para fortalecer-se um enorme sentimento português de revolta, nobre e popular, contra Madrid.

Serviu este prolegómeno para, em seguida, introduzir o relato de um episódio operado pelos "conjurados" que arquitectaram a conspiração política que levou D. João IV ao trono e que eu considero interessantíssimo - sobretudo quanto cotejado com a actual conjuntura.

Em 1640, o secretário de estado português (equivalente ao actual cargo de Primeiro Ministro) era um indivíduo chamado Miguel de Vasconcelos. Era filho de outro burocrata, chamado Pedro Barbosa: homem que, pelo hábito de tanto se curvar diante de Madrid, de modo absolutamente inacreditável, não se salvou de ver a sua casa invadida e apedrejada pelos cidadãos de Lisboa, fartos dos seus abusos de poder (é o tal "povo de brandos costumes"); Barbosa fugiu, confundido e atrapalhado, mas foi descoberto e morto uns dias depois, não se sabe por quem. Sabe-se é que o seu filho, o supramencionado Vasconcelos, não menos subserviente à corte de Madrid (os relatos históricos denunciam que se tratava, de facto, de um indivíduo autoritário e insuportável) também não conheceu melhor destino: na manhã de 1 de Dezembro de 1640, os "conjurados" subiram até ao seu gabinete no Paço Real, no Terreiro do Paço, e debalde o procuraram para eliminá-lo. Diz-se que quando estavam quase a desistir, viram uma resma de papéis a cair de dentro de um armário: foram investigar e descobriram Vasconcelos escondido no interior. Abateram-no a tiro, como planeado, e, para mostrar à população que a revolução tinha começado, atiraram-no de uma janela para o Terreiro do Paço. Mas os "conjurados" tiveram azar, porque não havia quase ninguém no Terreiro do Paço para assistir à façanha: aparentemente, apenas andava por ali meia-dúzia de gatos-pingados, no lado oposto ao do Paço, que até estava com receio de se aproximar e de meter-se onde não era chamada. Então, para atrair gente para perto do corpo, os "conjurados" começaram a atirar pela janela todo o tipo de coisas que foram encontrando nos aposentos do malquisto Vasconcelos: em principal, uma baixela de prata e várias delícias, como doces e até queijos. O engodo funcionou e, de imediato, uma turba entusiasmada - entusiasmada com a revelada revolução e entusiasmada pelas dádivas requintadas - reuniu-se junto do cadáver e, com uma corda, arrastou-o pelas ruas de Lisboa.

Por um lado, temos o corrupto secretário de estado (primeiro-ministro), amiguista e servil aos pedidos de aumentos de impostos exigidos pelo rei estrangeiro, que é defenestrado para dar início a uma revolução política que, sem dúvida, devolveu Portugal a um rumo histórico independente - pois sem essa revolução, Portugal teria sido transformado inexoravelmente numa província espanhola, a partir do reinado de Filipe V de Espanha. Por outro lado, temos o povo medroso, apático, com receio de aproximar-se do cadáver estendido no Terreiro do Paço, e que só se avizinha com o lançamento de bens materiais e de comida pela janela. Eu acho que esta história dá muitíssimo que pensar.
Aproveitem para pensar nela neste dia que, por vontade do governo, será o último dia feriado de 1 de Dezembro.

(Imagem: Cena da Restauração. Gravura da obra «Histoire des Révolutions de Portugal» (1712) de René-Aubert Vertot.)
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Published on November 30, 2012 19:14

November 29, 2012

Trolhamento pessoano


Aos caros leitores que se interessam por Maçonaria e Fernando Pessoa deixo a informação que no próximo dia 13 de Dezembro, no Centro Comercial El Corte Inglês, em Lisboa, será apresentado, às 18H30, o manual «Trolhamento dos 33 Graus do Rito Escocês Antigo e Aceite» , numa nova edição que reproduz os comentários e as anotações que Fernando Pessoa fez no seu exemplar. A edição é da São Rozas, com organização e prefácio de Miguel Rozas. A apresentação será feita por Félix Lopes. Um documento histórico interessantíssimo.
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Published on November 29, 2012 08:19

November 27, 2012

A heroicidade da inteligência


A única austeridade a que eu reconheço probidade é a da intransigência da inteligência contra a barbárie. Contra ela, e contra a fatuidade e a estupidez, erga-se a máxima inflexibilidade - erga-se toda a severidade. Este quadro, intitulado The Thinker: Portrait of Louis N. Kenton (1900), pintado pelo extraordinário artista norte-americano Thomas Cowperthwait Eakins, representa na perfeição a severidade a que me refiro. É um quadro que evoca um enorme sentimento de heroísmo; uma força intelectual fortíssima, imune ao superficial e à leviandade. Um ícone para um tempo hostil ao pensamento.
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Published on November 27, 2012 15:27

November 19, 2012

O futuro de Portugal

Observem com atenção a seguinte sequência de imagens, que mostra uma mulher a ser agredida pelo corpo policial de intervenção durante a vaga de dispersão operada sobre os manifestantes que se reuniram na passada quarta-feira, dia 14, em frente à escadaria do Palácio de São Bento, sede do parlamento, para protestarem contra o governo de coligação, liderado por Pedro Passos Coelho, (ainda) em vigência. Nesta ligação e nesta já escrevi sobre esta carga policial cobarde e degradante, que nos devia envergonhar a todos, por isso quem ainda não leu esses textos poderá fazê-lo quando desejar, mas, para já, peço que observem por uns instantes estas imagens.
  Peço-vos que se concentrem na expressão da mulher caída no chão. Não é um rosto anónimo. Tem um nome: esta mulher chama-se Cecília Silveira.A imagem e o nome circulam nas redes sociais. Cecília Silveira é «uma desempregada de longa duração, sem direito a qualquer apoio da Segurança social, e vive da caridade de amigos». Cecília «passa fome, nem rendimento de inserção recebe, não tem qualquer apoio a não ser dos amigos, muitas vezes de pessoas que têm muito pouco, mas que ainda conseguem dividir uma sopa, um pão, um abraço». No entanto, como se isso não fosse aviltante o suficiente, Cecília ainda foi injustamente agredida por um homem blindado, couraçado com capacete, viseira e cassetete, e, no mínimo, com o triplo da sua força física.Agredida com violência enquanto protestava, legitimamente, como era seu direito, contra as agressões igualmente violentas perpetradas pelo governo liderado por Pedro Passos Coelho. Atirada ao chão, perigosamente perto dos molossos que, esticando as trelas agarradas por criaturas não menos selvagens, salivam de antecipação sanguissedenta; atirada ao chão, perigosamente perto das biqueiras de aço das botas dos agentes do corpo policial de intervenção. Examinem o rosto de Cecília.É uma face fatigada.As pregas na pele, cinzeladas pela carestia e pelo desespero diários, têm, em vida, a retesia de um rigor mortis. Os olhos, vítreos como os de uma boneca, não reflectem a luz e só o gesto tímido de um braço estendido, que tacteia por auxílio, lhes empresta um ponto de fuga que nos deixa vislumbrar vida.Este é o rosto penoso de uma pessoa angustiada. Este é um rosto repleto de vergonha - profundamente humilhado. Um rosto confundido pela injustiça extrema de ser agredido quando já pouquíssimo havia para agredir.Observem bem este rosto. O rosto de Cecília.Este é o rosto que costumam ter as vítimas de crimes de guerra.Este é o rosto que se vira contra a parede à entrada do carrasco na cela. Este é um rosto totalmente deformado pelo desamparo.
Observem muito bem este rosto. Memorizem muito bem esta expressão.Olhem para o rosto de Cecília.E imaginem que é o rosto da vossa mãe.

Imaginem que é o rosto da vossa irmã. Ou da vossa filha.
Imaginem que é o vosso rosto - ali, atirado ao chão, entre os animais.Interroguem-se: esta é a sociedade em que querem viver? Interroguem-se: querem que este governo continue a governar-nos? Um governo que classificou a carga policial retratada acima como: «impecável», «estóica», «adequada», «profissional», «notável», «serena», «firme», «cheia de profissionalismo», «inevitável».
Olhem para o rosto na fotografia acima: devem-lhe uma resposta para estas perguntas. Devem-lhe a vossa vergonha sobre a desprezível manobra de estratégia do medo, orquestrada com maquiavelismo, a que se assistiu na passada quarta-feira. Devem-lhe aquilo que o governo lhe tem negado: humanidade.   Este é o rosto da desumana ideologia neo-liberal, desenvolvida em meados dos anos setenta do século passado pela chamada "Escola de Chicago": grupo de economistas do departamento de economia da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, do qual fez parte o "monetarista" Milton Friedman, o principal pugnador da doutrina económica neo-liberal que veio a ganhar uma preponderância cada vez maior na política ocidental, desde o início da década de oitenta do século passado.
Engendrada como teoria económica, cujo único objectivo é, evidentemente, maximizar os lucros independentemente dos meios (o famoso slogan «money matters» é um dos seus mais conhecidos cartões de visita), a ideologia neo-liberal defende o desmantelamento do papel do estado na fixação e autorização de preços, o desregulamento total da banca privada, a privatização total dos serviços públicos e a extinção do salário mínimo.
Entretecida com o mundo da política, a ideologia económica neo-liberal transforma-se numa devastadora ferramenta de engenharia social que extingue a classe média e cria, somente, dois tipos de classes: a dos muito ricos e a dos muito pobres.
Um governo neo-liberal é um governo plutocrático: ou seja, é um governo dos muito ricos para exclusivo benefício dos muito ricos. O neo-liberalismo cria uma espécie de nova nobreza, mas uma que frui das grandes fortunas e não das famílias ancestrais de outrora. É uma política nova para cristalizar um mundo novo: um mundo que, para os muito ricos, é um mundo de facilidades e felicidades, mas que, para os muito pobres, é um mundo de desespero vivido no limite da sobrevivência.
No vídeo abaixo poderão ver como um par de anos de aplicação de ideologias neo-liberais na Grécia já acabaram com a sua classe média. O que acabo de escrever é, reitero, totalmente factual: isto é a doutrina económica neo-liberal escalpelizada ao nível mais elementar.     


As pessoas que viram neste vídeo poderão ser vocês em Março de 2013.Quando receberem o vosso vencimento do próximo Janeiro, truncado pelas lâminas do orçamento de estado para 2013 que o governo vai aprovar em definitivo no próximo dia 27 de Novembro, talvez comecem, de facto, a prestar atenção ao que se está a passar em Portugal: usando a crise financeira como Cavalo-de-Tróia, o governo de coligação liderado por Pedro Passos Coelho está a usar o bê-a-bá do neo-liberalismo para empobrecer compulsoriamente o país, desvalorizar todos os salários e reduzir o salário mínimo para extingui-lo, desqualificar os indivíduos e privatizar todos os serviços públicos (incluindo a RTP com o seu arquivo histórico, a Caixa Geral de Depósitos e, ainda, património cultural e histórico) para transformar Portugal numa nação de trabalhadores pobres, no limiar da sobrevivência, que sirva de incubadora de mão-de-obra barata para os sectores secundários estrangeiros que, aliciados pelos salários miseráveis aqui aplicados, abrirão fábricas e manufacturas diversas como se não houvesse amanhã.
E, com efeito, para nós, aqueles que desejariam viver em Portugal com dignidade, poderá não haver amanhã nenhum.O rosto de Cecília - não duvidem - é o nosso rosto. E poderá ser rosto do futuro de Portugal.
Com cinismo, o governo pede-nos para sairmos das nossas "zonas de conforto": poderemos, juntos, mostrar-lhe que isso quer dizer algo bem diferente daquilo que ele está à espera. Não temos nada a perder, a não ser o nosso futuro.
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Published on November 19, 2012 22:10

Crítica argentina a «O Pequeno Deus Cego»


Excelente crítica a O Pequeno Deus Cego (Kingpin Books), escrito por mim e desenhado por Pedro Serpa no weblog do crítico argentino Fernando Ariel Garcia:
«Como en toda la obra de Soares, el mejor guionista de la historieta portuguesa contemporánea, O pequeno deus cego cuenta con las palabras justas.En este caso, cortas como puñales. Ideales para abordar las paradojas que exhibe la Creación, las similitudes y diferencias que hacen de los contrarios una fuerza primaria capaz de retroalimentarse y definirse por comparación. Como un mago, Soares navega entre la vida y la muerte, entre el sueño y la conciencia, entre la palabra y la imagen, entre la alegría y el sufrimiento.»


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Published on November 19, 2012 15:29

November 18, 2012

Raposices


Caros leitores, ontem descobri esta fofura de aldraba que não aldraba ninguém: é uma Raposa. Ora, a Raposa, por razões misteriosas que nem os mais doutos discernem, é o meu tóteme. Se algum dos caríssimos souber onde posso encontrar uma relíquia igual ou similar, por favor, envie-me essa informação por email para o endereço de contacto que está no canto superior direito do ecrã. Agradeço, em avanço, a vossa perspicácia e boa vontade. Abraços negros.

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Published on November 18, 2012 18:34

November 17, 2012

A Falácia da Força: ou, O "Respeitinho"


Partindo dos louvores que o governo tem difundido nos diversos órgãos de comunicação social sobre a degradante carga policial de dissipação, operada na passada quarta-feira, dia 14 de Novembro, pelo corpo de intervenção sobre os manifestantes reunidos em protesto diante da escadaria do Palácio de São Bento, sede do parlamento, credibilizou-se com cunho oficial nas mentes de ouvintes e espectadores que não só se deve repudiar totalmente toda a espécie de violência como ainda se levantou o fantasma de que protestos fortes não são a "maneira portuguesa" de encostar à parede um governo injusto e profundamente desumano que está, neste preciso momento - contando com a política de terra-queimada consagrada no orçamento de estado para 2013; sobretudo, nas medidas adicionais já anunciadas, que serão implementadas em Março desse ano -, prestes a exanguinar as últimas gotas de lucro que ainda pode espremer-se dos vencimentos mensais de milhões de famílias cada vez mais falidas e cada vez mais desesperadas.
É falso que exista uma "maneira portuguesa" de protestar.
Assim como é igualmente falso que exista uma "maneira grega" de protestar, ou uma "maneira espanhola" ou uma "maneira alemã" ou "francesa": existe o protesto, ponto.
Esta espécie de generalizações populares, estribadas naquilo que é suposto ser os espíritos ou as qualidades distintivas de sociedades e de etnias, são falsidades tremendas que já foram desacreditadas há muito pelas investigações rigorosas das ciências e das humanidades e que só subsistem atavicamente nas psiques dos políticos e de outras figuras de autoridade para, com maior facilidade, rotular-se e conduzir-se de modo mais lucrativo as vidas dos indivíduos e os destinos das populações.O acto de protestar é, por natureza, intrinsecamente violento - atentando às circunstâncias e objectivos de um protesto, em especial, ele pode realizar-se com menor ou maior grau de violência, mas se não for violento - se não for forte - não é protesto nenhum.
Sobre violência, ela pode exercer-se em vários estados: verbalmente, fisicamente e psicologicamente. Por conseguinte, que não haja ilusões: este governo de coligação (coligação que não foi sufragada popularmente, logo ninguém votou neste governo), liderado por Pedro Passos Coelho, é extraordinariamente violento, até extremista, e não vacila em pressionar os indivíduos com as políticas mais devastadoras - indo muitíssimo além dos objectivos traçados em memorandos sob a supervisão da Troika -, quase sempre demonstrando um cinismo irónico e atroz por todos os que não se encaixam a longo prazo (excepto no papel de "comedores inúteis") no desígnio maior da ideologia neo-liberal que lhe serve de bússola, como, à vista do que infelizmente aconteceu na semana passada, não vacila em utilizar as violências físicas e psicológicas mais bárbaras para, através da instituição da estratégia do medo, inibir futuros protestos e manifestações daqueles de quem ele não deseja outra coisa senão a submissão e o quietismo.
Se também pode definir-se a violência como sendo um acto de destruição, como categorizar, senão de violência, uma política de austeridade que almeja a terraplanagem social, através dessas violações que são o empobrecimento forçado e a desvalorização dos indivíduos, de forma a, entre aspas, "começar do zero" um novo tipo de sociedade; muito mais ajustado a sinistros interesses financeiros e classistas que, neste momento, estão em conflito total com as noções mais elementares de estado-social e igualdade de oportunidades para todos? Urge recusar, protestar e resistir.  
Olhando para a história portuguesa do último século, e permanecendo nessa amostra para evitar uma maior distância entre a nossa contemporaneidade e o passado que desvirtue a aplicação do seguinte juízo, é facilíssimo perceber que essa tal "maneira portuguesa" de protestar - pacífica, serôdia, amorosa, até!, feita, entre outras coisas, de abraços mediáticos a agentes da polícia - nunca existiu.
No final do século XIX e durante a nossa Primeira República, na infância do século XX, a força e a violência, por vezes sanguinolentos, marcou decisivamente os protestos do povo contra as injustiças perpetradas pelas figuras de autoridade em vigência. E, pasme-se!, até os políticos usavam métodos violentos uns contra os outros: andaram deputados aos tiros dentro do parlamento - no mesmo edifício em cuja vizinhança, na passada quarta-feira, o corpo policial de intervenção agrediu com brutalidade os cidadãos com golpes de cassetetes, investidas de cães treinados e disparos de balas de borracha. Aquilo que importa esclarecer, nesta altura, é que os portugueses - civis e militares - nunca foram de "brandos costumes", nem "serenos": pelo contrário, sempre protestaram, sempre se revoltaram, com força, contra todas as injustiças. Fizeram-no no século XII, fizeram-no no XIV, no XVII, no XVIII, no XIX e no XX - em suma, fizeram-no sempre que foi preciso fazê-lo. Compreenda-se que a falsificação do sereno temperamento português foi fabricada com apuro no decurso das décadas em que perdurou a ditadura para-fascista do Estado Novo, liderada por António de Oliveira Salazar: foi fácil instalar a fantasia de um português-tipo - manso, servil, pobre e bem-agradecido -, porque, em primeiro lugar, essa fórmula foi injectada num momento de enorme desgaste social e aproveitou-se do cansaço da população; em seguida, beneficiou, e muitíssimo, da elevada taxa de analfabetismo que sempre colocou o povo português em desproporcional desvantagem diante das suas elites - elas próprias também pouco instruídas, para começar, mas nem por isso menos cobiçosas de poder. Hoje, o povo é mais instruído, mais complexo na sua vida interior, do que há cerca de setenta ou oitenta anos, mas, então, como é possível manter presa por arames a farsa da mansidão portuguesa e difundir pelos órgãos de comunicação social a ideia - que está a ser aceite, sem questionamento, por todo o lado e por todos - de que a "maneira portuguesa" de protestar, "a forma portuguesa de manifestar" não se faz de força? (Como se as "boas" formas de protestar, as "aprovadas" formas de protestar, pudessem ser "ensinadas" ao povo por cartilha.) É possível manter-se a ideia do "povo sereno" e da "maneira portuguesa" de protestar, graças à velha ideia, também salazarista, de que "o respeitinho é muito bonito". O "respeitinho" pela autoridade.
Ainda persiste, em nós, a herança desse "respeitnho" de que pouco se ouve falar hoje em dia (os mais novos podem perguntar aos mais velhos o que é isso do "respeitinho"), mas que era língua corrente há alguns anos e, no limite, nunca deixou de estar presente nos nossos hábitos: e presente - sempre - em diminutivo, porque consiste no "respeito" devido pelos homens "pequeninos" aos homens "grandes".
Não é um verdadeiro respeito, com o significado de apreço ou apreciação profunda, nutrida por alguém que mereça, mas um sentimento de inferioridade relacionado com a submissão e o medo.É o "respeitinho" medroso e submisso - boçal, certas vezes - que nos faz duvidar até da legitimidade do acto de protestar. Porquê? Porque é um "respeitinho" criado em exclusivo para nós - povo - o devernos aos Senhores Doutores que "mandam em nós" e que, com o peso desse sacrifício enorme que é o saber-mandar, esperam que nós lhes obedeçamos - cegamente e sem "fazer ondas". Principalmente, se formos "fazer ondas" para mudar políticas injustas que nos irão empurrar com veemência para o retrocesso histórico, para o desespero do empobrecimento e para a desesperança mais cruel. No fundo, este governo sabe bem que aquilo que está a erguer só poderá ser construído se contar com a nossa apatia generalizada, com a nossa complacência; e foi a pensar em fortalecê-las que se encenou, com maior ou menor espontaneidade, com menor ou maior maquiavelismo, o aviltante espectáculo a que se assistiu na passada quarta-feira.  Eu (já o escrevi) sinto repugnância pelo que aconteceu e tenho vergonha por aqueles que acham que a carga dissipadora, operada pelo corpo de intervenção sobre os cidadãos, foi adequada.
Como é que pode cair-se no contra-senso de repudiar a violência dos protestantes contra a polícia de choque e, em simultâneo, desculpabilizar - até acolher com entusiasmo e achar perfeitamente normal - a violência da polícia de choque contra os manifestantes?
Pode cair-se - e cai-se - nesse contra-senso - o de achar que há uma violência "má" e uma violência "boa" -, porque a primeira encaixa-se no tal "respeitinho" que é devido pelo povo à autoridade, enquanto que a segunda não passará do castigo que a autoridade tem de dar ao povo pela falta do "respeitinho". No fundo, quando se acha que a agressão policial indiscriminada é legal, legítima, desejável, que é mesmo aquilo que faz falta, está-se a achar que o "respeitinho é muito bonito". Esta mentalidade reaccionária - que, com desagrado, é mais frequente do que eu pensava - consiste no melhor instrumento que o autoritarismo tem para controlar-nos como lhe é mais conveniente.
Para efeito de controlo, instrumentalizou-se o corpo policial de intervenção, unidade também chamada polícia antimotim (antiprotestos, entenda-se), que, fazendo aquilo para que foi adestrado, criou de imediato uma barreira de violência indiscriminada, ferindo velhos e mulheres num exercício completamente "pinamaniqueano" da aplicação mais rasteira da "lei do mais forte" e detendo cerca de uma centena de indivíduos aleatórios ao longo das ruas de Lisboa - a maior parte sem relação nenhuma com a manifestação de protesto dissipada pela carga policial - para levá-los, sem direito a advogado, sequer, para calabouços isolados, como o desactivado tribunal de Monsanto, nos quais, sem interrupções, submeteu-os à experiência do medo, mantendo-os na incomunicabilidade e coagindo-os a assinar autos em branco - uma operação muito grave e, em última análise, completamente anticonstitucional, mas que fechou com chave de ouro a demonstração de força que se pretendia marionetar.
Sob a ideia do "respeitinho" que se deve às fontes de autoridade - não interessa que sejam espúrias: basta que ocupem a posição certa no palco e tenham a aparência acertada -, elas podem cometer, com desregramento, os piores excessos sem perder o refulgente nimbo de legitimidade que ofusca aqueles que acham dever-lhes muito "respeitinho".

Mas, por outro lado, quando as fontes de autoridade precisam da couraça impenetrável de um corpo de intervenção - impenetrável que nem a carapaça de um caranguejo - para governarem pela força bruta estão, bem vistas as coisas, a dar-nos a entender que são como o miolo de um caranguejo: uma matéria mole, invertebrada, somente sustentada por uma finíssima rede quasi-invisível, que, sem a protecção do estupendo exoesqueleto, se desfaz com um sopro. O exterior é duríssimo - blindado, capaz de resistir estoicamente a chuvas de pedradas, elevando as pinças afiadas contra opositores e espectadores ao mesmo tempo numa cega sangria  -, mas o seu interior é liquefeito, frágil.
Com sorte, é também moribundo.

 
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Published on November 17, 2012 21:33