David Soares's Blog, page 45
February 25, 2013
Um retrato do nosso tempo

Um dos mais emocionantes, pungentes e trágicos retratos de quem, entre a maioria despreocupada ou alinhada com o sistema, é o único a interpretar correctamente os sinais do devir catastrófico que se aproxima: Stańczyk (1862) do artista polaco Jan Matejko.
Published on February 25, 2013 12:18
February 22, 2013
Uma questão de saúde mental

Com mais de cinco mil partilhas, circula pelo Facebook um apelo escrito por uma utilizadora chamada Marlene Melo e que denuncia uma situação por ela testemunhada ao fim da tarde de ontem num comboio que faz o trajecto entre o Porto e Aveiro: segundo essa denúncia, o revisor do comboio reclamou com um rapaz por este não ter comprado bilhete para a cadela que transportava por uma trela e, em sequência dessa irregularidade, chamou a polícia que, entrando no comboio, entretanto parado na estação ferroviária de Estarreja, efectuou com força excessiva a detenção do rapaz. O tom melodramático e pouco informativo da dita denúncia está longe de consistir num registo esclarecedor sobre seja o que for, mas, no que diz respeito a isso, cada qual escreve como sabe e a mais não é obrigado. O que me revolta é o trecho que transcrevo em seguida, introduzido pela utilizadora Marlene Melo depois de conjecturar sobre como gostaria de ter visto a cadela do rapaz a transformar-se «(como nos filmes) numa leõa [sic]» para estraçalhar os polícias e o revisor no imediato momento. Escreve a autora da denúncia que: «Estou farta de chorar porque realmente estamos entregues a alguns. Eu pergunto será que os dirigentes da CP pactuam com este tipo de situações, não tem nada a dizer? Será que os polícias não deveriam ter uma parte pedagógica? Não deveriam ser mais profissionais? Mais Humanos? Alguém os tratou mal? Não. Gostava de referir que em Ovar entra uma Sra Romena que cheira pior que um animal selvagem ou abandonado ou quase morto (todas as pessoas que fazem este trajeto sabem do que estou a falar) e já foi pedido a muitos revisores que não a deixassem entrar por uma questão de sáude pública, no entanto, a resposta é: tem bilhete! Pois... mas eu prefiro viajar com uma cadelinha.»
Desde quando é que nos transformámos em completos nazis?
Desde quando é que o dito amor aos animais passou a servir de plataforma para a desumanização do Outro?
É revoltante ler um texto cheio de lamentações desta natureza sobre uma cadela posta fora de um comboio (e que, aparentemente, nem maltratada foi, ao contrário do dono) e encontrar este recorte de vil desprezo, mesquinha xenofobia e extrema desumanidade em que uma pessoa é caracterizada como sendo pior que «um animal selvagem». Com efeito, sempre que foi preciso desumanizar o Outro - aqueles que têm uma pele de cor diferente da nossa, aqueles que professam uma religião diferente da nossa ou que não professam religião nenhuma, aqueles que têm uma orientação sexual diferente da nossa, aqueles que possuem deficiências mentais e físicas, aqueles que, em suma, são sempre diferentes de uma maioria -, fez-se isso retirando-lhe o estatuto de ser humano para o categorizar como sendo um animal, um rafeiro, um parasita, uma praga. A linguagem da intolerância hegemónica é conhecida e a estratégia é sempre a mesma: para que seja aceitável a guetização e o extermínio dos seres humanos que se quer esconder ou eliminar é sempre preciso ensinar a população a observá-los como se eles fossem sub-humanos, como se eles fossem animais. A história está recheada de exemplos de como as sociedades que sobrevalorizaram o amor pelos animais em relação ao amor pelas pessoas, antropomorfizando os animais e desumanizando as pessoas, foram as sociedades nas quais se desenvolveram os piores crimes imagináveis contra minorias étnicas e religiosas. Uma vez desumanizado, o ser humano pode ser abatido como «um animal selvagem», para usar as palavras de Marlene Melo. Não é, pois, original que esta utilizadora do Facebook tenha escolhido essas palavras: a desumanização de uma cidadã que 1) é estrangeira e 2) é pobre só pode ser realizada rebaixando-a para o estatuto de «animal selvagem». Até aqui se compreende como entre os próprios animais se faz uma perigosa distinção: separam-se os animais em duas classes, os domésticos, como a cadela «super meiga e muito novinha», e os «selvagens», que cheiram mal e são indesejáveis.
Na alemanha nazi, o amor aos animais foi sobrevalorizado em relação ao amor pelas pessoas com os resultados trágicos que se conhece. Göring acabou com a investigação científica com base nas experiências em animais, mas a ciência nazi não retrocedeu, porque as vítimas humanas trincafiadas nos campos de concentração e de extermínio consistiram num número mais do que suficiente de cobaias para as experiências mais dolorosas, aviltantes e desumanas. Ao mesmo tempo que os nazis proibiam até que as lagostas fossem cozidas sem serem anestesiadas primeiro, os comandantes da SS davam cachorros aos noviços para estes cuidarem deles durante os anos da recruta: logo que se formavam, eram obrigados a matar os cães, já crescidos - era assim que os gangsters da SS turvavam o julgamento moral dos seus jovens torcionários para que, daí em diante, matassem seres humanos com total à-vontade. Aqueles que se chocam hoje ao verem uma cadela ser posta fora do comboio, mas que se dispõem com rapidez a chamar de «animal selvagem» uma cidadã que viaja com eles, porque acham que ela «cheira pior que um animal selvagem ou abandonado ou quase morto» e que até nem queriam deixar entrar no comboio «por uma questão de sáude pública», apesar dela, ainda por cima, ter bilhete, comportam-se exactamente como os nazis do século passado. A vossa intolerância, xenofobia e estupidez é uma questão de saúde mental.
Confunde-se o amor pelos animais com o amor doentio por cães e gatos, porque os cães e os gatos são animais giros: foram criados artificialmente, durante milénios de cruzamentos, para conservarem na maturidade sexual as características de infância. O cão adulto é um lobo bebé: os lobos adultos não brincam, não ladram (ladrar é liguagem de bebé) e não manifestam nenhum comportamento demonstrado pelos cães, porque os lobos são animais adultos e os cães, mesmo os adultos, foram apurados para serem bebés - assim como todas as espécies de animais domésticos que partilham o nosso espaço, desde os domésticos até aos criados para consumo. São espécies transformadas pela neotenia: o estado de conservar as caraterísticas físicas e comportamentais da infância após a maturação sexual. É por essa razão que achamos esses animais giros, porque vão ao encontro daquilo que, nos bebés humanos, nos desperta sentimentos de amor e desejos de protecção. Os criadores de personagens de banda desenhada e de animação sabem-no muito bem e todas as personagens de grande sucesso foram desenhadas de acordo com esses cânones e proporções: estatura pequena, com formas arredondadas; cabeças grandes com olhos também grandes, muito próximos um do outro, e bocas e narizes pequenos; mãos e pés grandes que dão um ar desajeitado e patusco. Estas são as caraterísticas dos nossos animais domésticos e é por esta razão que existem indivíduos que os adoram de modo doentio: estão, literalmente, "pedrados" com uma sobredosagem de fofice. Mas essa sobredosagem termina onde a neotenia acaba, porque já se viu que existem os «animais selvagens» que não são criaturas «super meigas e muito novinhas». Estes animais, ao fim e ao cabo, são como a cidadã romena que se quer fora do comboio: são os Outros.
Neste momento, poderão discordar de mim, mas lembrem-se bem do que vos vou dizer: desconfiem e tenham muito cuidado com quem se mostra insensível e intolerante diante da miséria e do sofrimento dos seres humanos, mas mostre um amor doentio e cego por (algumas) espécies animais.
Published on February 22, 2013 07:28
February 21, 2013
Contra a estupidez, a inteligência

E é por isto que os eBooks nunca poderão substituir os livros a sério.
(Actualização: entretanto, imediatamente depois de publicar esta imagem, vi que saiu esta notícia: «O ministro das Finanças, Vítor Gaspar, propôs "alterações profundas do sistema político" no período pós troika.» Sem adivinhar, escolhi a imagem certa no momento certo: nunca precisámos tanto de mão-firme e mente aguçada como agora. Se não formos mais activos, mais bem-informados e mais inteligentes, seremos escravos para sempre. A notícia encontra-se aqui: http://www.dn.pt/politica/interior.aspx?content_id=3067487.)
Published on February 21, 2013 15:06
Era o vinho, meu Deus, era o vinho

Ao mesmo tempo que mantém nos 18 anos a idade mínima para o consumo legal de bebidas espirituosas, o governo português, numa atitude verdadeiramente revolucionária, baixa para 16 anos a idade mínima para o consumo legal de cerveja e de vinho (aprovada hoje em conselho de ministros). Diz o secretário-geral da Associação Portuguesa dos Produtores de Cerveja que a medida é «adequada e leva em conta a realidade portuguesa». Sim, infelizmente, a realidade portuguesa é mesmo a do alcoolismo infanto-juvenil, a do desemprego jovem e a do êxodo de recém-licenciados para o estrangeiro, cortesia das políticas de terra-queimada do governo de coligação em vigência. Bem-vindos ao Novo Velho Portugal: um Salazar em cada esquina e um inspector do fisco à porta de cada taberna para pedir a factura aos embriagados. (Ler notícia, com a citação anterior, nesta ligação: http://www.rtp.pt/noticias/index.php?article=629807&tm=8&layout=121&visual=49)

Published on February 21, 2013 08:28
February 20, 2013
As Duas Cadeiras

Já andam vergonhosamente os formatadores de opiniões, tanto os civis quanto os políticos, a catalogar de ataque e deterioração da democracia portuguesa o heróico protesto dos estudantes do ISCTE contra Miguel Relvas, tentando fazendo medrar junto dos leitores e espectadores a ficção fraudulenta de que esses estudantes não deixaram o dito ministro exercer a sua liberdade de expressão. Ora, liberdade de expressão é um direito que nunca nenhum ministro deixou de exercer sempre que quis, marcando-se de imediato todas as conferências de imprensa que se deseja para dizer-se seja o que for. A quem tem faltado, verdadeiramente, o poder para exercer o direito de liberdade de expressão é ao povo: sonegado desse direito à bastonada, às dentadas de cães e às detenções injustificadas. Cada vez é menor o espaço de verdadeira intervenção pública - e intervenção que cause efeitos. Mas nada disto é novo: cada vez que o povo tenta falar e manifestar o seu descontentamento pelas injustiças às quais é empurrado isso é sempre rotulado pelo poder como sendo um ataque à democracia, mas quando é o poder a pressionar o povo da forma que bem entende e a esperar que os indivíduos pressionados se comportem como animais domésticos já é um bom sinal da nossa saúde democrática. Como poderão ver pela imagem que ilustra este artigo, tempos houve em que ser-se como um animal doméstico é que era um bom indicador de elevado sentido de civismo e de integração na democracia: de sentidos ofuscados, amordaçado, amarrado a uma cadeira e com um balde debaixo do assento para que nem sequer fosse preciso levantar para ir à casa-de-banho, era deste modo que se curavam os ímpetos rebeldes dos indesejáveis que ousavam insurgir-se contra os poderes estabelecidos. Não se iludam, é assim que o poder nos quer: sentadinhos sem ver, ouvir e falar, totalmente indefesos e dependentes de um carcereiro que vem trocar-nos os baldes da urina e das fezes quando estes começam a ficar cheios. Os indivíduos que protestam pelas injustiças a que são submetidos pelo poder em vigência não estão a atacar as liberdades de expressão daqueles que nem sequer as podem perder: estão, sim, a lutar para não serem amarrados a uma cadeira com um balde debaixo do assento, que é onde o poder quer mantê-los.
Miguel Relvas não foi calado: abandonou o ISCTE sem falar, por sua própria vontade. Não queiram transformá-lo em vítima, porque sabe-se bem quem são as vítimas das medidas de austeridade imaginadas e implementadas à força pelo governo a que ele pertence. Aliás, transformá-lo em vítima, mais do que ser perverso, é ridículo, porque, em 2008, quando Augusto Santos Silva (ministro dos Assuntos Parlamentares de um anterior executivo, liderado pelo ex-primeiro ministro José Sócrates) criticou duramente os manifestantes que o vaiaram em situação semelhante, Miguel Relvas veio acusá-lo de não aceitar os protestos democráticos: sentindo-se «chocado», disse Relvas à Agência Lusa que «o ministro [Augusto Santos Silva] passou a fronteira do bom-senso e com total impunidade» afirmando ainda que ele evidenciava «um comportamento de guerrilha e hostilidade» para com os manifestantes. Rematou com «o senhor ministro tem que perceber que a barricada da liberdade, desta vez, não está do lado do PS, mas do lado dos professores e não tem que ficar indignado que estes se manifestem e reclamem os seus direitos».
Então, em que ficamos? Quando se protesta contra os outros, isso é democracia; mas quando somos nós o alvo de protestos, isso já é atentado à liberdade de expressão e deterioração da democracia? Pura hipocrisia de quem está agarrado que nem uma lapa à cadeira do poder.
Mas o povo também não pode ficar agarrado que nem uma lapa à cadeira terrível, a do balde e mordaça, na qual o querem, à força, e sem legitimidade, manter paralisado. Haja quem não se cale: haja quem, como os alunos do ISCTE, diga bem alto que este governo e o seu iníquo projecto neoliberal de engenharia social-darwinista não pode continuar a mandar os portugueses para a miséria e para o abate. Chega! Chega, de uma vez por todas! Chega!
(As declarações de Miguel Relvas citadas acima podem ser lidas nesta ligação: http://www.publico.pt/politica/noticia/augusto-santos-silva-acusa-professores-manifestantes-de-nao-distinguirem-entre-salazar-e-os-democratas-1321994)
Published on February 20, 2013 15:32
February 19, 2013
A "selecção natural" segundo o governo
Pela boca do seu líder, eis a prova do projecto neoliberal de engenharia social, operado pelo governo de coligação em vigência, que eu venho a denunciar desde o Dia 1: os engenheiros da miséria já se sentem à vontade para afirmá-lo sem medo de virem a ser chamados à justiça por uma população cada vez mais desvitalizada. Alguém devia dizer a Passos Coelho que Darwinismo Social nada tem a ver com Selecção Natural: a Selecção Natural nunca foi, em momento algum, a sobrevivência do mais forte - muito menos do mais lucrativo!... Quem quiser que se indigne - ou que se envergonhe com essas declarações: http://www.publico.pt/politica/noticia/passos-diz-que-portas-apresentara-guia-para-cortes-no-estado-1584649.
À luz disto, o prémio que o fotógrafo português Daniel Rodrigues ganhou há poucos dias no concurso internacional World Press Photo, depois de ter vendido todo o seu equipamento de trabalho para ter dinheiro para comer, é uma alegoria perfeita de como a tónica colocada pesadamente pelos pugnadores do neoliberalismo político-financeiro sobre a infalibilidade da dita "lei do mais forte" no combate pela sobrevivência empresarial não significa, nem de perto nem de longe, que se esteja a provocar uma "selecção natural" dos melhores elementos da sociedade ou dos elementos mais proveitosos, mas, somente, dos que têm mais dinheiro: no banco, nos offshores ou até debaixo do colchão. E ter mais dinheiro somente significa isso mesmo: tem-se mais dinheiro. Não significa que se seja mais criativo, prestimoso ou, para usar uma palavra tão querida a esses engenheiros sociais, empreendedor.Bem avaliadas as coisas, Portugal está até muito longe de ter uma tradição filantrópica, segundo a qual os mais ricos são muitíssimo empreendedores e financiam obras de carácter social ou investem a riqueza em novos avanços científico-tecnológicos, como podemos observar, por exemplo, nos países de expressão anglo-saxónica. Daí, vir à praça pública dizer que a «selecção natural das empresas que podem melhor sobreviver está feita» como se isso fosse uma tábua de salvação nacional - como se fosse uma coisa nobre - é ridículo, indecente.Que empresas são essas, que «podem melhor sobreviver»?De que forma a sua sobrevivência contribui para enriquecer o país?Não sabemos.Sabemos é que indivíduos que se vêem a cair nas piores armadilhas das suas circunstâncias pessoais, como o já citado Daniel Rodrigues, obrigado pelo desespero a vender o seu equipamento de trabalho, são olhados pelos tais "sobreviventes" como uns fracassos da dita "selecção natural" pela competitividade. No entanto, como prova o exemplo que serve de eixo a esta argumentação, a verdade é que há indivíduos de valor a cair, como escrevi, nas piores armadilhas das suas circunstâncias pessoais: não são nenhuns fracassos abstractos da teórica "selecção natural" que perderam a corrida frenética pela sobrevivência, mas pessoas reais, de carne e osso, idênticas a nós, que não aguentaram a violência operada nas suas vidas pelas inexoráveis medidas de austeridade impostas pelo governo de coligação em vigência.
Nesta época neo-romana que atravessamos, na qual é sobrevalorizado o carácter utilitário mais elementar das coisas, os indivíduos que deixam de ser lucrativos são tratados como lixo pelo estado, como não-seres, que, enfim, perderam por sua culpa a corrida pela sobrevivência e que, por isso mesmo, merecem ser castigados. Que Passos Coelho venha dizer aos familiares de quem, em desespero, já se suicidou por não ter dinheiro para alimentar os filhos, que essas pessoas não estavam talhadas para a sobrevivência: que foram seleccionadas naturalmente para o abate. Quantos "Daniel Rodrigues" estaremos a perder, sem o sabermos, nesta razia social-darwinista que o governo de Passos Coelho está a operar, nesta autêntica política de "salve-se quem tem grandes fortunas"? Portugal está no bom caminho para tornar-se aquilo que foi há poucos séculos: um país onde meia-dúzia de privilegiados põem e dispõem de milhões de pés-descalços analfabetos que não sabem, não sonham sequer, mudar as suas vidas. É o novo Portugal da selecção natural passos-coelhiana: não se esqueçam de pedir a factura à saída do velho Portugal, pois vão pagá-la caro.
À luz disto, o prémio que o fotógrafo português Daniel Rodrigues ganhou há poucos dias no concurso internacional World Press Photo, depois de ter vendido todo o seu equipamento de trabalho para ter dinheiro para comer, é uma alegoria perfeita de como a tónica colocada pesadamente pelos pugnadores do neoliberalismo político-financeiro sobre a infalibilidade da dita "lei do mais forte" no combate pela sobrevivência empresarial não significa, nem de perto nem de longe, que se esteja a provocar uma "selecção natural" dos melhores elementos da sociedade ou dos elementos mais proveitosos, mas, somente, dos que têm mais dinheiro: no banco, nos offshores ou até debaixo do colchão. E ter mais dinheiro somente significa isso mesmo: tem-se mais dinheiro. Não significa que se seja mais criativo, prestimoso ou, para usar uma palavra tão querida a esses engenheiros sociais, empreendedor.Bem avaliadas as coisas, Portugal está até muito longe de ter uma tradição filantrópica, segundo a qual os mais ricos são muitíssimo empreendedores e financiam obras de carácter social ou investem a riqueza em novos avanços científico-tecnológicos, como podemos observar, por exemplo, nos países de expressão anglo-saxónica. Daí, vir à praça pública dizer que a «selecção natural das empresas que podem melhor sobreviver está feita» como se isso fosse uma tábua de salvação nacional - como se fosse uma coisa nobre - é ridículo, indecente.Que empresas são essas, que «podem melhor sobreviver»?De que forma a sua sobrevivência contribui para enriquecer o país?Não sabemos.Sabemos é que indivíduos que se vêem a cair nas piores armadilhas das suas circunstâncias pessoais, como o já citado Daniel Rodrigues, obrigado pelo desespero a vender o seu equipamento de trabalho, são olhados pelos tais "sobreviventes" como uns fracassos da dita "selecção natural" pela competitividade. No entanto, como prova o exemplo que serve de eixo a esta argumentação, a verdade é que há indivíduos de valor a cair, como escrevi, nas piores armadilhas das suas circunstâncias pessoais: não são nenhuns fracassos abstractos da teórica "selecção natural" que perderam a corrida frenética pela sobrevivência, mas pessoas reais, de carne e osso, idênticas a nós, que não aguentaram a violência operada nas suas vidas pelas inexoráveis medidas de austeridade impostas pelo governo de coligação em vigência.
Nesta época neo-romana que atravessamos, na qual é sobrevalorizado o carácter utilitário mais elementar das coisas, os indivíduos que deixam de ser lucrativos são tratados como lixo pelo estado, como não-seres, que, enfim, perderam por sua culpa a corrida pela sobrevivência e que, por isso mesmo, merecem ser castigados. Que Passos Coelho venha dizer aos familiares de quem, em desespero, já se suicidou por não ter dinheiro para alimentar os filhos, que essas pessoas não estavam talhadas para a sobrevivência: que foram seleccionadas naturalmente para o abate. Quantos "Daniel Rodrigues" estaremos a perder, sem o sabermos, nesta razia social-darwinista que o governo de Passos Coelho está a operar, nesta autêntica política de "salve-se quem tem grandes fortunas"? Portugal está no bom caminho para tornar-se aquilo que foi há poucos séculos: um país onde meia-dúzia de privilegiados põem e dispõem de milhões de pés-descalços analfabetos que não sabem, não sonham sequer, mudar as suas vidas. É o novo Portugal da selecção natural passos-coelhiana: não se esqueçam de pedir a factura à saída do velho Portugal, pois vão pagá-la caro.
Published on February 19, 2013 14:08
February 15, 2013
The world keeps turning

Fez ontem 449 anos que, na cidade italiana de Pisa, nasceu o célebre cientista Galileu Galilei, campeão da astronomia e da matemática, que, no século XVII, sofreu na pele os horrores inquisitoriais, liderados pelo Papa Urbano VIII, por ter defendido no livro Dialogo Sopra I Due Massimi Sistemi del Mondo (1632) a autenticidade da teoria heliocêntrica, segundo a qual é a Terra que orbita o Sol e não o Sol que orbita a Terra (como assegura a teoria geocêntrica). Condenado, em 1633, à prisão perpétua pelo tribunal do Santo Ofício (sentença comutada, no dia seguinte, para prisão domiciliária), Galileu terá dito, entredentes, depois de renegar a própria teoria, «eppur si muove!», referindo-se à órbita que a Terra descreveria, de facto, em torno do Sol.
Na verdade, essa declaração apareceu pela primeira vez, em 1757, no livro Biblioteca Italiana do escritor e crítico italiano Giuseppe Barretti; quatro anos depois foi popularizada - e legitimada - pela inclusão no livro Querelles Littéraires do clérigo e historiador francês Augustin Simon Irailh. Mesmo assim, o reputado historiador canadiano Stilmann Drake escreveu em Galileo at Work: His Scientific Biography, publicado em 1978, que existe um quadro, datado de 1643 ou 1645, provavelmente pintado pelo artista espanhol Bartolomé Esteban Murillo (ou por um pintor influenciado por Murillo), que mostra Galileu acorrentado numa masmorra inquisitorial e apontando com um dedo para a frase «eppur si muove!» escrita na parede. O quadro é, de certeza, autêntico, embora a data de realização - mais ano, menos ano - ainda não tenha sido apurada com rigor; de qualquer maneira, demonstra-nos que uma década após o julgamento de Galileu (no mínimo) já circulava a história da sussurrada sedição.
Então, em que ficamos?
Galileu disse ou não, em voz baixa e batendo o pé, o famoso despique à autoridade inquisitorial?
Não existe nenhuma prova de que o tenha proferido, embora a atitude conforme com aquilo que é sabido sobre a sua personalidade.
Independentemente disso, prometo desmistificar o julgamento de Galileu numa próxima oportunidade. Fiquem por aí.
Published on February 15, 2013 18:29
February 14, 2013
O corno paciente

No Dia dos Namorados, e não só, há quem goste de namorar com as namoradas e os namorados dos outros. Em linguagem popular, chama-se a isso o "encornanço": ou seja, o acto de "pôr cornos".
Hei de falar com mais detalhe sobre esta simbologia fascinante - como é que os cornos se tornaram o sÃmbolo da vÃtima de adultério -, mas, para já, e porque se relaciona com mais facilidade com este dia, prefiro chamar a atenção para o facto interessantÃssimo de que ser-se "corno" e não fazer nada em relação a isso já foi considerado crime. Mais uma vez, a linguagem popular não perdoa: o indivÃduo nesta condição é o chamado "corno manso" - em suma, aquele que sabe que é "encornado", mas que, por variadas razões, não se importa de sê-lo. Há uns séculos, chamavam-lhe o "corno paciente" - daà o conhecido pregão "paciência de corno" que ainda hoje pode ser ouvido das bocas dos mais velhos.
Em resumo, quando o indivÃduo não se importava de ser "corno" (quando era "corno paciente"), a própria sociedade encarregava-se de fazer justiça por ele; neste caso, "o corno paciente" bem a dispensava, porque ela consistia em pôr-lhe uns cornos folclóricos, feitos com duas grandes galhadas, amarrados com badalos. Neste feitio, era obrigado a percorrer as ruas da cidade ou da aldeia, ao mesmo tempo que era fustigado por um oficial de justiça. Quanto à adúltera, o castigo era o seguinte: sentavam-na em outro burro, no qual seguia junto do marido, despida da cintura para cima e coberta de estrume para atrair as moscas.
O delito de "corno paciente" é um exemplo da justiça de outrora, que, ao mesmo tempo que punia os prevaricadores e restabelecia a ordem pública, tinha o condão de servir de entretenimento e cola social. Para ilustrar esta observação escolhi um desenho do artista flamengo Joris Hoefnagel, que serve de frontispÃcio à entrada sobre Sevilha no atlas quinhentista sobre as cidades do mundo Civitates Orbis Terrarum, de Frans Hogenberg e Georg Braun (Colónia, 1598). Pode ver-se o "corno paciente" montado no jumento, a ser chibatado, assim como, à sua frente, a esposa coberta de excrementos e envolta numa nuvem de moscas.
Published on February 14, 2013 08:28
A neve e o fogo

Hoje, Dia dos Namorados, lembrei-me de uma das mais belas histórias de amor que conheço - talvez seja, de facto, a mais bela. O conto O Homem de Neve , escrito por Hans Christian Andersen, em 1861. A melancolia profunda dos textos mais tristes de Andersen emociona-me muitÃssimo e coloca-me numa encruzilhada de saudade, entre a infância e a idade adulta. Em 1866, Andersen visitou Portugal e em Julho ficou hospedado na Quinta dos Bonecos (tão adequado que isto é), em Setúbal, propriedade da famÃlia O'Neill; no diário que escreveu, queixa-se do calor intenso, mas ao mesmo tempo descreve, com enlevo amoroso, a paisagem portuguesa que tanto o encanta. Tal como o Homem de Neve da história belÃssima que escreveu cinco anos antes, sente-se, em simultâneo, atraÃdo e magoado por essa estranha energia que é o calor. Visita, ainda em Setúbal, o Convento de Nossa Senhora dos Anjos de Brancanes, construÃdo num lugar recheado de história desde os tempos pré-históricos, e que, entre 1998 e 2007, foi vergonhosamente - escandalosamente - transformado numa prisão. Eu acho que isto dá muito que pensar, em principal neste dia, dedicado ao amor, sentimento libertador por natureza.
Published on February 14, 2013 06:52
February 13, 2013
Sobre os Vikings

Em Março, o Canal História vai estrear uma série intitulada Vikings , que, aparentemente, é um misto de história e ficção. O criador de Vikings é Michael Hirst, autor das séries The Tudors e Camelot - dificilmente exemplos de rigor histórico. A série é descrita desta forma: «Vikings will chronicle the adventures of Ragnar Lothbrock, an actual Norse hero from the Viking Age, as he rises to head of the Viking tribes». Mas, para começar, Ragnar Lothbrock, que se dizia descendente de Odin, provavelmente nunca existiu: é uma personagem fictÃcia, que figura no poema Ragnarsdrápa (final do século IX ou inÃcio do século X), inventada a partir de outras personagens que, provavelmente, também não existiram. Os relatos mitológicos dos deuses e heróis nórdicos que chegaram até nós foram quase todos escritos entre os séculos X e XIII (por cronistas islandeses), num perÃodo em que os chamados vikings já se tinham convertido ao cristianismo, e encontram-se impregnados de alusões cristãs, como no relato da morte de Odin, pendurado, perfurado por uma lança e ressuscitado poucos dias depois. A influência dos Evangelhos e dos relatos cristãos apócrifos na escrita destes materiais é, pois, um assunto que merece um estudo profundo.
A imagem popularizada por Hollywood (e, adivinha-se, por esta série) não corresponde à verdade histórica e é construÃda, em grande parte, pelas concepções imaginadas a partir de finais do século XVIII, durante o revivalismo viking que se operou durante o Romantismo (houve vários revivalismos durante o Romantismo: o grego, o romano, o egÃpcio, etc.). A própria palavra "viking" é altamente ambÃgua, porque, segundo as fontes mais antigas, apenas significa "viagem". Outra palavra da mesma famÃlia, "vikingr", surge em contextos nos quais os indivÃduos citados se dedicam à pesca ou à pirataria; portanto, relacionada com o mar. Em suma: a palavra "viking" não é nenhum etnónimo. Existiram famÃlias e clãs escandinavos (dinamarqueses, suecos, noruegueses) que se dedicaram à pilhagem e à exploração marÃtima, mas nunca existiu nenhum povo "viking".
E estes escandinavos a que chamamos de vikings foram cristãos: o perÃodo das explorações "vikings" começou em Junho de 793, com a pilhagem do mosteiro de Lindisfarne, na costa norte inglesa, mas poucos anos depois, durante a primeira metade do século IX, estes indivÃduos foram-se convertendo ao cristianismo. A rapidez com que essa conversão aconteceu indica a forte probabilidade de alguns deles já serem cristãos, para começar. Os escandinavos foram, acima de tudo, politeÃstas: adoptar mais um deus, cristão ou não, não era nenhum sacrifÃcio - e Cristo, como é sabido, partilha muitas caracterÃsticas do arquétipo de um deus solar, o que, sem dúvida, ajudou a uma adopção mais rápida. No século X, a Noruega, a Suécia e a Dinamarca tornaram-se, oficialmente, reinos cristãos. Leif Eriksson, o famoso viking, filho de Erik, o Vermelho, cristianizou a Gronelândia. Não obstante, existiu um povo nórdico - povo, de facto - que recusou o cristianismo até ao século XIX, altura em que foi pressionado pela Noruega a abandonar os seus costumes ancestrais: os Sami (Lapões) - não os vikings.
Mas, enfim, a imagem romântica criada pelos produtos de entretenimento irá sempre ser mais apelativa que a verdade histórica: agricultores escandinavos, de vários clãs e etnias, tornados comerciantes e sobretudo piratas, tanto pela ganância como pela infertilidade dos solos nórdicos. Não foram nenhum povo, nem de bárbaros, nem de nobres "pagãos", mas indivÃduos obrigados pelo desespero à diáspora. Nunca usaram capacetes com cornos (quem usou capacetes com cornos foram os gauleses), mas deixaram-nos uma lição que se calhar nesta altura que atravessamos é mais importante ainda: quando se tem fome, a gente adapta-se a tudo - até se adapta a deixar a nossa terra, porque ela não dá pão suficiente.
Published on February 13, 2013 17:08