Alexandre Willer's Blog, page 10
December 10, 2020
sou gay mas de família de bem
Lendo isto aqui me fez pensar nos gays conservadores, quem são, de onde vem, como vivem, se reproduzem.
Não que os homossexuais (ou qualquer pessoa LGBTQ) não possam identificar-se ou simpatizar com ideias e modelos conservadores, da mesma forma que o amor deve ser livre, as expressões e afinidades políticas também devem ser porem o apoio a políticos conservadores como Bolsonaro e afins só consigo digerir e chegar a algum tipo de entendimento se pressupor que essa pessoa LGBT possui sérios problemas de aceitação quanto a sua orientação sexual e/ou identidade de gênero ou então sofrer de severos distúrbios psíquicos.
Insisto em dizer que não acho errado ou condenável uma pessoa LGBT ‘de direita’ ou conservadora mesmo que, pessoalmente, entenda esse tipo de atitude como no mínimo contraditória, pois a população LGBT possui ideais e história completamente diletantes dos movimentos conservadores os quais sempre trataram a estes como minoria que deve ser mantida sob o mais rígido controle e, em sendo possível, afastado do convívio social seja ela familiar ou como beneficiário de politicas sociais inclusivas e aplicáveis ao resto da sociedade e população.
Aparentemente, estes ‘gays conservadores’ enxergam neste tipo de político pessoas corretas, honestas e de retidão moral considerando o movimento LGBT como extremistas e dispostos apenas à promiscuidade, lascívia e imposição de seu ‘modo de vida’ a todas as camadas da sociedade, ou seja, trocaram as bolas e confundem moral com política o que é receita certa para desandar qualquer coisa.
Alguns desses ‘conservadores’ atestam mesmo que a vida sexual de cada um é assunto que deve ficar restrito a alcova e não discutido abertamente o que é, lamento dizer, o mesmo que devolver ao armário e trancar a sete chaves tudo que os movimentos LGBT lograram conquistar sem falar no fato lamentável de que isolar a sexualidade deixando-a restrita ao foro íntimo é viver uma mentira, um engodo, uma farsa no melhor estilo ‘não pergunte, não fale’ como se fosse simplesmente ligar/desligar uma chave.
Entendo isto (e esta é minha opinião, fique à vontade para discordar) como um estado de negação absoluta. Como podemos tratar a sexualidade humana compartimentalizando a ela quando é parte integrante do que somos e vivemos? Ou somos LGBT apenas em alguns momentos, em alguns lugares e dentro de nossos quartos? Isso não é liberdade, é escravidão e não aceitação da sexualidade com a qual nascemos, é empoderar esses políticos que já deixaram inúmeras vezes explícitas suas opiniões sobre a população LGBT e não adianta argumentar que eles se retrataram (o que não tenho conhecimento de ter efetivamente ocorrido e, se ocorreu, não foi por constatar o absurdo que fez mas muito provavelmente forçado por alguma ação judicial pairando sob suas cabeças) pois não se trata de ter cometido um erro ou deslize mas pessoas que trataram o que somos como escória, doença e lixo social.
Ainda na mesma reportagem, esses mesmos apoiadores dizem que se identificam com estes políticos pois eles os tratam como ‘normais’, acho que aí temos algo importante a ser considerado, essa necessidade de ser tratado como normal, será que essas pessoas ainda entendem sua orientação sexual como algo nocivo e que não deve ser vivido em sua plenitude? Ainda estariam buscando encaixar-se no que a sociedade entende e aceita como normal? Engraçado como a palavra promiscuidade é usada no texto, quase com nojo e como se essa fosse a única qualidade que se possa identificar com os LGBT e que é sim um trunfo nosso pois onde leem promiscuidade (que não é direito reservado dos LGBT, tenha certeza) deveriam ler liberdade sexual. Nós LGBT sempre soubemos viver de forma muito mais livre, descomplicada e vívida nossa vida sexual e sexualidade e isso é extremamente agressivo e transgressor aos olhos da sociedade pois a liberdade sexual implica numa subversão de uma ordem normativa e previamente estabelecida com séculos de reforço religioso e social dificílimos de quebrar.
É triste que nos tempos em que vivemos, quando tantos avanços importantes para a população LGBT dançam na corda bamba, ver pessoas que parecem simplesmente ter congelado no tempo e completamente cegas para o perigo que não apenas os direitos civis LGBT correm, mas todos os direitos e liberdades em si ante a teocracia que se acerca de todos nós cada vez mais a cada dia. A solução não é, em busca de um horizonte mais tranquilo, jogar nas mãos de factoides e vomitadores de discurso de ódio disfarçado de moral e bons costumes o futuro de nossa sociedade mas de entendermos que essas pessoas são oportunistas sem agenda que estão ocupando o vácuo politico que vivemos acenando como salvadores da pátria.
Seria muito bom neste momento se todos nós déssemos uma olhadela para trás na história e quem sabe pedir conselho ao povo alemão que deve estar lamentando profundamente esse péssimo hábito da história em se repetir.
December 9, 2020
ângulos
Eu tenho incongruências e dentro delas idiossincrasias, bipolaridades e desfalques pessoais que me fazem correr atrás do roubo para identificar a mim como autor do delito, responsável pela captura ainda que me evada de mim com sucesso digno de filme e, por fim, juiz e executor da sentença.
Depois fico ali olhando para as barras da cela de mim vendo aquele outro que sou do lado de fora repetir todo o processo até que a cela fique tão lotada de mim que, ao adentrar o último mea culpa, ela simplesmente explode e todos eu ficam livres para perambular novamente pelas alamedas e vielas de mim mesmo (até que o processo todo se repita, preso num loop temporal digno das teorias mais absurdas).
Há um estranhamento constante, um não encaixar, não falta de empatia mas de simpatia e são conceitos muito diferentes, creia-me. Falta-me a segunda diversas vezes e não por alguma patologia mas apenas por não ter realmente dilatação escrotal suficiente para deglutir certos comportamentos, temas, assuntos, atitudes e convenções que a grande maioria assume como normais ou comuns ao bom convívio. Talvez o entendimento de tal quesito seja diametralmente oposto para mim e os demais o que, se não é adequado (aos outros), não me parece ruim (a meus olhos).
Assim, declinei educadamente muitos convites para confraternizar com pessoas recebendo de quem me fez o convite presencialmente, um átimo de olhar e ar surpreso, as entrelinhas perguntavam por que mas o que saiu foi um ‘ahhhh’ disfarçado de decepção e talvez exigência de justificativas já que minha recusa foi lacônica, sem recorrer a grandes elaborações ou figuras de linguagem. Pensando após, ainda cheguei a ponderar se deveria, pelo bem do status quo, ter aceito mas ir de boa vontade a algo como festa temática (Baile no Havaí, trajes floridos compulsórios – quem me conhece já realizou a ojeriza que tal cenário me causou) com pessoas que de mim sabem nada e cujo convívio diário é tão profundo quanto uma poça d’água, me parece algo simulado senão dissimulado de ambas as partes.
Como tenho essas versões de mim, passamos a discutir o assunto ponderando sobre os prós e contras, sim e não e no final nos dividimos em dois grupos distintos: um de consciência social e outro absolutamente avesso a ela. O primeiro grupo diz que deveríamos ir, integrar, enturmar, simpatizar, animar, desfazer a impressão de que somos reclusos e pouco sociáveis enquanto o segundo prega o oposto disso, que não há qualquer ângulo comum possível com essas pessoas, que será um exercício de paciência desnecessário já que são pessoas que representam nada para mim o que, confesso em minha bipolaridade, me assustar afinal são pessoas, como não representam nada?
Façamos então um adendo breve aqui: o fato de serem pessoas representa algo, obviamente! Porém, considerando o conjunto de valores, ideias e conceitos que levo dentro de mim essa representatividade desfaz-se no ar pois não há aderência entre nós, não há eixo comum ou área destacada.Veja, não digo que lhes desgosto, sou avesso ou dedico desafeto, apenas que não há representatividade e assim, não há congruência. Alguns podem retrucar que tal coisa carece de convivência e tempo e que se não existe o movimento de um lado dificilmente se poderá encontrar do outro mas, para que tal movimento existe deve haver uma predisposição inicial que motive a quebra da inércia e, por definição, todos os corpos tendem a permanecer e conservar a suas.
Ser humano pode ser assim cheio de falhas e talvez nem mesmo seja adulto tal comportamento mas certamente é meu, autêntico e maduro o suficiente para a esta que é a parte que me cabe neste latifúndio.
December 8, 2020
para servir e proteger...
Creio que todos tenham visto esse caso aqui .
Antes, deixo claro que não estou absolutamente defendendo qualquer comportamento violento ou abusivo da autoridade policial antes apenas encarando a profissão de PM como qualquer outra com seus problemas e dificuldades ante uma conjuntura social complexa e insana que acaba cobrando de todos nós um preço alto demais.
A relação que temos com a polícia é uma relação de amor e ódio, precisamos dela e ao mesmo tempo a execramos, elogiamos quando nos atende bem e ofendemos quando age mal, detestamos precisar dela mas tememos não tê-la por perto e esse tipo de sentimento e comportamento paradoxal vai de um extremo a outro conforme a classe social em que vivemos, brancos classe média tem um tipo de visão e sentimento, brancos classe alta outro e pobres, negros e periféricos outra totalmente diferente e, a grosso modo, seria respectivamente algo assim: os primeiros querem proteção e segurança mas acham que ela exagera e que o problema é estrutural discutindo do alto de seu chão de taco e MPB descolada, os segundos acham que a PM é tipo o novo capitão do mato, feitor, tem de manter os pobres e demais longe e sob controle, sua milícia pessoal sempre disponível a um telefonema para algum deputado ou governante e os últimos, só sabem que ao ver uma viatura existe uma chance grande de presos, agredidos ou mortos.
Essa relação complicada é herança da ditadura, as polícias eram braços da ditadura e, depois da abertura, seguiram impregnadas dos refugos do regime que, se não estão mais aí, deixaram as corporações abastecidas de suas ideias e comportamento que parecem ter sido inscritos em pedra sagrada quando não tem uma relação espúria com o crime e tornando-se algo ainda pior e mais perigoso, as milícias que estão devorando sem medo o RJ e começando a estender seus dedos para outros estados.
Mas não é só isso, uma profissão como PM é um trabalho ingrato além de extremamente perigoso, todos nós quando saímos de casa para trabalhar ou seja o que for, temos uma chance de não voltar vivos afinal, a vida é uma sacola plástica jogada ao vento mas, um policial tem essa chance aumentada de forma exponencial e isso para ganhar um salário que mal paga as contas do mês. Como pedir que essa pessoa entregue sua vida diariamente se ela mal consegue sobreviver dignamente? Da mesa forma que os professores são pouco valorizados e deles se espera muito, fazemos o mesmo com a polícia sendo que eles esperamos que morram para manter a lei e a ordem mesmo quando a lei e ordem parecem algo meio sem sentido.
Temos um perigo alto aqui não apenas por demandarmos que pessoas mal preparadas e mal pagas saiam armadas pelas ruas para zelar pela segurança pública mas por entendermos que seus excessos e truculência são justificados numa sociedade que só entende a linguagem da porrada, o malandro é sempre o outro e ele precisa ser detido e colocado atrás das grades mas, as mensagens que enviamos aos agentes da lei são dúbias, mate mas seja humano, bata mas seja doce, afaste o perigo mas o abrace, seja humano mas agressivo, zele por mim mas não espere que eu zele por você e, se você exagerar ou ultrapassar algum limite, eu vou te condenar mas lá no fundo eu te entendo e apoio, como fazer uma relação dessas funcionar?
Nossa relação com uma corporação que deveria atuar como ajudante de manutenção de algum tipo de tecido social é tóxica, tomamos as partes pelo todo e enxergamos na polícia algo a temer e crucificar porque são bestas fardados que o Estado usa para manter a ordem enquanto outros exaltam que a mesma polícia anda matando pouco e deveria mais é sentar o pau em vagabundo então, como essas pessoas devem se comportar se não está claro o que se espera delas? Sem contar que, socialmente, elas estão lutando para viver de forma digna, não tem estrutura física ou emocional para lidar com trabalho de altos níveis de estresse, tem a sociedade e lhe cobrar coisas distintas, não pode ser feliz em seu trabalho e tem de lidar com o medo da morte, que a todos nós parece algo distante, de forma muito próxima e quase certa?
Esse comportamento do PM da matéria acima não é então surpresa, é sim o normal, o esperado de uma pessoa que não tem claro seu papel na sociedade, não sabe ao certo como desempenhá-lo para contento de todos, não recebe o suficiente para isso, não tem preparo ou amparo para isso e acaba apenas reproduzindo o comportamento que essa mesma sociedade espera que ele tenha apenas para, em seguida, ser condenado por ter apenas correspondido ao que se esperava dele.
Antes de condenar a PM como um tipo de mal maior, deveríamos apontar nossos dedos para nós mesmos porque, se a PM é um monstro fomos nós seus criadores, eles não surgiram do nada e se há truculência, violência, exageros e abusos não é por que eles são sádicos dementes, podem até ser alguns deles que são apenas humanos mas eles refletem apenas o nosso comportamento enquanto sociedade.
December 7, 2020
tic tac tic tac
Não precisa ser vidente nem nada para entender que na atual situação, isto vai acontecer.
E não se trata apenas da falta de coordenação e bom senso dos governantes sejam eles municipais, estaduais ou federais sendo esta última esfera a pior vide seu negacionismo e insistência em considerar a pandemia como algo menor e que não precisa de tanto alarde já que admitir o oposto seria ir contra sua base de apoiadores digitais e o capitão jamais vai desdizer algo que disse e passar por covarde ou mentiroso pouco importando quantos cadáveres terá de usar para isso.
Há um descaso generalizado, tanto das autoridades como da sociedade, o medo saiu e entrou a sandice, as festas clandestinas pululam com preços de variam de $500 a mais de $1500 ou seja, apenas os abastados podem ir e podem se dar a luxo de pegar o COVID pois, caso infectados, terão o melhor atendimento e morte que o dinheiro pode comprar mas, não são apenas as festas ricas que proliferam, as festas de rua e para quem não pode pagar pulseirinha de ouro também acontecem sem medo ou freio e quem frequenta essas, não poderá chegar de SUV no Einstein para ficar no apartamento ou UTI de última geração.
Sexta passada, passando pelo centro na volta do trabalho, parecia uma sexta como outra qualquer, sem vírus, sem morte, sem pandemia que não fosse alcoólica. Bares abertos, música alta, e muita, mas muita gente dançando, fumando, bebendo e achando que máscara é coisa só para o carnaval. Geral perdeu o medo, cagou para o vírus e o aumento de casos que está batendo na porta, o comércio e empresariado combalidos não querem nem ouvir falar de lockdown de olho no fim de ano que promete algum tipo de alívio para os prejuízos que já amargam esse ano e a população quer algum tipo de consolo pelo menos no período de festas mesmo que em Janeiro todos tenham de chorar seus mortos e entupir os cemitérios.
A falta de pulso e organização dos governos casada com a falta de bom senso social estão preparando um cenário sombrio para o início de 2021, esse que a gente está torcendo para ser melhor mas, ainda que alguma vacina vença os obstáculos ideológicos de um governo que não pensa, até algum tipo de estrutura ser montada para vacinação em massa, muita gente vai estar a sete palmos pagando pelo desrespeito e despreparo que temos agora.
A pandemia não matou apenas pessoas, matou nosso bom senso, empatia e sentimento de sociedade, rimos da cara dela como quem ri de uma lenda urbana, penas que essa lenda urbana não tem nada de lenda e não gosta de quem ri de sua cara, mata mesmo, sem dó nem piedade.
Feliz vírus novo!
December 4, 2020
vazio da frente
O apartamento da frente fora desocupado há poucos dias, podia ver as paredes de um branco cansado, nuas, os buracos de pregos feito estigmas relembrando quadros mortos ali antes pendurados, a janela agora sem cortinas, selada, revelando o que antes era apenas vislumbrado.
A porta do quarto escancarada mostrando um espelho deixado para trás, provável que não pertencesse aos últimos moradores e nem mesmo aos que antes deles vieram, espelho é coisa que se leva consigo, carrega parte da alma e da soberba humana, coisas que costumeiramente não se abandonam em qualquer lugar. De certo refletia outros tempos e pessoas que impediam os vindos depois de criar algum vínculo com a imagem que tentavam refletir e assim, o deixavam ali como guardião emérito.
A janela do quarto, vista parcialmente, despida de qualquer roupa deixava ver o outro lado do prédio, como se aquele metro quadrado fosse algum tipo de universo paralelo onde se podia existir em algum tipo de vazio. Esta também residia fechada, as do banheiro, pequenas, também e se as da área diminuta de serviço assim fossem, teriam ali dentro ficado trancados um sem fim de frases, risos, choros, suspiros, amores, dissabores, alegrias e tristezas vagando pelos cômodos a esmo, esbarrando uns nos outros esperando obter algum sentido ou resposta que talvez jamais viesse.
Quem sabe futuros moradores poderiam sentir no ar esses resto mortais de conversas e sentimentos passados, atribuir ao mofo e assentar residência ali sem saber de tudo que ali já fora proferido e feito. As paredes poderiam ganhar um branco mais alvo, os buracos de pregos novos moradores e aquele bando de frases soltas enclausuradas novas bocas por onde pudessem entrar e aguardar bem quietinhos o momento de voltarem ao mundo fosse para agradar ou causar estrago.
Pensou mesmo que houvesse algum tipo de má-fé embutida na moradia já que lhe parecia que os que ali tentavam fixar residência tinham uma permanência extremamente efêmera mas, se há esse tipo de coisa, cria mais que fosse fruto da ação humana pura e estúpida que devido a poderes sobrenaturais, os espíritos deveriam ter coisas mais importantes e agradáveis a fazer que perturbar os vivos já que deles prescindiam, haviam livrado-se deste incômodo, podiam vagar pelo universo, não careciam amaldiçoar os vivos que o faziam muito bem por si mesmos.
Suspirou, profundamente. Pensou se um dia ali onde residia seria uma réplica do apartamento vazio em frente, sabia que esse dia chegaria e o aceitaria calma e docemente ainda que apegado a um certo sentimento de posse mas, sabia que o corpo que usava, assim como o imóvel, eram apenas arrendamentos com ilusão de posse, chegada a hora, passariam a outros que necessitavam mais deles, era assim a coisa toda.
Desejou intimamente sorte a quem quer que fosse o novo morador do apartamento vazio, fosse o dele ou aquele à sua frente e foi lá cuidar de sua vida emprestada.
Era o que podia fazer.
December 3, 2020
sete dias
SEGUNDA-FEIRA
É saudade então, algo que já vi e não vejo mais ou um desejo inerte que desperta ao toque ou sussurro de alguma palavra mágica, ánima que faltou quando da concepção, talvez seja isso a busca pelo amor. Quando fecundados, algo se perde na fusão dos gametas e, saídos do ventre, passamos o resto de nossos dias a buscar esse complemento que nos falta.
Acho que você buscava o mesmo ou os olhares não haveriam de cair em traição e posto a nós em situação de desconforto agradável. Depois de cruzados, o caminho já ia sem volta e do olhar passamos a palavra e pequenos gestos que denotavam um sentimento mútuo embrionário.
A criação demanda tempo mas desse bem, os que gostam parecem dispor com bem lhes parece ainda que, incoscientemente, saibam seguir seu ritmo e direção únicos.
TERÇA-FEIRA
O que demanda o sentimento, o desejo prescinde. A carne deve ser provada até os ossos, como se apenas neles residisse a essência, o gosto. O afã do início rouba de nós o prazer da degustação, quando finalmente resolvemos deixar o paladar banquetear-se, o sumo do gosto já foi sorvido e ainda que a carne seja saborosa, seu suco primordial já se foi e passamos apenas a mastigar o mesmo naco até dele sorver a última gota de suco.
Todavia, é um processo prazeroso esse e nos entregamos a ele com afinco afinal nossas carnes eram tenras e novas, havia muito que saborear e pouco que refugar. Durante as refeições eu, você ou nós deixamos escapar algo que não estava no cardápio ou deveria ser a sobremesa o que adoçou ainda mais as bocas e nos fez pensar nos dias que viriam trazendo apenas mais sabores.
QUARTA-FEIRA
A metade é um lugar inóspito, inspira cuidado pois é invariavelmente o ponto de onde se decide ir adiante ou retornar de forma segura. Tal decisão deveria ser tomada de forma cuidadosa e pensada mas, costumamos fazê-lo de julgamento impreciso, infestado de emoções inebriantes e promessas de que tudo sempre será melhor no dia seguinte, na próxima esquina, ao virar a página.
Ainda que os presságios sejam animadores, deveria haver algum tipo de regra que forçasse a todos, chegando em tal estágio, pesar bem o que fazer em seguida e tomar uma decisão proveitosa a ambos mesmo às custas da desgraça de uma das partes.
Infelizmente, isso não ocorre, sentir é tomar decisões assim, se fosse o oposto o mundo viveria em paz e os casais estariam juntos para sempre ou cada um vivendo tranquilamente uma existência única, pacífica e plena de si mesmo.
Tomamos as mãos um do outro e mandando às favas qualquer sinal ou sugestão de bom senso, seguimos em frente deixando para trás qualquer possibilidade de fazer a volta. Isso é amor, se fosse o contrário não o seria ou estamos todos cegos e carentes ante a hipótese de seguir sozinhos um caminho tão longo.
QUINTA-FEIRA
Depois de um tempo, até o inominável ganha nome, é do humano nomear as coisas e isso feito, passa-se a criar um laço afetivo com o nomeado e a partir desse momento, ele começa a fenecer.
Talvez deixar as coisas sem nome fosse uma alternativa mais honesta e que nos permitiria uma vida menos atribulada mas, não somos assim e seguimos dando nomes a tudo que vemos pela frente. Demos os nomes ao que sentíamos e isso nos encheu de orgulho, talvez isso seja a causa da morte de muitos ou seja apenas o cansaço.
Registramos em cartório, reconhecemos firma e voltamos para casa satisfeitos.
SEXTA-FEIRA
A antecipação é uma antessala cheia de gente onde ninguém é chamado pela ordem de chegada, senha ou nome. Ficamos todos ali esperando, os pés tremendo nervosamente, as pernas abrindo e fechando e os dedos tamborilando sobre as coxas.
A questão é que antecipamos algo que já sabemos, conhecemos e sabemos certo mas fingimos não saber, feito uma surpresa ao contrário. A felicidade tem um valor, é certo, problema é estipular o preço, essa conta fecha pouquíssimas vezes pois a matemática que usamos nunca é mesma.
Se eu quero multiplicar, você divide, se quero somar, você quer subtrair, se quero chegar a raiz quadrada, você faz cara de pi e assim vamos.
SÁBADO
No sétimo dia descansamos, exaustos um do outro.
DOMINGO
Fui a missa bem cedo, você estava lá também mas sentado do lado oposto ao meu.
A homilia seguia seu curso, cada um ali fermentando seus pecados e arrependimentos, olhando para as imagens de ar sofredor buscando algum alento, as palavras proferidas eram apenas mais uma chibatada em lombos já em carne viva, deveriam servir redenção mas só havia mesmo penitência.
Estava ali para prestar meus tributos ao falecido, não esperava que voltasse dos mortos feito o Nazareno mas, achei de bom tom ao menos encomendar uma missa em seu nome já que me fora tão importante durante tanto tempo.
De soslaio olhava para você, quem sabe não viera fazer o mesmo, vi o tempo que marcar bem cada minuto nosso em suas faces e não apenas nas minhas, suspirei fundo olhando para as pinturas nas paredes e cruzei olhos com aquele santo das causas perdidas ou impossíveis, não lhe pedi nada porque já havia passado e muito o tempo de lhe fazer pedidos, era momento de aceitar e purgar e deixar ao altíssimo qualquer possibilidade de julgamento.
No momento em que os falecidos eram citados em solene homenagem, abaixei a cabeça, arrisquei um olhar em sua direção e acho que vi algo úmido em seu rosto mas não sei ao certo, me contive em relembrar os mortos e desejar que estivessem em lugar melhor, cabe aos vivos apenas isso e tocar a vida até o momento de ir com eles ter e saber se lhes fizemos justiça ou vergonha.
Acabada a missa, saí de fininho, queria deixar aquele lugar o quanto antes e antes de você mas, acho que as entidades superiores fazem graça conosco e a aglomeração à saída me deteve o suficiente para que logo no umbral nos deparássemos um ante o outro.
Acho que vi as imagens virarem seus rostos nesse momento em tensão, não sei, Trocamos olhares velhos, cansados e sentidos, velávamos o mesmo corpo e agora era tempo de deixá-lo cumprir seu ritual de passagem.
Esprememos cada um nossos lábios num esgar de sorriso de compreensão mútua ou resignação e saímos dali para a vida que seguia seu curso normalmente do lado de fora.
December 2, 2020
as coisas embaixo da mesa
Dia desses lembrei de algo da infância, nem sei porque, apenas veio do nada, assalto de lembrança aleatória que acomete qualquer um de nós de tempos em tempos, a vida vai se embrenhando na gente de um jeito engraçado, vai cravando lembranças e memórias que nem parecem nossas mas de outras pessoas, quando acessamos, soam como algo distante, quase irreal e sem sentido mas então, aqui e ali disparam mecanismos que fazem uma associação súbita e sabemos que são lembranças nossas ou algo muito próximo disso.
Na casa dos meus pais havia uma sala de jantar, nem sei porque já que seu uso era algo mais raro do que passagem de cometa, sei que a sala que era de jantar depois virou de estar, acho que eles entenderam que ali não haveriam grandes jantares ou almoços, talvez fosse um desejo de ambos, ou apenas de um deles, aquele tipo de coisa que precisa uma casa precisa ter para ser chamada de casa, um símbolo de status, algo como 'chegamos lá', eram móveis de madeira, maciços, entalhados, rococó, a mesa de seis lugares, um guarda-louças logo atrás de madeira preta e portas vazadas guardados por cortinas de tecido azul imperscrutáveis guardando heranças que nem sei onde foram parar, um aparador ou seja lá que nome leva onde eu passei a guardar meus discos de vinil e onde, ao centro, duas portas de vidro zelavam por bibelôs e pequenos animais de vidro.
Debaixo dessa mesa que raramente era usada, eu costumava brincar, fechava todas as cadeiras o mais próximo da mesa quanto possível e fazia dali comando de naves, submarinos e aviões, também colocava carrinhos, de metal que se chamavam Matchbox e vinham em caixas de papelão, pré-hot wheels, em pequenas reentrâncias que haviam por debaixo da mesa e gostava de 'esquecê-los' por lá para, tempos depois, quando voltava a me trancar naquele espaço, reencontrá-los como se fossem relíquias sagradas há muito perdidas.
Lembro que algumas vezes eu apenas ficava ali, embaixo da mesa, as cadeiras como algum tipo de portão ou muralha e eu quieto, apenas ouvindo os sons que vinham da casa, os passos pelo carpete, os ruídos que vinham da rua e uma sensação estranha e engraçada de me perder e me achar como se eu fosse um outro de mim dentro outro de mim em mim mesmo, um certo formigamento pelo corpo e no rosto enquanto meus olhos semifechados deixavam apenas o essencial de luz entrar para criar uma noção de espaço e tempo que não era ali nem outro lugar.
Depois de crescido, nunca mais entrei debaixo da mesa até o dia que ela foi embora, não sei direito para onde ou para quem, ela apenas foi assim como o armário impávido com suas cortinas azuis de tecido e seu conteúdo de tesouros inacessíveis e o aparador cheio de badulaques de vidro e pequenos animais que mais pareciam cansaços feitos pelo tempo.
Não sei porque lembrei disso, apenas lembrei e esse post é apenas sobre isso, sobre essa lembrança, nada mais.
December 1, 2020
atestado
Antes de tudo, quero deixar claro que distúrbios emocionais, psicológicos, psiquiátricos ou afins são assunto sério e precisam de tratamento profissional qualificado, acompanhamento e medicação. Se você suspeita que sofre de algum desses distúrbios, procure ajuda profissional e tratamento, não se acanhe!
Bem, acho que todos viram o caso desta moça na padaria , não? Triste, horrendo mas nada que não seja normal e comum no Brasil Bolsonarista. Logo após o ataque, a 'advogada' (aspas amplas porque a OAB desconhece a rábula, deve ter comprado o diploma ou, em seus delírios, é formada e pode advogar) veio pedir desculpas, meter atestado, sofre de bipolaridade, transtornos emocionais e que a vítima foi ela e não as pessoas que ela xingou, humilhou, ofendeu e agrediu na padaria.
Vamos por partes.
Se ela realmente sofre de algum tipo de distúrbio psiquiátrico ou psicológico a primeira questão é se ela está ou não em tratamento, se faz ou não uso de medicação e se, na ocasião, havia feito uso de álcool ou outras substâncias que poderiam ter atuado com a medicação e causado o comportamento agressivo. Se ela realmente sofre de algum tipo de transtorno, jamais poderia sair desacompanhada ou talvez nem mesmo sair de casa quanto mais consumir qualquer tipo de substância que pudesse causar um surto. Pelo que se pode ver no vídeo, ela não parece ter vindo de casa ou do trabalho mas indo ou voltando de alguma festa ou balada e, volto a dizer, como uma pessoa assim pode andar ou sair sem supervisão e consumir substâncias que podem potencializar efeitos de remédios pesados que devem ser tomados por pessoas que sofrem desse tipo de distúrbio? Se ela realmente sofre dessas doenças há um atenuante mas não se pode relevar o fato ocorrido e deveríamos ouvir as pessoas que são responsáveis por ela já que ela não pode ser responsável por si.
Isso posto, ainda eu sua condição possa ser algum tipo de atenuante não a exime de culpa pois seu comportamento, atitude e falas registradas em vídeo deixam claro que ela, ainda que em surtada, estava totalmente coerente e apenas livre das travas morais e sociais que a impediriam de fazer tal coisa em condições normais ainda que, nos dias de hoje com um governo que passa carta branca para esse tipo de horror, as pessoas sentem-se muito à vontade para proferir ofensas raciais, sociais, de orientação sexual ou gênero sem qualquer constrangimento ou seja, ela pode até ser doente mas não é louca e, em surto, deixou clara sua personalidade e modo de pensar.
Os cidadão do bem surtados tem esse tipo de comportamento comum, podem notar, sempre fazem das duas e depois metem o atestado de distúrbios e doenças emocionais e mentais e tentam virar o jogo para saírem como vítimas da situação e não como criminosos pelo simples fato de que dentro de sua lógica distorcida por toneladas de medicamentos e voto 17 eles realmente estão sendo perseguidos por não poderem ofender as bixas, as pessoas trans, pretas e toda e qualquer pessoa que não se encaixe no mundo binário e centrado que enxergam.
Eles desejam a liberdade de dizer o que quiserem sem o ônus de arcar com as consequências e aí, pagam de doidos, veja só! Em suas mentes, o que fazem não é ofensa e quando retrucamos e revidamos estamos tolhendo sua liberdade de expressão que na verdade não está sendo posta em cheque, apenas recebendo a reação contrária na proporção de seu ato horrendo, hão de entender de que para toda ação há uma reação na mesma força e medida e estavam acostumados a não serem questionados.
Não adianta vir de atestado, vocês podem até serem doentes e usaram medicamentos, hoje em dia quem não usa mas, não venham usar disso como muleta para seu comportamento escroto e lixo, isso não cabe mais no mundo e vocês não conseguirão mais virar o jogo e sair impunes, esse tempo acabou! Vocês podem se esconder atrás de seus atestados e laudos, de suas doenças e desculpas mas nunca mais conseguirão se safar da culpa por seus atos, vocês acham que podem usar de subterfúgios para isso mas não, não vão conseguir mais porque a gente deste lado aqui já sacou seu jogo e ninguém aqui vai mais baixar a cabeça e passar pano para vocês.
Podem se entupir de remédios e jogar todos seus atestados, nada vai colar quando a gente sabe o jogo de vocês e não vai mais engolir essas mentiras que vocês adoram contar porque não tem estrutura nem coragem para assumir que são sim racistas, machistas, homofóbicos e querem nos ver mortos.
Pode vir de atestado que a gente vem de perícia.
November 30, 2020
prato feito
Antes de qualquer coisa, deixo claro que não tenho a solução para esse ou qualquer problema e que as opiniões que expresso aqui são minhas e tão somente minhas, sinta-se livre para concordar, discordar e parar de ler se for o caso.
Ainda estamos na 'ressaca' desse caso horrendo, parece meio chover no molhado falar dele e de como indignou a todos nós, parece pouco seguir falando dele, parece nada não falar e deixar o Carrefour soltar notas de desculpa e inserções em horário nobre de seu presidente branco europeu fingindo um horror lido nas placas pois era incapaz de decorar um texto simples ou mesmo falar de improviso que teria sido mais humano e sincero.
O horror maior entretanto veio de quem governa, de quem mama nas tetas do presidente, lhe lambe o cajado e as botas cheias de merda. Não existe racismos no Brasil! Que coisa maravilhosa, gente! Somos talvez a única nação no mundo que erradicou esse câncer! Serei forçado a votar no coiso por esse feito tão incrível! Racismo no Brasil? Onde? Estão importando coisas de fora para tumultuar a sociedade, Brasil é um país misturado, um caldeirão cultural e racial, somos todos pretos e pardos e índios e brasileiros.
E vem o cidadão de bem comentar nas redes e sites que estão fazendo massa de manobra, que o cara era meliante, tinha ficha, era agressor, assassino condenado, batia na mulher, era estuprador e outros, tudo para justificar que ali foi apenas a lei do retorno, que ele teve o que mereceu e que coisa boa não deveria estar fazendo senão, não teria morrido, essas coisas que todo cidadão de bem adora repetir para não ter de encarar a triste realidade dos fatos.
O caso Carrefour não é isolado, acontece todos os dias em todo lugar mas a gente faz de conta que não acontece, não vê. O Carrefour tem histórico: em 2009, funcionários da unidade de Osasco espancaram um homem negro sob alegação de que ele estaria tentando roubar o carro que era dele mesmo. Em 2018, um homem negro deficiente foi espancado na unidade de São Bernardo do Campo porque abriu uma lata de cerveja dentro da unidade. Entre 2017/18, uma mulher negra e dependente química foi espancada e estuprada numa unidade do Rio de Janeiro e fora os caso do cachorro que foi morto por um segurança da loja e daquele outro caso de uma pessoa que morreu dentro da loja que seguiu funcionando normalmente tendo apenas coberto o corpo com guarda-sóis.
O Carrefour aparece porque é uma empresa grande, gigante, internacional mas casos iguais ou piores que acontecem diariamente em outros estabelecimentos passam batido por nós e pior, de tanto vermos casos assim acabamos normalizando sua ocorrência, mais um, acontece sempre como qualquer outra coisa numa cidade grande e num país como o nosso.
O pior é que lutar contra isso é uma tarefa ingrata, tipo enxugar gelo porque boicotar a empresa pode parecer um ato viável mas na verdade pouco tem de efeito porque as pessoas seguem comprando na rede e não seria apenas boicotar o supermercado mas as marcas que fazem negócio com ele e que também tem culpa no cartório mas se fazem de isentas porque não vão perder bilhões em vendas. Não adianta pressionar o Carrefour, temos de pressionar a Unilever, a Coca-Cola, a Nestlé e todas as grandes marcas que também pecam por omissão e tem sim casos de racismo, homofobia e outros em seus catálogos, uma tarefa praticamente impossível já que boa parte das marcas que consumimos estão nas mãos dessas e outras empresas que controlam tudo que consumimos mundialmente.
Além disso, há o fator social e político, quando o governo se faz de besta e prefere proferir absurdos, sandices e imbecilidades ao invés de encarar de frente o problema, incita a parcela da sociedade que pensa igual a fazer a mesma coisa e normalizar e relativizar casos assim tomando sempre a vítima como culpada e duvidosa, se apanhou ou morreu é porque coisa boa não era, se fosse gente de bem não teria acontecido nada, se fosse gente branca de bem, obviamente.
Enquanto aceitarmos tacitamente declarações estapafúrdias de governantes imbecis e pedidos de desculpa corporativos vazios cheios de medo da queda nas ações e não de culpa, estaremos no mesmo barco que o Carrefour e todos os que acham que a vítima é sempre culpada.
November 10, 2020
reminiscências
Frio, e as flores tem medo de algo que não dizer o que é, de certo não queriam estar ali mas nos campos sendo colhidas pelos ventos ou tocadas pelos outros, ali tentavam porcamente emprestar um ar menos nefando ao lugar. Não chorava, murmurava algo como em um mantra e os que me me falavam vinham em línguas, não percebia bem o que me queriam dizer, um afago? Pesar? Aquelas frases mais mortas que o lugar e o motivo de estarmos ali, mantrava algo que eu não sabia mas que lá dentro de mim era eu te amo, soube assim que pus olhos em sua face deitada coberta por um fino pedaço dee açúcar provavelmente tecido pelos anos que dedicamos a nós até que nós dividiu em dois e fomos cada um ser o que nunca seriamos de novo.
Reabrir assim a ferida que ainda tinha uma casca fina era crueldade demais, ia culpá-lo mas de que adiantaria? Eu mesmo arrancava a casca quando ela começava a engrossar só para lamber o sangue que escorria dela fechando o olhos, lembrar de sua boca na carne e eu sou culpado mas me absolvo pois antes de sua viagem que não se adia, havíamos trocado minúsculas confidências que amenizaram os dias encalhados na garganta um do outro.
Quando lhe fecharam, não vi mais seu rosto mas ele ainda me seguiria porque nunca se esquece um rosto quando o rosto não tem face mas entranhas, coração, ares, embrenha até nos genes e nunca mais sai de você salvo com a hora certeira, talvez nem assim...
Ido a terra, só me restou passar os dias, fazer deles semanas, convertê-las em meses e estes, somá-los aos anos até que virasse lenda e finalmente, mito. O tempo foi comendo cada pedaço de mim com generosidade, como se guardasse para o final a melhor parte, degustando cada migalha minha com gosto, lambendo os beiços e dizendo que não queria mais apenas para repetir o prato ano após ano.
Só que ele se deu mal porque já me devorara tudo, sobrando apenas os ossos para palitar os dentes, deu com os dentes eternos em algo tão rígido que lhe trincou a mandíbula secular e, arisco, afastou-se, era aquele pequeno pedaço que era eu e você e que ele sabia lhe ser impossível devorar.
Ri alto, na cara dele, isso você não leva e estava encerrando meus momentos, buscando automático a última lufada de ar para manter funcionando o que restava, me apegando a tudo quando não precisava de nada, trôpego para ganhar segundos que fossem e ela já ao meu lado olhando pacientemente o relógio, esperando, não dizendo nada, sabia que a hora era dela, bastava aguardar....e então quando entrou um jovem que ali cuidava dos que estavam por ir, ele debruçou-se sobre mim, um ar jovial e calmante, uma paz que eu nunca provara antes...e ele me olhou nos olhos, bem fundo, tão fundo que os senti na alma que já ia me escapando e dela veio o alerta.
Ele segurou minha mão docemente, terna e docemente, pousou seus lábios de pluma sobre minha testa e nos olhos dele vi que era você, tinha vindo de novo e agora tão somente para me dar aquele último afago, sorri infantil e olhei para ela ao meu lado que me acenou, retribuí e olhando de volta para ti, me deixei ir certo de que num próximo encontro o desencontro seria menor.


