David Soares's Blog, page 42
May 16, 2013
A Fatrasia


O étimo de Fatrasia provém do occitano (língua medieval, falada no Sul de França e na Catalunha, derivada do latim, que esteve na origem do fenómeno trovadoresco e que possui no catalão hodierno o seu descendente directo) e consiste na palavra fatras que significa farrapo ou refugo. Nesse feitio, a Fatrasia foi um novo estilo poético que, através da reunião de referências populares (o refugo), sem sofisticação e, sobretudo, sem relação entre si (uma manta de farrapos, lá está!), apresentava histórias de forte componente absurda (por exemplo, a peça quatrocentista La Farce de Maistre Pierre Pathelin, de autor anónimo).



Mas existe outra afinidade entre a Fatrasia, a Fantasia e o Dadaísmo: a guerra.
A cruzada sangrenta que o papa Inocêncio III instigou contra os heréticos cátaros da região da Langue d’oc coincidiu com o período áureo do fenómeno trovadoresco e da Fatrasia. As reinvenções ocidentais da Fantasia ocorreram em força nos períodos subsequentes às duas Grandes Guerras. E o Dadaísmo foi uma consequência directa da frustração cultural e artística sentida durante a Primeira Grande Guerra. Vale a pena reflectir sobre estas coincidências. No fundo, o que elas nos mostram é a profunda inquietação da imaginação humana, a recusa da barbárie e do fratricídio e a busca dessa qualidade redentora, tão luminosa, que somente o sonho pode oferecer com generosidade. A verdade é que hoje, como ontem, somente a Fantasia, em tudo aquilo que ela encerra, é capaz de nos salvar.

Published on May 16, 2013 10:39
May 14, 2013
Esquilos e cavalos

Palmas Para o Esquilo , novo livro de banda desenhada escrito por mim e desenhado por Pedro Serpa , será publicado em Outubro pela Kingpin Books.
Estou muitíssimo entusiasmado com este título, que consiste numa história sobre a frágil fronteira entre a criatividade e a loucura; é, também, uma história que contém algo de biográfico, com alguns episódios decalcados directamente da minha infância, mas sem ser, de forma alguma, autobiográfica. O esquilo a que o título alude, remete para esse éon infantil, mas, por curiosidade, outras vidas, em outras latitudes temporais, cruzaram-se com o mesmo tóteme. Há pouco tempo, por feliz acaso, descobri esta referência interessantíssima:
«There were intellectuals in the late nineteenth century who recognized this [disenchanted enchantment] and offered a nuanced understanding of enchantment as a state in which one could be "delighted" without being "deluded". Friedrich Nietzsche, for example, relentlessly punctured enchanting illusions - but he also recognized that such enchantments were necessary for human flourishing. (As a child, he constructed an elaborate imaginary world focusing on "King Squirrel I" (...) Nietzsche maintained that "invented world(s)" were not only necessary for human life, but in fact were fundamental constituents of it.»*Com efeito:
«His sister recalled, "Everything that my brother made was in honour of King Squirrel; all his musical productions were to glorify His Majesty; on his birthday... poems were recited and plays acted, all of which were written by my brother. King Squirrel was a patron of art; he must have a picture gallery. Fritz painted one hung round with Madonnas, landscapes, etc. etc."»**Como de água para gelo, a criatividade de Nietzsche transformou-se em loucura quando, aos quarenta anos de idade, na cidade italiana de Turim, em 3 de Janeiro de 1889, ele falhou em salvar, não um esquilo, mas um cavalo que estava a ser brutalmente chicoteado por um cocheiro: aparentemente, abraçou o animal acossado, chorando de compaixão, e desmaiou, antes de ser levado aos seus aposentos por dois polícias. É interessante lembrar que, vinte e três anos antes, o escritor Fiódor Dostoiévski descreveu um episódio muito parecido no romance Crime e Castigo, quando o protagonista Raskolnikov sonha que abraça compassivamente um cavalo morto à pancada - e que o próprio Nietzsche, em 1888, numa carta escrita ao autor Reinhart von Seydlitz, descreveu uma mirabolante cena invernal em que um cocheiro urina para cima do seu cavalo macilento, para conforto e felicidade dessa bestiúncula.*** No episódio que espoletou a crise intelectual do filósofo falsamente apodado de niilista, facto e ficção mesclam-se numa fórmula que tem o sabor da lenda - é o que acontece quando os "mundos inventados" criam cópias das suas histórias no mundo de todos os dias? Certamente é o que acontece quando a criatividade embate no polar muro do quotidiano: quebra-se. Enlouquecer é, afinal de contas, o trauma provocado pela aniquilação do espírito.

(Eu e Pedro Serpa, aniquilando.) * Saler, Michael, As If: Modern Enchantment and the Literary Prehistory of Virtual Reality (Oxford University Press, 2012). **Young, Julian, Friedrich Nietzsche: A Philosophical Biography (Cambridge University Press, 2010).*** Nietzsche, Friedrich, Selected letters of Friedrich Nietzsche (Doubleday, 1921).
Published on May 14, 2013 20:09
May 12, 2013
Anúncio
Caros leitores: anuncio-vos que decidi terminar a minha relação profissional com as edições Saída de Emergência.
Neste momento, ainda não tenho uma nova editora para os meus trabalhos em prosa: para já, terminar este ciclo é, para mim, mais importante. Esclarecido isto, irei, como é evidente, manter-vos informados sobre as novidades.
Desejo, com sinceridade, os maiores sucessos às edições Saída de Emergência.
Neste momento, ainda não tenho uma nova editora para os meus trabalhos em prosa: para já, terminar este ciclo é, para mim, mais importante. Esclarecido isto, irei, como é evidente, manter-vos informados sobre as novidades.
Desejo, com sinceridade, os maiores sucessos às edições Saída de Emergência.
Published on May 12, 2013 20:40
May 9, 2013
O "segredo"

Pilhas incompletas das leituras para os próximos dias (incompletas, porque ainda não recebi tudo o que estou à espera). Este é que é o "segredo" para se ser escritor: esqueçam os cursos de escrita criativa da treta e os workshops duvidosos. Quem não tiver tempo para investir na leitura, na erudição e na construção de uma boa e variada biblioteca dificilmente lá chegará. Não acreditem no lugar-comum do escritor boémio que luta com bloqueios criativos e que no último minuto pensa numa ideia genial. A verdade "glamourosa" é apenas esta: ascetismo e pestanas queimadas. Take it or leave it.
Published on May 09, 2013 11:42
May 2, 2013
Morreu Jeff Hanneman (1964-2013)

Morreu Jeff Hanneman, guitarrista fundador de Slayer: banda que, para quem não está familiarizado com o espectro da chamada "música extrema", revolucionou completamente essa sonoridade com a edição do disco Reign in Blood (1986). Normalmente, quem não é de todo conhecedor de metal pensa que Metallica (nome mais falado na comunicação social) será a banda mais representativa do género, mas, com efeito, foi Slayer que definiu a ferro-quente os caminhos obscuros, mas variados, que a música de peso tomou a partir da década de 90; em principal, com o advento do death metal, estilo de que Slayer é directamente responsável. Desde então, toda a "música extrema" deve muitíssimo ao death metal, que revelou-se dotado de grande plasticidade e passível de ser enformado nas mais variadas experiências musicais - e sem Slayer nada disso teria sido possível. As músicas dos discos clássicos de Slayer ainda são absolutamente revolucionárias no modo como quebraram - e quebram - com os lugares-comuns do heavy e do thrash, injectando não só uma inesperada agressividade, cuja seriedade se sente na carne, como uma refrescante liberdade na composição. Ora, Hanneman foi um dos principais arquitectos dessa revolução musical que Slayer foi. Continuará a sê-lo? Ninguém sabe. Gostaria, a título de evocação da inestimável herança de Hanneman e seus colegas, epigrafar o vídeo em anexo com dois versos de Samuel Taylor Coleridge: «We were the first that ever burst / Into that silent sea».
O mundo do metal ficou um pouco mais silencioso, a partir de hoje.
Published on May 02, 2013 18:29
April 29, 2013
Novo conto de horror na revista LOUD! de Maio

Neste Maio, a revista LOUD! traz Iron Maiden como banda de capa; grupo que serviu de ponto de partida para um desafio literário que me foi proposto: escrever um conto baseado nas temáticas do disco Seventh Son of a Seventh Son (1988). Podem lê-lo neste número: intitula-se Os Filhos Que a Lua Dá; ou, Problemas de Um Projeccionista de Pornografia e é um conto de horror em que os vários temas que fazem parte do supramencionado disco marcam presença; como as influências misteriosas do número 7 e, sobretudo, o mito irresistível do Filho da Lua. Agradeço à LOUD! este convite e espero que se sintam intrigados por Os Filhos Que a Lua Dá; ou, Problemas de Um Projeccionista de Pornografia. Deixo-vos um excerto:
«Concentrando-se no projector para não ver nem o filme, nem os espectadores, Albuquerque interrogou-se sobre qual seria a razão pela qual o onanismo não era um dos Sete Pecados Mortais, posto que Deus até assassinara um homem por culpa disso. Seria o Oitavo Pecado: uma nova venialidade, incrustada entre a luxúria, a ganância e a gula. ‘Oito pecados mortais’, pensou Albuquerque. ‘Oito caminhos para o Inferno.’ Qual seria o castigo infernal para os fricativos? Na costumeira coerência contrapassiana com que eram elaborados esses suplícios, teriam de se polir com fogo até a vergonha incendiada tornar-se tão catóptrica quanto metal lustroso. Humiliate pene vestra. O ritual masturbatório era feiticista, de facto – e, assim sendo, feiticeiresco. Que sortilégios pretenderiam os velhos operar com as efusivas esfregações? Que autoridade encoberta se revelava nas suas varinhas viris? Seria o sexo uma arte mágica, como as banais benzeduras e as venerações dos videntes? De cabeça baixa, Albuquerque apercebia-se das moções projectadas no lençol como se fossem sombras dançarinas nas paredes do seu crânio: afinal, que culto venéreo se prestava naquela praça, sob a égide do faliforme tóteme tartéssico? Seria clarividente o suficiente para descortinar se era um sonho ou o “agora”? No lençol, a mulher curvou-se para desencobrir a virilha do homem, a imagem ampliou-se e os velhos viram-se estupefactos diante de um grande olho. O espanto da assistência despertou Albuquerque das suas contemplações: achou que aquilo era estranho, mas não deu importância.»
Published on April 29, 2013 09:49
April 24, 2013
O símbolo
Published on April 24, 2013 20:40
Alquimia + Conversa com Deus (sem AO90)
Em seguida, transcrevo um trecho do meu romance
Batalha
(Saída de Emergência, 2011), um livro de forte tónica iniciática e hermética, que, entre outras inquietações, interroga o fenómeno religioso do ponto de vista dos animais. Trago-o à colação para demonstrar que o AO90 é, de facto, incompatível com a liberdade dos escritores; neste caso, inconciliável com a minha voz autoral, animada por um léxico muitíssimo específico, tão arcano quanto neológico. Neste livro, cuja personagem principal é uma ratazana, como é que um "lince" iria, então, limpar as palavras que lhe parecessem inconformes com o AO90?Não têm os autores a liberdade legítima de decidirem, eles próprios e pelas suas exclusivas razões, como devem ou não escrever? A tirania de um (des)acordo ortográfico nunca deverá servir de obstáculo ou politriz à literatura. Convido-vos, pois, à especulação de imaginarem como ficaria o texto que se segue vertido em "acordês".
«Reunindo todas as forças, Batalha escavou o túnel mais fundo que os músculos e a dureza da terra lhe permitiram e, como quem esvurma uma ferida infectada, espremeu do crânio os vestígios da passagem pela comuna de ratos domésticos. A humidade do terriço seria o vulnerário com o qual cicatrizaria as feridas do corpo e da mente: como um danado, rolou a cabeça na terra e os torrões que se lhe grudaram no pêlo emprestaram-lhe um semblante pagão – de plutónico deus viticomado: uma potência podalírica. Esgotada a energia, estirou-se.Sentindo o cansaço apoderar-se de si, vagueou pelo labirinto nemático feito por pensamentos prestes a tornarem-se memórias – malsorteados, eles podem revelar-se inaliáveis, inatingíveis até, mas se puderem ser ligados a lembranças seguras, em selvática sínfise semântica, passam do estado líquido para o cristalino, tornando-se sinónimos de uma vida. Sem a valiosíssima memória, o que seria dos murídeos miseráveis que, derrotados pelo desespero e pelo peso imenso da terra já percorrida, procuram a lassidão subterfluente? Perder-se-iam para sempre, essas pequenas vidas – amebas no coalho de todas as vidas e, no entanto, tão essenciais que o mundo não pôde girar sem elas. E que não pode continuar a existir sem elas.Manipulada pelo instinto, Caldaça queria Batalha dentro dela. Queria imaginar-se no mesmo sonho seminíparo que todas as vidas, grandes e pequenas, precisam de sonhar para sobreviver, mas, embora não o conseguisse, no instante em que tentou, um sem-número de ratos e homens proctocriavam, de facto, de corpos e carácteres despidos.Tal como a rancidez se regozija com o ar desprotegido, também a nudez vulnerável é o estado espontâneo da cópula. Nus, todos os bichos são lesáveis e a vulva é uma mitene que só cobre o pénis, deixando o resto do corpo ao capricho do contágio – neurotomias naturais que a todos deixam indefesos. A reprodução é regular, sem sobressaltos, como uma colónia de fungos rompendo a casca grossa dos carvalhos; e, em jeito de alcalóide amanitário, o amor escorre pelos troncos cerebrais abaixo, como vinho entornado: o símbolo universal da alegria, da sorte. O sal desperdiçado, símbolo universal da tristeza, do azar, somos nós todos, nos começos das nossas vidas: brutos, informes, impuros, sem o conhecimento das relações sensuais e da morte. Precisamos, por isso, de ser ungidos, purificados e diluídos com vinho – com sexo e deterioração – de modo a crescer, a amadurecer, a salinar. Só então podemos ambicionar a ser completos, adultos, mas Batalha, repudiando a oferta de Caldaça, estaria sempre perdido, como um infante anquilosado ao crisol, ao colo do útero. Conjuctio do macho e da fêmea – estado principal da Grande Obra, na qual toda a gente participa ou assiste – que gera a Luz: fetos incandescentes, sangrantes e vermelhos como o Sol, que choram e, com esse plangente anúncio, dão início à contagem do tempo – dos seus tempos, porque não existem outros.O tempo é apanágio da matéria viva – os mortos não precisam dele.Os mortos não precisam de nada.E, por mais que fingisse estar morto, no interior do profundo buraco acabado de escavar, com a intenção de ser a sua sepultura, Batalha podia sentir a vida que ainda lhe pulsava no pénis turgescente, nas veias urziformes e na língua ressequida.Do que é que precisava?O que é que lhe fazia falta? Pensa, Batalha, pensa…
Quem falou?Ninguém.Tu és a minha melhor criação.O mais esplendoroso filho.Alguém.Alguém falava.Sou Deus.Deus?O Deus do padre. Lembras-te de mim? Castiguei os filisteus com ratos e hemorróidas. Sou o Deus dos ratos e dos homens, sou um vórtice para o qual todas as vidas vertem e, vomitivo, devolvo-as à terra, numa girândola que não tem fim nem princípio. Estas volteaduras são a vontade do mundo.Estava desfeito o mistério das misérias da vida.Deus caíra na rotina.Fiz-te à minha imagem, meu Batalha. Hás de morrer e ressuscitar, numa das minhas vomições. Mas tens de acreditar em mim.Acreditar? E se não acreditar?Os ratos e os homens são feitos da mesma carne e dos mesmos ossos. Têm o mesmo sangue. Foi a preguiça: ad hoc fiz tudo da mesma massa.Mas eu não pedi para ser feito, ò Deus.Não te pedi patrocinato.Todos os bichos são meus proletários, porque só estão na terra para procriarem e povoá-la. Valem quantos filhotes têm. Já cumpriste o teu papel? Já procriaste? Já provaste o teu valor? Eu? Eu não valho nada.Não tenho prole, nem proveito.Mas tens falta de qualquer coisa.Se calhar, tenho.Se calhar, podes tê-la. Através de mim. Não queres a salvação?Não sei.É fácil de saber. Não só sou o Deus de todos os homens e de todos os ratos, como o de todos os bichos. E de todas as árvores. Todas as pedras. Até sou o Deus de mim mesmo. Na verdade, tu nem sequer existes: estou a sonhar-te. Quando acordar, deixas de existir.Quando acordar, deixas de existir.Quando acordar, deixas deQuando acordarQuand
Batalha acordou, sozinho, dentro do buraco que escavara.Não sabia quanto tempo passara, desde que adormecera, mas percebeu de imediato que o Deus com quem falara tinha sido ele próprio.Não existem deuses nenhuns, pensou Batalha, sacudindo os grãos de terra que lhe polvilhavam o pêlo. Não existem nenhuns pais do mundo. A não ser nas nossas cabeças. São apenas invenções de homens velhos e de ratos velhos. Só existe a carne. A carne que se gera a si mesma, repetidamente.Só existimos nós. Só nós.»
Published on April 24, 2013 07:29
April 23, 2013
Depoimento anti-Acordo Ortográfico

Este é o meu depoimento anti-Novo Acordo Ortográfico (AO90) no site da ILCAO - Iniciativa Legislativa de Cidadãos contra o Acordo Ortográfico de 1990. Meus amigos, subscrevam a Iniciativa Legislativa de Cidadãos contra o Acordo Ortográfico de 1990: é muito simples e o efeito será tremendo - por favor, descarreguem o documento, assinem-no e enviem-no por correio ou por email para a morada indicada para o efeito. Não custa nada e a língua portuguesa agradece. O tempo urge - e não exagero para criar ênfase: urge, mesmo. Obrigado.
Published on April 23, 2013 08:25
April 22, 2013
Filmes de papel
Escrever é uma arte feita de liberdade absoluta, na qual, de facto, a imaginação é o limite; mesmo assim, não falta quem se sinta confortável em adstringir-se com os rudes espartilhos veiculados nos conselhos dos cesaropapistas da "escrita criativa" (haverá outra?). Um desses ensinamentos mais tóxicos - sobretudo para principiantes - é o de que se deve "mostrar em vez de contar". Ora, "mostrar em vez de contar" é um critério pescado à escrita de ficção para cinema e televisão e não deveria ser aplicado em literatura, porque escrever um texto literário é muito diferente de escrever um argumento cinematográfico ou televisivo. E, assim, por culpa deste desastrado ensinamento, as livrarias enchem-se de falsos livros, cuja única desculpa para existirem parece ser a de que consistem em meros esboços das futuras adaptações cinematográficas e televisivas que farão deles.
O espírito neo-romano que embebe a actualidade, sobrevalorizante do mais elementar carácter utilitarista das pessoas e das artes, influencia a criação de obras literárias cada vez mais homeopáticas; ou seja, obras em que o princípio activo literário está muitíssimo diluído em água - tanto que, na maioria das vezes, é inexistente. Desapareceu, pois, o discurso indirecto; desapareceu, também, a adjectivação - desapareceu, enfim, tudo aquilo que impede a personagem X de ir ter com a personagem Y no menor número possível de páginas. Os poucos romances que ainda se apresentam como herdeiros de uma tradição verdadeiramente literária, em todas as acepções dessa designação, são desconsiderados pela crítica como sendo bizantinos, no sentido pejorativo. Mas quem sabe a sério de história não esquece que foi em Bizâncio que, a partir de finais do século III, se conservaram os modos e a cultura clássicos, em oposição ao barbarismo que medrou na metade ocidental do império romano. É uma alegoria simples de entender, até por quem não sabe ler.
E, na verdade, há muitos leitores que não sabem ler: sabem ver filmes de papel. Se lhes dessem um livro autêntico para as mãos não saberiam o que fazer com ele.
O espírito neo-romano que embebe a actualidade, sobrevalorizante do mais elementar carácter utilitarista das pessoas e das artes, influencia a criação de obras literárias cada vez mais homeopáticas; ou seja, obras em que o princípio activo literário está muitíssimo diluído em água - tanto que, na maioria das vezes, é inexistente. Desapareceu, pois, o discurso indirecto; desapareceu, também, a adjectivação - desapareceu, enfim, tudo aquilo que impede a personagem X de ir ter com a personagem Y no menor número possível de páginas. Os poucos romances que ainda se apresentam como herdeiros de uma tradição verdadeiramente literária, em todas as acepções dessa designação, são desconsiderados pela crítica como sendo bizantinos, no sentido pejorativo. Mas quem sabe a sério de história não esquece que foi em Bizâncio que, a partir de finais do século III, se conservaram os modos e a cultura clássicos, em oposição ao barbarismo que medrou na metade ocidental do império romano. É uma alegoria simples de entender, até por quem não sabe ler.
E, na verdade, há muitos leitores que não sabem ler: sabem ver filmes de papel. Se lhes dessem um livro autêntico para as mãos não saberiam o que fazer com ele.
Published on April 22, 2013 11:29