Alexandre Willer's Blog, page 8
January 21, 2021
perguntas impossíveis de responder
'Você me ama?' me pegou desprevenido, desceu goela abaixo feito cubo de gelo que se engole sem querer, os dedos frios arranhando a garganta deixando minha face num esgar tragicômico. Tentei esboçar resposta mas saiu apenas um ar abestalhado tipo esses de programa humorístico ruim.
'Você me ama?' saiu de novo atropelando minha ideias. O coração emudecera, então veio correndo bem lá do fundo do cérebro uma lista de possíveis respostas, mas todas, ao chegarem por canais tortuosos à boca, emaranhavam-se numa glossolalia.
'Você me ama?' voltou à carga com tudo, desmembrou minhas defesas e tentativas de argumentar já que resposta mesmo, não havia. Acho que houve em algum tempo já morto há muito e hoje apenas disponível nos livros de história.
Então, não houve mais 'Você me ama?'. Apenas um silêncio alto, eloquente, mas não de cristal, esse quebrara-se quando 'Você me ama?' começou a ficar sem eco ou resposta. Aos poucos ele foi diminuindo, deixando o ar menos denso até que me soou como um silvo fino e distante feito um trem que eu perdera desde sempre.
Sôfrego, vomitei incontinente um 'eu te amo' baixinho, quase um suspiro mas era na verdade eu reaprendendo a falar. Lá do fundo de mim, entendi que a pergunta havia sido respondida.
January 20, 2021
eu não saberia dizer
Eu não saberia dizer resmungou meio lado como a cuspir as palavras para que elas não me caíssem na cara, as vi descendo pela boca e correndo depois pelo asfalto apressadas, pegaram um táxi que quase não parou e se foram não sei para onde.
Mas você diria, assim, se pudesse? Perguntei meio sem jeito e sem medo ou melhor, com o segundo mas disfarcei bem, era uma máscara que estava habituado a usar, segunda pele que já mais tirava fosse no banho ou para dormir, facilitava ir tocando os dias.
Se pudesse, quer dizer que não posso, não quero ou não consigo? Me deu assim essas três alternativas que para mim davam no mesmo, uma questão semântica que ali era irrelevante e fiz cara de quem assim pensava mas como era pouco, tive de juntar na boca as palavras separando a saliva que já me faltava com cuidado, era bom evitar que elas fossem vingativas já que não queriam sair de onde estavam.
E há diferença? Me traíram, acho que escorregaram na saliva e trocaram de lugar, havia pensado outras mas foi isso que saiu.
Muita e plantou ali um silêncio pra colher um pouco mais ali na frente, eu vi as sementes entrarem no solo de ninguém que existia entre nós, achei que ali já não vingava nada mas elas caíram tão bem e pude ouvi-las brotando.
Passou um ônibus já meio vazio, cansado, indo se retirar e talvez conversar com outros ônibus sobre o dia, comer e vomitar gente o dia todo não é para qualquer um. Passou um táxi, por um momento achei que eram aquelas palavras que haviam fugido mas não, estava vazio.
Passou uma avião bem lá no alto, estava meio rouco eu acho, gripe talvez, voar tão alto tem um preço imagino. Passou um casal jovem, tão juntos que pensei serem uma pessoa só, deu saudade mas passou também só que não junta como eles, foi sozinha mesmo, já andava assim há tempos.
Ouvi o silêncio brotar do chão.
Poder eu posso, conseguir qualquer um consegue já querer, isso eu não sei se quero e me fitou com ar de graça, não de graça rida mas de graça daquelas emprestada dos santos, aura, halo, santificado seja o vosso nome assim me ferra como no fel.
E pode não saber se quer? Deveria ter usado ‘sequer’, teria caído melhor.
E você sabe se quer? Ele também deveria ter usado.
Se quero deveria ter saído como pergunta num tom de reprimenda ou contestação firme mas, saiu sem entonação ou pontuação, duas palavras soltas vagando naquele espaço onde o silencia rendia frutos já podres.
Não vejo sentido, digo, nisso tudo, acho que já não temos mais o que ou como e baixou a cabeça e baixei a cabeça e baixamos as cabeças e fitamos o chão, os pés ficarem sem jeito.
Gostaria que visse, eu acho, talvez ainda haja algo mas disse sem convicção, me faltava o sangue necessário para preencher as palavras.
Aquele ali é o meu e apontou com o queixo para o ônibus que se aproximava.
Aquele ali é o meu e apontei com o queixo para coração que se distanciava.
A gente se cruza, ou não, melhor, cada um assim, você sabe, entende, eu acho e já em pé me estendeu a mão enquanto com a outra fazia sinal para que ônibus parasse, pegava um e largava outro, não sei bem qual era qual.
Sim e dei a mão que não acenava para partir. Ele subiu no ônibus sem olhar para trás e eu chamei o táxi que vinha logo atrás, não estava livre mas podia rachar a corrida, as palavras que estavam nele, aquelas, não iam sem importar nem um pouco.
January 19, 2021
francisco o lobisomem
francisco o lobisomem andava acabrunhado, estranho e não pelo fato de ser um lobisomem o que poderia ser considerado estranho mas já não era considerado estranho há tempos porque lobisomem nem era assim algo de meter medo quando tem coisa bem pior que lobisomem no mundo.
francisco o lobisomem andava assim porque já fazia muito tempo que sua transmutação em lobo não seguia mais um padrão, um ritmo, um calendário, uma expectativa. ele se lembrava de quando podia marcar na folhinha os dias em que o lobo uivaria dentro dele rasgando tudo por dentro para sair mas agora, ele não conseguia mais saber direito quando isso ia acontecer e isso lhe causava muitos problemas.
francisco o lobisomem não conseguia mais saber ao certo quando a lua seria cheia, ou porque o céu assim não o permitia de tão nublado e cinza, ou porque diziam que a distância da terra a lua mudara com o passar do tempo, ou porque a terra era plana e ele não entendia onde a lua iria aparecer, ou porque estavam colocando gente na lua, ou porque tinha tanto satélite ao redor da terra que a lua ficava meio perdida e ele também sem saber quando exatamente deixaria de ser homem para virar lobo se bem que hoje em dia parece tudo a mesma coisa, até mais lobo do que homem e ele se perguntava às vezes se não haveriam lobos que viravam homens num tipo de maldição ao contrário, tinha dó dos lobos que eram criaturas gentis mesmo com ele que não era um lobo de verdade só ocasionalmente.
francisco o lobisomem lembrou de uma vez que lobo, encontrou outros lobos que não erma homens que viravam lobos mas lobos mesmo que eram lobos desde lobos eram lobos e não havia essa coisa de homem virar lobo. lhe disseram que andava difícil ser lobo, a competição humana era forte e ser lobo quando o lobo-homem era o inimigo fazia ser lobo algo quase impossível e ele perguntou se eles conheciam outros lobisomens e eles disseram que sim mas que eram poucos porque até lobisomens andavam minguando, não era mais bom ser lobo que dizer lobisomem e tinha lobo que não gostava de lobisomem e tinha homem que não gostava de lobo nem de lobisomem e tinha quem não gostasse de nada e queria todos mortos.
francisco o lobisomem andava então assim meio entristecido e passava algumas vergonhas porque, incapaz de saber ao certo quando viraria o lobo que era o home do lobo do homem lobo, já se transmutara em locais pouco recomendados como a vez em que ele no coletivo que o levava de volta para a casa depois de um dia de trabalho noturno, sim porque lobisomem vive só de matança nos filmes e livros, na vida real ele tem de trabalhar para pagar as contas como qualquer outra criatura folclórica, e, sem saber que a lua ia cheia feito uma barriga cheia de vermes, transmutou-se ali dentro do ônibus mesmo mas, ninguém deu fé dos pedaços de carne e sangue caindo e da besta saindo de dentro de si, ele uivou e alguém reclamou por silêncio no meio do transporte lotado, reclamaram também da sujeira que ele fazia, se fosse virar bicho que descesse e virasse do lado de fora, envergonhado, desceu no próximo ponto de foi lá concluir sua transmutação em paz.
francisco o lobisomem maldizia não o fato de ser lobisomem mas o fato de passar vergonhas por isso como naquela vez em que ele, em lobo, foi prego pelo controle de zoonoses e só não foi sacrificado porque no dia seguinte, encontraram homem e não lobo na gaiola onde estava e, confusos, deixaram ele ir embora crentes de que haviam sido pegos em algum tipo de pegadinha entre colegas.
francisco o lobisomem também tinha problemas com vacinas porque, além das humanas, todo ano tinha um problema sério em explicar no posto porque precisava da vacina que só era dada em animais, uma vez disse que precisava porque era lobisomem e quase foi trancafiado por estar doido ou drogado.
francisco o lobisomem seguia assim sua vida até que um dia, sem poder ver a lua ou saber sua fase, transmutou-se quando passava em frente um circo e o dono viu e o pegou ainda lobo e levou como atração para o circo de lonas remendadas, animais abatidos, palhaços borrados e músicas riscadas. de princípio foi difícil explicar ao homem que o lobo só saía quando a lua vinha cheia, o homem queria o lobo todas as noites mas deu-se por vencido quando viu que só naquelas noites o lobo vencia o homem mas, o homem que queria o lobo mesmo assim manteve o lobo que vivia no homem porque esse lobo rendia um bom dinheiro até que um dia, o lobo que saía do homem deixou de ser novidade porque o homem que queria o lobo dentro do homem achou outros lobos mais interessantes e aquele que só virava lobo na lua cheia já não servia para mais nada.
francisco o lobisomem foi visto pela última vez nalgum lugar do país, todo lobo pelo que se diz, não era mais homem, cansara de era só lobo e há quem diga que se pode ouvir seu uivo cantado em noites de lua cheia e silêncio absoluto.
January 18, 2021
silver
a bala de prata sai rasgando o cano da armapau feito orgasmo natimorto de um gozo abduzido de um corpo que não sabe como ser se não for no risco, no perigo, no fio da navalhacarne que corte rios de almas feito manteiga.
ela mata o lobo, o homem, o lobo do homem, o lobo no homem, o lobhomem que não é lobisomem porque esse são dois distintos, o lobhomem é um bicho que só faz se alimentar de seus pares porque não consegue encontrar satisfação que outra carne que não seja a dos seus iguais, sente prazer, lambe as patas e dedos e quer mais e gosta de ver a vítima sofrer enquanto lhe devora os ossos.
a bala de prata é magia feita minério mas só funciona ali, no abra ka dabra, na prestidigitação de centoquarenta caracteres, de live de fim de semana, de like, de curtida, de fé no fake, eu acima de tudo e deu acima de todos. ela voa rápido para matar não o bicho que roa nossos pés mas o coração que já vai fraco e bate vez ou outra de tão irregular ante o tempo que não tem mais cadência.
vamos comprando balas de prata, para matar não os monstros mas nossos pensamentos, nossas ideias, nossos amores, nossos sexos, nossos amigos, nossa humana(idade), a gente atira no que não viu e acerta o que vê todos os dias e o monstro segue rindo porque as balas de prata são doce em sua boca cheia de carne e sangue, se há bala para matar o monstro, há de encontrar o revólver que a atire, propulsão a jato de palavras que todos falam mas não sabem dizer e, se você não sabe dizer o que fala, como quer falar o que diz?
balas de prata são jujubas que ferem, estilhaçam os dentes e partem osso, articulação e pele, alojadas dentro de nós vão se dissolvendo e enchendo a gente de prata, expulsando o sangue até que fica apenas prata e gente que tem prata no lugar do sangue não morre mais com bala de prata, gente que tem prata dentro não tem nem valor, só é fria e dura e cheia de prata e aí não tem mais remédio ou bala que dê jeito...
January 15, 2021
ernesto o vampiro
ernesto o vampiro acordou atrasado pois na falta de caixão ou cova ou ataúde ou seja o que for, acabou dormindo numa estação de metrô e dormiu pouco porque a estação ia cheia o dia todo e ele não dormiu direito com aquela gente toda indo para cima e para baixo e com aquele cheiro de gente que ele gostava mas que para dormir lhe atrapalhava demais.
ernesto o vampiro acordou com fome e tentou jantar uma mulher que ia cheia de sacolas mas a mulher quando o pescoço já lhe estava nos dentes gritou e ele pensou que fosse com ele a lhe querer o sangue mas era com outro que pelo jeito havia lhe passado a mão e ernesto foi empurrado e só ficou vendo a gritaria que parou o vagão.
ernesto o vampiro tentou então um jovem que estava encostado na porta com fones de ouvido e ar distante e que o olhou nos olhos e ele olhou de volta e achou que tinha mesmerizado a vítima mas ela piscava para ele e erneste o vampiro ficoi sem saber se era um tique nervoso ou o que e a vítima passava os lábios pela língua e ele tinha fome mas aquilo o assustou e a vítima mostrava a língua como sedenta e ele ficou com receio e achou melhor se afastar.
ernesto o vampiro tentou uma velha que se cercava de sacolas e um carrinho e que parecia estar cimentada no assento do trem e foi se chegando se chegando se chegando e ele não gostava de sangue velho mas tem horas que não dá para ter luxo e quando já se acercava da velha viu um fio de ranho a lhe escorrer do nariz e ficou com nojo porque vampiro ele até podia ser mas aquilo era demais até para um vampiro.
ernesto o vampiro viu então um homem alto grande forte mais ao fundo do trem que lhe abriu as narinas com cheiro de sangue quente forte viril e flutuou até o homem quer dizer não flutuou porque estava cheio demais então ele foi esbarrando nas pessoas que o xingavam até chegar perto do homem cujo cheiro de sangue testosterona o deixou babando isso era uma refeição digna mas, quando ernesto o vampiro ia dar o bote o homem o segurou pelo pescoço chamou de viado e atirou longe dizendo que o mundo estava assim perdido e apertando o membro dizendo que se ele quisesse aquilo teria de morrer primeiro e ernesto ainda fraco sem ter comido achou melhor deixar para lá.
ernesto o vampiro viu então uma garotinha sentada ao lado da mãe que dormia com ar de uma exaustão que ele vampiro jamais vira e, ainda que tivesse restrições quanto a alimentar-se de crianças, a fome apertava então foi para cima da menina que antes de que ele pudesse lhe cravar os dentes sacou o celular e tirou várias fotos com flash assustando o mortovivo que fugiu estabanado.
ernesto o vampiro já sentia o estômago morto mas vivo nas costas mortas vivas e precisava de sangue mas não conseguia morder ninguém ali, bons tempos em que um vampiro podia se alimentar sem medo, sem passar vexames como esse de agora, em que vampiros eram vistos como figuras míticas místicas e românticas com a dádiva da vida eterna.
ernesto o vampiro já estava quase seco quando tocou uma campainha e o povo todo se alvoroçou para sair e ele estava no meio e as pessoas estavam nervosas e ele no caminho e era um empurra empurra e ernesto o vampiro não conseguia sair dali e tentou usar seus poderes mas estava por demais fraco e as pessoas bravas e famintas e ele sendo levado pela turba e foi pisoteado e virou um tipo de massa vampírica amorfa no chão do trem e as pessoas sentiram o cheiro de sangue fresco e se foram ao chão e devoraram tudo um dia havia sido ernesto o vampiro e depois saíram e foram seguir com suas vidas satisfeitas e felizes e de veias cheias.
nunca mais se ouviu falar de ernesto o vampiro....
January 14, 2021
fobia homo 4
É triste termos de celebrar um dia do orgulho gay, gostaria de não precisar celebrar essa data, de simplesmente ter orgulho e não precisar reafirmar isto a cada segundo, minuto, hora, dia, semana, mês, ano.
É triste termos de celebrar orgulho quando isto deveria estar implícito e de tácita aceitação, não sendo necessária essa sensação de estarmos pedindo permissão para apenas sermos quem somos, nada mais ou menos.
É triste termos de celebrar orgulho quando há motivos de sobra para o oposto vide a quantidade de gays (em todo seu leque) que são vítimas de violência, humilhação, preconceito, injúrias, ofensas e todo sortilégio de infortúnios sem qualquer manifestação social de compadecimento, justiça ou solidariedade.
É triste termos de celebrar orgulho por uma conquista tão banal quanto casar, uma instituição falida há séculos, dinossauro da herança moral e religiosa mas, infelizmente, único parâmetro que temos para tentarmos construir algum tipo de família ou identidade social. Até nisso somos forçados a adotar padrões heteronormativos.
É triste termos de celebrar orgulho quando as linhas do tempo, mesmo coloridas, escondem reacionários e fóbicos em geral de plantão, prontos para cerrar os punhos e desferir um golpe certeiro assim que a alegria acabar. A incapacidade humana de respeitar e entender o próximo (não digo aceitar porque implica um sentimento de comiseração, de súplica, como se eles fossem obrigados a fazê-lo, isso não quero, não preciso, dispenso cordialmente. Eu me aceito e isso basta, de vocês apenas esses dois itens que mencionei antes deste aparte) é tão infinita quanto o universo e não temos muita certeza sobre este último.
É triste termos de celebrar orgulho chancelado por corporações oportunistas que aproveitam momentos para vender mais e parecerem simpatizantes e apoiadoras quando, passado o circo, voltam a escusar-se de fazê-lo pelos motivos mais estúpidos e mantém seus funcionários gays no melhor estilo 'façamos de conta que não sei' afinal, bicha boa é que compra seus produtos mas não aparece. Fácil fazer campanhas uma ou duas vezes ao ano e esquecer de nós nos outros dias do ano.
É triste termos de celebrar orgulho. Mas é necessário.
É necessário porque você não me respeita, não me trata com educação, não me entende, não quer que eu tenha os mesmos direitos humanos (veja que aboli o gênero ou orientação da questão já que não o 'X' da mesma) que você, como se apenas você fosse eleito para gozar de tais direitos, fossem eles seus, de posse e assim pudesse outorgá-los a quem lhe parecesse mais merecedor dos mesmos. Aliás, nem o gozo temos pois nosso gozo é escondido, tem de ser abafado, dissimulado, é marginal enquanto o seu explode em nossas caras a cada comercial de cerveja, de margarina, novelas, filmes, livros e todo mais. Seu gozo é imperativo, faz do meu algo sujo e saciável apenas como luxúria, jamais como prazer, você goza, eu [gozo].
É necessário para que você aprenda a conviver comigo fora do gueto, fora do estereótipo, fora do chavão, fora do comum. Para que você possa ver-me como seu igual, seu par, desejoso de compartilhar das felicidades e desgraças do gênero humano, não quero casar para ofender sua sociedade mas para ao menos poder abertamente viver os prazeres e dissabores de uma vida comum, cotidiana, essa mesma que você leva ai tranquila e paulatinamente.
É necessário para que você desmistifique essa noção arcaica de que sou antinatural, condenado ao inferno, vicioso, vil, sujo, indecente; todos nós somos tudo isso sem exceção, uns mais outros menos, somos humanos e temos muito mais pecados e vícios que virtudes, quem sabe o equilíbrio entre ambos não se encontre entre meu orgulho e a sua soberba. E se você pensa em comemorar seu orgulho, fique em paz, não precisa fazê-lo pois dia de orgulho hetero é todo dia erguido em cima da vergonha gay, não é pedir muito ao menos um dia por ano invertermos a mão dessa rua.
Quem sabe anos vindouros não a tornem uma grande avenida onde seguiremos na mesa direção...
January 13, 2021
fobia homo 3
Seja lá quem for que tenha nos colocado aqui também nos dotou de algo chamado livre arbítrio o que muitos confundem com liberdade para fazer ou dizer o que bem entendem.
Não digo com isto que atos e palavras devam ser vigiados, moderados ou cerceados de alguma forma, a história é rica e pródiga em casos onde esse tipo de decisão acabou mal, muito mal. Porem, é de se esperar que após anos seguidos de aprendizado houvéssemos assimilado algo, nem que fosse o mais básico dos princípios de respeito e dignidade mas, a humanidade é craque na arte da involução e cospe com louvor nos pratos que ela mesma sujou.
Que dizer então desses que ainda insistem em usar termos como 'ditadura gay', 'gayzismo', gayzista', 'opção sexual' e outras pérolas similares que não repetirei preservando o decoro homossexual que mereço e me é de direito. Sim pois gays tem decoro e muito! Temos de ter afinal lidar com vocês, horda de dominadores, perpetuadores da espécie, bastiões do sêmen segrado, guardiões da vagina materna, não é tarefa para os fracos de moral.
Pior quando seus argumentos baseiam-se em 'notícias' as quais você nem mesmo se deram ao trabalho de averiguar e confirmar as fontes exibindo buracos maiores do que as crateras lunares mas, eu lhe entendo afinal não precisa nada disso para esculachar nós 'gayzistas', 'fascistas gays', 'maculadores da família' e, se somos 'vitimistas' (palavras suas, não minhas), o somos apenas pelas mãos da sociedade hetero normativa, essa mesma que você diz estar em extinção mas que domina e oprime todos que não se enquadram nela há milênios.
Somos todos 'vitimistas' de seu escracho, de sua falta de tato, de sua falta de respeito, de sua ignorância e preconceito, de suas leis e costumes que nos alijaram do convívio social e era por lá que deveríamos ficar, não é mesmo? Nas bordas carcomidas do seu mundo esperando os restos que vocês nos atirassem. E agora que a rua não é mais de mão única, é avenida e jamais voltará a ser viela, você grita e bate os pés dizendo que ser hetero é crime e algo em extinção? Olha, acho que precisamos ter uma conversa muito, mas muito séria sobre a evolução humana (se é que você não é criacionista) e os mecanismos perniciosos de controle que a maioria (vocês) exerceram desde sempre sobre a minoria (nós)
Mas tudo isso eu ainda sou capaz de entender e de certo modo, relevar afinal é um direito seu não gostar dos gays e achar que estamos aí para tacar fogo no puteiro, fazer sexo no meio da rua, cuspir na cara da família e lhe ser útil apenas como estereótipo e riso frouxo. Lamento que sua mentalidade seja assim tacanha mas, ainda assim, é um direito seu entretanto, se me permite um adendo, não precisamos atear fogo em puteiro nenhum porque o bordel há muito está em chamas e as putas não são paridas por gays, fazer sexo no meio da rua vocês já fazem e não precisam de nós, cuspir na cara da família também não vejo como podemos ajudar posto que isso também vocês fazem bem demais e, no quesito estereótipos e motivo de riso, bem, vocês precisam de alguém para dar um alívio em suas vidas sem graça, gosto ou cor não é mesmo?
Sim, tudo isso eu posso relevar, sem problemas mas quando você, real ou ficcionalmente, se coloca numa posição de objeto sendo que a violência gratuita contra a mulher (seja ela física ou psicológica) só faz aumentar, penso seriamente que você necessita de ajuda psiquiátrica para dizer o mínimo. Na verdade, acho que você precisa de auxilio histórico e social para entender bem quem é oprimido e quem é opressor porque não devem estar muito claros esses papeis em sua mente, algum tipo de má formação ou fiação mal feita que deva estar gerando esse tipo de pensamentos esdrúxulos.
Não se trata apenas de um direito seu de expressão mas de algo pior pois há uma interpretação totalmente errônea do que é feminismo como se fosse uma ameaça ou câncer a ser combatido e, por tabela, qualquer movimento direcionado a empoderar e trazer à luz qualquer tipo de segmento social que passou tempo demais sob o jugo da maioria é também condenável e deve ser combatido.
Minha sugestão, se você realmente pensa assim, mude para um país sob o poder do ISIS e, depois de algum tempo, venha me falar se ficou clara a diferença entre oprimido e opressor se bem que, pelo visto, capaz de você curtir e até mesmo achar a burka sua cara.
January 12, 2021
fobia homo 2
Vivemos o ódio pleno, puro, simples e irrestrito. Somos incapazes de entender o outro, parece que ele ao abrir a boca fala em línguas e nos apavora fazendo com que nossa reação (humana e ancestral ante aquilo que não entendemos) seja primal e animal.
Destilamos essa ira toda sem distinção ainda mais nos tempos atuais quando todos querem mudar mas não sabem exatamente como ou porque fato esse que me causa pânico pois esse vácuo, disse antes, adora ser preenchido por coisas pouco sensatas mas que sabem muito bem atender esse desejo oco que estamos todos sentindo.
Incluo a mim nessa destilaria de fel nas vezes em que, no ímpeto de justificar meus pontos de vista, sou mais 'agressivo' e contundente mas, vejam bem as aspas usadas, minha agressividade não é gratuita, cega ou sem direção e menos ainda renhida ante aqueles que pensam contra mim ainda que, repito, quem lê possa achar que minhas palavras possuam muitas arestas feitas com o único propósito de ferir. Ledo engano, trata-se apenas de argumentação forte e certa surpresa em crer que após séculos de evolução e história ainda me depare com pessoas que pensam em termos tão absolutos e obscuros mas, não vá por aí pois diferente do que muitos fazem não bloqueio ou excluo já que entendo ser direito seu expressar-se ainda que dessa forma tão infeliz, desfazer a amizade (uso o termo aqui da forma mais substantiva possível, reservo a adjetivação para os que me são realmente caros) é apenas aquiescer à sua vontade e dar-lhe o manto da razão e tal jamais farei, no máximo calo e lhe delego apenas meu desprezo.
Agora, voltemos ao fato o qual ainda não atingi e pretende fazê-lo agora. Novamente, virou hábito parece, um homossexual é vítima de simples ódio, esse mesmo que disse no começo do texto. Qual a justificativa? Medo? Uma cantada mal recebida? Não. Se pela segunda então as mulheres já deveriam ter extinguido quase todos os homens e, pelo primeiro, posso entender mas não aceitar e entendo pelo fato de temer o que não aceita (como disse mais acima) ou por um desejo sublimado e não realizado sendo necessário eliminar o objeto do desejo (que poderia nem mesmo saber que o era) para apaziguar a alma atormentada.
Mas não. Não creio que tenha sido por qualquer um deles mas simplesmente pelo ódio puro, desejo de não aceitar o outro em sua liberdade que agride quem não a entende e por uma certeza absoluta de que, feito, as consequências seriam ridículas quiçá inexistentes e assim se provou já que o desgraçado que o fez saiu pela porta da frente da delegacia depois de pagar uma fiança infantil. Então eu pergunto a você que reclama da ditadura gay e de que se está endeusando o 'modo de vida gay' ainda mais quando 'pessoas' são condenados a pagar por suas injúrias e discurso de ódio e aqueles poucos que nos defendem como Jean Wyllys, quando se posicionam fortemente contra a ditadura religiosa que se impõe calmamente sobre todos nós, heteros e gays, a seu ver podem sair ilesos, qual parte desse todo você não vê?
Quantos gays você já testemunhou, viu, ouviu ou soube terem atacado violentamente algum hetero ou religioso? Quantos gays você conhece (se é que conhece algum, de novela não vale! Tem de ser da vida real!) pregam o ódio aos outros seja por serem heteros ou religiosos? Quantos gays você já ouviu falar terem pago senão com sangue o preço da intolerância? Quando atacamos esses que nos atacam, onde está a ofensa? Usamos por acaso palavras indecorosas ou pejorativas? Comparamos alguém com o aparelho excretor? Usamos de uma falsa moral para deturpar conceitos e direitos e atingir seus objetivos? Ou de tom histriônico e apelativo para justificar uma possível falta de embasamento?
Não, meu caro, isso quem fez são os moralistas fervorosos do altar de plantão, os que acham mesmo somos todos nós gays uma pilha de aparelhos excretores mal usados e que não tem como argumentar contra o fato maior de que a luta não é para tornar todos viados mas apenas para termos, como cidadãos que pagam os mesmos impostos que vocês, os direitos que de berço lhes são agraciados e que insistem em pensar como apenas vossos e não de todos.
São estes tempos que vivemos onde um gay morto não tem problema afinal somos descartáveis e de uso apenas como estereótipo e alívio cômico para os humorísticos de gosto duvidoso. E não pense que essa chibata do assassínio estala apenas nas costas das bichas, ela estala nas costas de toda minoria que vocês insistem em subjugar aproveitando o momento atual de extremos para propagar essa eugenia que pretendem implantar. Esse gay que foi esfaqueado não viu, ou tenha visto não sei, mas no cabo da faca a mão não era apenas de seu vizinho ignorante e obtuso, pelo qual só posso mesmo sentir a maior das comiserações, eram várias mãos juntas enfiando fundo a faca do ódio, do preconceito, do desrespeito ao outro pelo simples fato dele ser/agir/pensar diferente.
Há sangue nas mãos, meu amigo. Nas minhas por aceitar que ainda se passe isso mas acima de tudo, nas suas por avalizar esse tipo de ação e por não enxergar que todo esse ódio, neste caso em específico, é uma rua de mão única onde quem possui o carro é apenas você!
O resto de nós aqui está há anos a pé e, infelizmente, vindo na direção contrária.
January 11, 2021
fobia homo 1
A intolerância travestida de ofensa, moral e bons costumes, vai mostrando suas garras proporcionalmente ao abalo do status quo onde viado bom é o que fica em seu gueto, quietinho e aparece apenas como alívio cômico estereotipado e pejorativo ou como prestador de serviços que essa parcela risível da sociedade entende como femininos, agregando um preconceito a outro tão ou mais pernicioso.
Quando a viadagem rompe os muros do gueto e resolve dar a cara a tapa, como lidar? Afinal, tínhamos lá nosso cantinho, não? Porque ameaçar a sociedade que tacitamente nos cedeu esse espaço onde podemos ser o que quisermos? Precisa casar? Ter filho? Aparecer na TV? Querer ser visto? Onde já sei viu! Ponha-se no seu lugar, bicha! Ninguém é obrigado a ver suas indecências em rede nacional, ruas e avenidas, que absurdo! Saudades do tempo em que esses viados sabiam seu lugar!
Esse lugar nunca existiu, foi imposto e abraçado por nós gays na absoluta falta e impossibilidade de podermos coabitar o mesmo espaço que a maioria hetero. Ainda que nocivo sob alguns aspectos, esse gueto construiu nossa identidade e ajudou um sem fim de viados (eu incluso) a sentir-se aceito, parte de algo e não isolado do e no mundo. Por anos vivemos assim dos restos e rebarbas atirados a nós feito esmola mas, o tempo é inexorável e com ele as mudanças que nenhuma força obscura pode deter ainda que possam (apenas) atrasar e obstruir sem fazer com que se diminua o ritmo da marcha posta em movimento por pessoas, situações e desejos muito além de sua ilusão de controle.
É do humano a aversão total a qualquer mudança, somos assim independente de credo, cor, orientação sexual, apetite, forma ou desejo. Somo criaturas do conforto, do padrão, do estável, do conhecido. Tudo que foge disto nos apavora, gela a espinha, traz calafrios e pânico e, como todo e qualquer animal acuado, partimos para o ataque esquecendo da claridade que nos foi agraciada por anos de evolução pelo simples fato de termos medo.
Estamos numa fase de transição, saímos do armário e não há mais volta. Ficar onde estamos, aceitando o pedaço que temos no latifúndio é aceitar mais uma esmola, um cala a boca e assim, só nos resta uma alternativa, ir em frente, adiante. Certo que muitos de nós pagarão preços diferentes por essa decisão, uns apenas algumas frases ou indiretas aqui e ali, outros com algum status ou posição, alguns com a pele e um naco de carne e tantos outros, menos afortunados, com a vida. Somos as bruxas na cidade onde todos gritam não lobo mas viado e as estacas estão atiçadas para arder nossa carne gay, exalando aos ares um aroma de purificação que, na verdade, irá empestear todos as narinas com o odor não de carne mas de consciências incineradas, a culpa vai aderir aos poros para nunca mais sair.
Por isso mesmo, ações de grandes empresas, mídia, entretenimento e outros tantos pela representatividade precisam existir cada vez mais, para fazer entender a esses imbecis parcos de discernimento que a ofensa maior reside no fato de agirem como fascistas sanguinários, reacionários estúpidos desejosos de um mundo moribundo apegando-se com unhas e dentes aos pedaços podres que ainda lhes restam. E inundam com seus latidos de ódio como se estivéssemos obrigando, forçando, agredindo, demandando algo que não fosse simples, singelo e de direito universal e igualitário, respeito. Quanto mais ações bem feitas e que valorizam o sentimento, o amor, o respeito, a união melhor ainda mais nos tempos em que vivemos.
Mas não, essa corja prefere agir como se fôssemos nós, gays, a ameaça maior aos seus filhos e família (instituição falida há séculos) e não a violência cotidiana que nos acossa. Não os desmandos dos governantes tentando fechar suas contas com nosso trabalho e dinheiro. Não é a sua crítica vazia a corrupção enquanto fura fila do mercado, no trânsito acelera para não deixar o pedestre passar ou o outro carro entrar, enquanto deixa o carrinho do mercado largado em qualquer lugar ou o arremessa em direção ao auto mais próximo (que não o seu), faz de conta que está no mais profundo sono enquanto o idoso fica em pé e se tem de lhe ceder o lugar, reclama. Não devolve o troco que veio a mais porque a obrigação era do outro ter feito a conta certa, paga pelo atestado fajuto para seu filho cabular aula ou para matar um dia no trabalho, acredita que passando o outro para trás, vai chegar na frente quando, nessa fábula, somos todos a tartaruga e o coelho já morreu faz tempo.
Não. Nada disse importa porque os gays estão tomando o poder, impondo sua ditadura, seu estilo de vida, seu modo, seu jeito goela abaixo da sociedade, esse é o problema. Geralmente quando não sabemos identificar o que está errado conosco e ao redor, buscamos um bode expiatório para aliviar nossa consciência desprovida de espelhos, agora somos nós gays o bode da vez. Quando e se lograrem acabar conosco, oro pela próxima camada social que escolherem até que, finalmente, sobrará apenas a vocês para balir e preencher o papel.
Quer boicotar algo? Boicote seu preconceito, sua ignorância, sua intolerância, seu medo. Boicote esse desejo que você não entende e não é seu, foi posto em sua mente e peito por pessoas de intenções nefastas e que desejam usar sua pele para cobrir o lobo que são.
Boicote tudo isso e adote uma postura mais humana e conciliadora. Ou acabará tendo de boicotar a vida quando menos esperar.
January 8, 2021
memórias de um verde desbotado
Lembro daquela festa, arrumamos tudo, idas e vindas levando enfeites, pessoas, bebidas.
Lembro do posto de gasolina onde enchemos dezenas de bexigas pretas e brancas, o carro cheio delas, algumas fugiam de nós como fugíamos de nós mesmos e corríamos para pegá-las mas a nós, jamais alcançamos.
O carro lotado de bolas parecia algo saído de um circo, nós dois nos bancos da frente os palhaços, clichês de nós mesmos, rindo por fora e apáticos por dentro. Já não éramos fazia um tempo mas a cola que nos unia parecia indissolúvel ante promessas de separação e de mera amizade, esse tipo de lenda urbana que permeia os relacionamentos.
Cordiais, mantínhamos um bom relacionamento sem dar o espaço e o tempo necessários um ao outro para que os laços efetivamente se rompessem e pudéssemos quem sabe num futuro nos olharmos com ternura. Éramos jovens demais, ignorantes desses procedimentos pós-amorosos e de alguma forma cármica, incapazes de abrir mão um do outro ou ser, efetivamente, um do outro. No meio disso, achávamos tempo para sermos o que podíamos ser para nós mesmos e o sexo que brotava disso deixava um gosto amargo na alma depois do gozo.
Festa grande, estávamos animados e nem era nossa, de um amigo mas a tratamos como se fosse nossa. Você estava sozinho ou sem ninguém que representasse algum compromisso, eu estava iniciando algo com alguém que se não era você, o lembrava. Meio que o oposto do que eu (achava então) que queria mas ele tinha um real interesse em mim e eu começava a sentir o mesmo por ele, não tinha parâmetros para comparar, você fora o primeiro e mais marcante, não sabia como escolher algo diferente de você no mercado, o diferente me assustava.
Tudo quase pronto, as pessoas começavam a chegar e eu precisava ir buscar meu moço, ia me acompanhar na festa, estávamos bem e eu achava que ia me libertar daquela simbiose meio nefasta que vivíamos. Fui buscá-lo, de quebra, trouxe o DJ que daria som na festa, conhecido nosso, me perguntou sobre você, no carro, eu já com meu moço e uma amiga deste, disse que estava bem mas que não estávamos mais juntos, clima tenso, o moço sentiu o peso no ar, desconversamos. Eu queria gostar dele apesar das diferenças que, se não eram intransponíveis, eram para mim gritantes mas havia mesmo um afeto brotando e o nutri crente de que faria tremer as barragens, imaginarias ou não, que punha entre nós, sentia um gosto de futuro, promissor, dali podia sair algo bom e isso me animava.
Chegamos, a festa já ia alta, muita gente. Acomodamos o DJ e expliquei ao meu moço que estava ajudando nosso amigo e que por isso, não poderia assim aproveitar a festa com ele como desejava. Vocês já se conheciam pois, no dia em que ele me abordou, estávamos juntos num clube, juntos, mas separados, achávamos que podíamos viver assim próximos mas sem nos amar plenamente, queríamos a companhia um do outro mas não o amor, não fechávamos essa equação, quando tentávamos resolvê-la, nos noves fora, acabava a conta não fechando e o final, apesar de sermos par, era sempre ímpar.
Mas achei que era diferente, abria-se o caminho para a libertação e acreditava mesmo que acharíamos nossos caminhos separados mas ainda juntos. Quisera eu saber naquele tempo que maquiamos essas mentiras tão bem que nos parecem verdades, hoje, já não aceitaria essa imitação barata e poria tudo em pratos limpos pois teria antevisto a dor e sofrimento embutidos, escamoteados em nossas aparências de maturidade e amizade fraterna.
Meu moço dançava, eu e você trabalhávamos. A certa altura, você me acua num canto, eu acho mesmo que estava a lhe evitar a noite toda, receoso do ar faminto que captara em você, confuso por não saber se não me queria feliz com outro ou apenas não me queria feliz salvo na infelicidade que compartilhávamos amiúde.
‘Você está me evitando a noite toda...’ brotou a acusação de sua boca e olhos cabisbaixos.
Emudeci, neguei mas era incapaz de fixar meus olhos nos seus.
‘O que você quer com esse cara?’ soltou você seco.
Não sabia o que responder, olhei o chão.
‘O que você quer com esse cara? Ele não tem nada a ver com você, como você pode?’ veio você mais incisivo.
‘E você que o que de mim?’ bruto ‘Não sei, o que você espera? O que quer? Não estamos mais juntos e ele gosta de mim’
‘Gosta?’ respondeu você ‘Mesmo? E você gosta dele?’
Fiquei mudo, esperava que o chão me ajudasse a responder.
‘E você? Gosta dele? Sério mesmo?’ insistiu você.
‘Sim’ sussurrei.
‘Olha pra mim e repete isso que você falou’ disse você.
Vai chão, me ajuda!
‘Olha pra mim, porra! E repete isso que você falou, diz que não sente mais nada por mim’ e com as ultimas silabas saiu um choro honesto, sentido.
Antes que eu compartilhasse de suas lagrimas, sai esbaforido para encontrar meu moço. A festa seguiu, nos evitamos a noite toda mas de relance vi os copos e você em grande intimidade.
Chegava o fim da festa, pessoas indo embora e resolvo dar carona a você e outros amigos que moravam ali perto. Vamos, digo ao moço que volto logo, coisa de minutos, que me espere, ao sair, uma amiga nos vê e profetiza: ‘Não demora!’ com olhar de que sabia como se fecharia a noite. Saímos e um a um deixo todos em casa, você é a ultima entrega da noite.
Desço do carro, você está meio alto, digo até logo mas você me faz entrar, não queria, ou queria sem querer e dentro de sua garagem você me ataca, me aborda e eu ainda em abstinência de você não resisto e tenho uma recaída homérica, nos amamos com fome, desejo voraz, os beijos parecem tirar nacos de carne de nossos corpos, juramos amor, maldizemos a nós presos nesse moto perpetuo de desejo e necessidade absurda, gozamos avidamente e me sinto culpado.
Você entra em casa e eu no carro, volto para a festa muito tempo depois, encontro meu moço dormindo e minha amiga vidente que lê em minha face o que se passou, não tenho como negar, ela nos conhece bem demais para lhe escondermos o que somos.


