David Soares's Blog, page 58
June 8, 2012
A Salta-Pocinhas de "Lisboa Triunfante"

«Dentro da caixa aberta sobre a mesa do escritório, a pedra começou a intrigar Paula cada vez mais; deixando os envelopes com os postais de lado ela ligou-se à Internet e procurou “pedras com buraquinhos” com a ajuda do Google. Não encontrou nada que se relacionasse com a pedra que comprara. Coçou a cabeça e fez uma nova busca por “pedras com covinhas”. Passou os olhos pelos resultados (1 – 10 de cerca de 7.810 para pedras com covinhas – 0,17 segundos) e carregou num novo separador a primeira página que lhe era aconselhada: um site sobre monumentos megalíticos. Surpreendida, procurou no texto as palavras que usara para proceder à pesquisa e que a aplicação Google Toolbar pintara de amarelo. Leu: «Conhecem-se igualmente cerca de uma centena de pedras com covinhas, monumentos misteriosos certamente relacionados com o megalitismo; com efeito, as covinhas surgem, frequentemente, gravadas nos próprios monumentos megalíticos.» Confusa, regressou à página dos resultados da pesquisa e procurou outro site que a pudesse esclarecer. Escolheu um link pertencente ao Instituto Português de Arqueologia e carregou um documento em formato pdf sobre monumentos pré-históricos. Observou as fotografias a preto e branco de menires e pedras com covinhas: numa das páginas encontrou uma imagem de uma peça como aquela que tinha a seu lado. Riu. Seria possível que tivesse comprado um artefacto pré-histórico por cento e cinquenta euros?Comparou as duas pedras: a sua era mais estreita e mais pequena; as covinhas, também chamadas de pocinhas, espalhavam-se pela superfície negra num padrão mais intrincado e com variadas ligações entre elas feitas por sulcos finos e grossos. Paula passou o dedo pelas pocinhas e arregalou os olhos. Nunca tinha tocado em nada tão antigo, mas sentiu algo semelhante àquilo que experimentara há anos quando pegara ao colo o sobrinho acabado de nascer.Que iria fazer?Conservaria a pedra ou entregá-la-ia ao instituto?Retirou-a da caixa com cuidado e estudou-a. Teria mesmo pertencido a Aquilino? Como é que ele ficara na posse de uma coisa daquelas?Pousou a pedra no colo e procurou o significado das pocinhas. Descobriu que tinham muitos nomes: pocinhas, covinhas, buraquinhos, pucarinhos, cantinhos, malguinhas. Suspeitava-se que tivessem algum sentido religioso, mas, até à data, permaneciam um mistério. Guardou a pedra na caixa com reverência e ficou a olhar para ela, meditando no destino a dar ao artefacto. Não chegou a conclusão nenhuma e voltou a sentar-se para consultar as contas nos fóruns.
(...)
Quando olhou para os pés da cama viu que a Raposa ainda lá estava e gemeu. Começou a sentir medo. A Raposa apercebeu-se da perturbação dela e disse:‘Não precisas de ter medo, Paula. Eu digo-te o que quero.’A mulher ergueu a cabeça e abraçou-se; começou a esfregar as mãos nos braços como se estivesse com frio.‘Tu tens uma coisa que é minha’, continuou a Raposa. ‘Eu preciso dela.’‘O que é que eu tenho?’, balbuciou. Sentia a boca seca. Sentia vontade de ir à casa-de-banho.‘A pedra das pocinhas’, disse a Raposa. ‘A minha pedra das pocinhas.’‘Mas…’‘Vai buscá-la.’Paula levantou-se devagar e saiu do quarto. Demorou uns instantes e regressou amedrontada com a caixa nas mãos.‘Muito bem’, disse a Raposa, caminhando em duas patas ao encontro dela. Paula parou com medo e, gritando, deu um passo atrás. ‘Não tenhas medo. Põe a caixa no chão e abre-a.’Ela obedeceu e retrocedeu temerosa para dar espaço à Raposa. A criatura debruçou-se sobre a caixa aberta e retirou a pedra das pocinhas. Deu uma gargalhada vulpina e abanou a cauda.‘Obrigado.’ Piscou o olho a Paula e sorriu até às pontas das orelhas.‘O que é isso?’, perguntou ela.‘Isto?’ Mostrou-lhe a pedra e agarrou-a debaixo do braço. ‘É uma cópia muito, muito antiga de uma coisa que me roubaram há muito, muito tempo.’ Fez uma pausa e concluiu: ‘É um mapa.’‘Um m-mapa?...’ A curiosidade sobrepôs-se ao medo. ‘Um mapa de quê?’‘De tudo aquilo que existe?...’, comentou a Raposa. Olhando embevecida para a pedra respondeu. ‘De todos os mundos que existem.’‘Todos… Todos os mundos?!...’‘Todos, todos não!…’, disse a Raposa com ironia. ‘Alguns dos que aqui estão já não existem. Também faltam uns novos que, entretanto, eclodiram… Mas é um bom mapa.’‘Isto…’ Paula sentou-se no chão e encostou-se à parede. Faltava-lhe o ar e sentia-se tonta. ‘Isto é demais para mim…’‘Estas pocinhas, estás a vê-las?’Aproximou-se indiferente à indisposição da mulher e mostrou-lhe a pedra; ela ficou chocada com o cheiro pungente da Raposa: cheirava como um animal verdadeiro.‘São mundos. Universos… O que eu faço é usar este mapa para saltar de um mundo para outro mundo. Salto pocinhas!’Paula lembrou-se do nome da raposa de O Romance da Raposa.
Salta-Pocinhas.«E se te disser que… que a Salta-Pocinhas me vem visitar… hoje?»O medo começou a abandoná-la.«A raposa das tretas.»‘Onde… Onde é que está este mundo?’, perguntou Paula à Salta-Pocinhas.«O mundo é feito de “tretas”. De sonhos e de mistérios. Cada coisa tem dentro dela um conto de fadas.»‘Este universo?’ A Raposa meteu-lhe a pedra debaixo do nariz. ‘Ora… É esta pocinha aqui.’ Apontou com um dedo para um buraco minúsculo que estava ligado por um sulco fininho a outro muito maior.Paula olhou para a pedra e não pôde deixar de sorrir; um sorriso ainda assustadiço.‘É um universo tão pequenino…’‘Ah! Tão pequeno quanto o segundo que demora a tirar uma fotografia? Muito bem visto!’»
(Excerto do meu romance Lisboa Triunfante . Saída de Emergência, 2008: http://www.saidadeemergencia.com/produto/-o-202345/-o-202346/lisboa-triunfante-edicao-da-raposa)
Published on June 08, 2012 16:27
June 7, 2012
"Batalha": excerto em 'spoken word'
Excerto em spoken word do meu romance Batalha (Saída de Emergência, 2011). Neste trecho, Batalha, a ratazana, chega ao local de construção do Mosteiro de Santa Maria da Vitória e no seu espírito opera-se uma transformação.
(Este vídeo inaugura uma série de excertos em spoken word dos meus romances, que irei publicar regularmente.)
Published on June 07, 2012 09:15
June 6, 2012
Perfil na Revista LER
O meu perfil na peça
"De Que Falamos Quando Falamos Hoje de BD Portuguesa"
, escrita por
Sara Figueiredo Costa
para a
Revista LER
de Maio.

Published on June 06, 2012 16:42
Excerto exclusivo de "Compêndio de Segredos Sombrios e Factos Arrepiantes"

Estão disponíveis na loja online das edições Saída de Emergência as primeiras sessenta páginas do meu novo livro Compêndio de Segredos Sombrios e Factos Arrepiantes: uma viagem erudita e surpreendente ao lado negro da História, da Ciência, do Oculto e do Bestiário.
Descubram, entre outras histórias terríveis, mas reais, qual foi o grifo do Infante D. Pedro, as origens do misterioso pentagrama, que propósitos sinistros serviram as rãs de Lavater, quem decorava a casa com figurinhas de porcelana Allach, os segredos por trás da cerimónia do Sabbath, o significado das gárgulas da catedral de Notre-Dame em Paris, o que é que nos faz tão influenciáveis à autoridade e a verdade histórica sobre as cruzes da Ordem de Cristo nas velas das caravelas portuguesas.Todos os exemplares disponíveis na loja online da editora estão assinados.
História

Ciência

Oculto

Bestiário

Published on June 06, 2012 09:37
June 3, 2012
Crióforo

Existem ligações evidentes entre a lenda grega de Hermes Krioforos (Hermes, o Portador de Carneiros), mais as suas representações clássicas (como esta cópia romana de uma estátua feita pelo escultor grego Calamis, no século IV a. C., pertencente à colecção do museu Barracco di Scultura Antica, em Roma), e a iconografia paleocristã que nos chegou datada do século II, na qual Cristo também surge como crióforo, mas traduzido para o significado paralelo de "Bom Pastor": o salvador do rebanho.
A partir do mesmo período, os cristãos primitivos foram instrumentais na popularização de textos religiosos organizados no feitio de códice: o comum formato de livro (em latim, a palavra homógrafa da qual a nossa descende tem origem no étimo caudex que significa tronco de árvore). O códice não é uma "evolução" do formato em volume, o tradicional rolo (da palavra latina voluminen que significa coisa enrolada), e ambos os formatos coexistiram durante muito tempo, destinando-se a finalidades distintas. E existe, de facto, uma diferença enorme entre ler um texto escrito num volume e ler um texto escrito num códice.
Somente a partir da difusão do conceito de códice (a palavra códex é um latinismo que só entrou na nossa língua na segunda metade do século XVIII) é que pode falar-se em leitura, no sentido contemporâneo. Não estou, pois, de acordo com a ideia de que os primitivos suportes de registo manuscrito, que podem ser traçados até à civilização suméria (ou a eras ainda mais pretéritas) fossem proto-livros: acho que consistiram em outras tecnologias, ao serviço de objectivos variados, como enumerar, contabilizar e anotar, mas não foram veículos para a leitura reflexiva e interpretativa como os códices vieram a tornar-se. É por esta razão que eu acho que a conversa de que o advento dos eReaders consiste num salto tecnológico da mesma ordem que aquele que se deu de prancheta para volume e de volume para códice e de códice manuscrito para livro impresso é uma arenga publicitária: a prancheta, o volume e o códice coexistiram, serviram diferentes propósitos e não podem ser observados como provenientes uns dos outros.
De modos inesperados, o imago crióforo relaciona-se completamente com o códice. Para começar, a criação do códice - do livro - não teria sido a mesma sem carneiros.
O uso da pele de carneiro como suporte para a escrita já era conhecido há muito tempo no mundo mediterrânico, mas foi na cidade grega de Pérgamo (na Turquia) que, no século II a. C., a manufactura de peles de carneiro (pergaminho), como alternativa ao papiro, ganhou uma grandeza e sofisticação inéditas até à data. Em síntese, o método artesanal para produzir pergaminhos era o seguinte: depois de esfolado o carneiro, a sua pele era mergulhada num recipiente cheio de água e cerveja para que ficasse limpa de impurezas e pêlos; em seguida, a pele era posta a secar ao Sol num estirador que a esticava com força. Quando a pele enrijecia, estava pronta para ser raspada (tradicionalmente com uma espécie de faca de lâmina semi-circular, que viria a ser chamada de lunellarium pelos romanos), branqueada e cortada.
Na Europa, a manufactura de papel (palavra que procede de papiro - com efeito, o papiro e o papel têm muitas semelhanças), feito de fibras vegetais, como linho e cânhamo, despontou principalmente na Península Ibérica durante a ocupação árabe (chegaram-nos livros árabes peninsulares, escritos em papel, e datados de finais do século XI), mas isso não afectou a indústria do pergaminho - nem sequer com o advento da imprensa de caracteres móveis, em meados do século XV, posto que imprimia-se em pergaminho. Mesmo assim, o papel depressa se popularizou, tornando-se um material cada vez mais barato - a mais antiga fábrica de papel da Península Ibérica, aproveitando para o efeito a força hidráulica, até já datava do primeiro decénio do século XV e ficava na cidade portuguesa de Leiria.
De maneira geral, os tamanhos padronizados de impressão de livros não mudaram muito: continua-se a imprimir em papel sob medidas influenciadas pelas dimensões proporcionadas pelas antigas peles dos carneiros que, ao serem retiradas dos estiradores, eram cortadas rectangularmente, de maneira a desbaratar-se as superfluidades correspondentes aos membros dos animais e obter-se uma prática superfície regular.
No mínimo, esse pergaminho rectangular podia ser dobrado ao meio até três vezes: à primeira, que oferecia duas folhas e quatro páginas, chamava-se folio (que deriva da palavra latina para folha - tinha esse nome, porque, de facto, era a primeira folha: o formato maior); à segunda, com a qual se obtinham quatro folhas e oito páginas, chamava-se quarto (a quarta parte); e a terceira, que oferecia oito folhas e dezasseis páginas, chamava-se octavo (a oitava parte). Os tipógrafos que assim o desejavam, imprimiam em pergaminho e em papel livros de tamanhos mais pequenos que o octavo (o duodecimo, por exemplo, que equivale às proporções de um actual paperback ou livro de bolso), mas só com a invenção das impressoras contemporâneas é que foi possível imprimir-se livros e outras publicações em tamanhos maiores que o carneiro mais corpulento, porque o papel, embora nada tivesse de animal, era cortado de acordo com essa bitola.
A maioria dos livros actuais é impressa em papel, mas as suas dimensões referenciam ainda aquilo que eu chamo de Ovina Proportione: todos os leitores são, por essa razão, Hermes Krioforos. (Como Hermes, na mitologia grega, é o deus da linguagem, assim como o inventor do alfabeto, acho que é um pensamento muitíssimo adequado.)
A influência dos carneiros sobre o mundo dos livros não se esgota aqui. A própria palavra texto provém do étimo latino textu que significa tecido ou fios entrelaçados e que se usava, sobretudo, para designar a lã.
Na sua obra Instituto Oratoria (As Bases da Oratória), o filósofo e orador romano Quintiliano (século I) diz que é preciso escolher bem as palavras e entrelaçá-las num têxtil elegante e apurado. Muitas expressões relacionadas com a escrita ou com o acto de contar histórias correspondem-se com a lã e seus novelos (como «perder o fio à meada»).
Published on June 03, 2012 20:48
May 30, 2012
Anjos, Velhos e Novos




Crónica publicada originalmente no número doze da Revista BANG! (Saída de Emergência).
Published on May 30, 2012 09:33
May 29, 2012
Nomeações para troféus "Central Comics"

Estou nomeado para três troféus de banda desenhada Central Comics: 1) o meu álbum O Pequeno Deus Cego (Kingpin Books, 2011), escrito por mim e desenhado por Pedro Serpa, está nomeado para Melhor Publicação Independente; 2) o meu álbum É de Noite Que Faço as Perguntas (Saída de Emergência, 2011), escrito por mim e desenhado por Jorge Coelho, João Maio Pinto, André Coelho, Daniel Silvestre da Silva e Richard Câmara, está nomeado para Melhor Álbum Nacional; 3) e com esse livro estou nomeado para Melhor Argumentista Nacional.
O meu amigo Jorge Coelho também está nomeado para Melhor Desenhador Nacional pelo seu trabalho nesse título.

Published on May 29, 2012 14:19
May 28, 2012
Tertúlias e autógrafos para o próximo fim de semana

Atenção, leitores: na próxima sexta-feira, dia 1, às 19H00, no Espaço Autor da livraria Bertrand do Chiado, em Lisboa, serei o convidado de uma sessão do Clube de Leitura Bertrand do Fantástico (tertúlia literária organizada e moderada por Rogerio Ribeiro) cuja conversa, sempre em volta de um livro diferente todos os meses, será sobre O Clube Dumas de Arturo Pérez-Reverte e, claro, sobre o meu trabalho e o meu novo livro Compêndio de Segredos Sombrios e Factos Arrepiantes (Saída de Emergência).
No dia seguinte, dia 2, sábado, a partir das 15H00, estarei na XIVª Feira do Livro de Leiria (no Centro Cultural Mercado Sant'ana: Avenida Combatentes da Grande Guerra - Largo de Sant'Ana, em Leiria) para falar sobre o meu novo livro e assinar exemplares. (Passem a palavra e apareçam.)

Published on May 28, 2012 16:00
O restaurante Abadia do Palácio Foz

É na Praça dos Restauradores, em Lisboa, que se ergue o edifício histórico conhecido como Palácio Foz, embora esta designação, relacionada com o título nobiliárquico do seu segundo proprietário, Tristão Guedes de Queirós Correia Castelo Branco, 2º Conde e 1º Marquês da Foz (na altura administrador da Real Companhia do Caminho-de-Ferro), não seja, provavelmente, a mais conforme à razão, posto que Castelo Branco, que comprou o palácio em 1889 a D. Helena de Vasconcelos e Sousa Ximenes, 6ª Marquesa de Castelo Melhor, pouquíssimo usufruiu dessa residência, vendo-se obrigado pela sua débacle financeira a leiloá-la em Maio de 1901. Por outro ponto de vista, existe a ideia de que talvez seja mais ajustado chamar-lhe Palácio Castelo Melhor: dignidade honorífica da família que mandou construi-lo em finais do século XVIII (entre as datas propostas para o início das obras a mais imparcial é a de 1777, não obstante os trabalhos, interrompidos durante o período das invasões francesas, terem terminado somente em 1858).
Em meados do século XVIII, a área sobre a qual se espraia actualmente a Praça dos Restauradores fundava-se num terreno mais ou menos agricultado, sulcado por ribeiras e apelidado de "hortas" do Valverde (vetusta denominação para o vale do Rossio e seus arrabaldes que já existia, no mínimo, desde o século XIV) ou de "hortas da cera", consistindo numa mancha rural que alastrava para Norte, mais ou menos até ao local onde se encontra a Praça Marquês de Pombal.

Abreviando, uma vez desvirtuado da sua função residencial, o Palácio Foz (ou Castelo Melhor) foi comprado por José Rodrigues de Sucena, 1º Conde de Sucena, em 1910, que de imediato alugou diversos dos seus aposentos para ofícios e serviços tão variados como os de modista, fotógrafo ou ourives; é, pois, desse decénio que datam lojas como a sumptuosa Pastelaria Foz (inaugurada em Abril de 1917), que ocupava múltiplas alas do rés-do-chão e das caves, o mítico Club Maxim's e o Central Cinema - todos albergados em múltiplas dependências do palácio. O filho de Sucena, também chamado José Rodrigues, 2º Conde de Sucena, falhou obrigações contraídas com a Caixa Geral de Depósitos e, mais uma vez, o Palácio Foz foi leiloado, sendo vendido posteriormente à Fazenda Pública, em 1940, e integrado no património nacional. Aí se instalou, sete anos depois, o Secretariado Nacional de Informação (antigo Secretariado de Propaganda Nacional). Actualmente, o Palácio Foz é a sede do Gabinete Para os Meios da Comunicação Social, conservando ainda o seu esplendor oitocentista; em grande parte o legado das renovações imaginadas por Castelo Branco que, para o efeito, reuniu artistas ilustres como o arquitecto José António Gaspar, o pintor Columbano Bordalo Pinheiro, o escultor José Simões de Almeida e o escultor e entalhador Leandro Braga, autor da grandiosa galeria, ao estilo francês, que é rematada por um fabuloso trompe l'oeil da autoria do arquitecto, pintor e cenógrafo italiano Luigi Manini.

A planta do Abadia encontra-se repartida em divisões idiossincráticas: o Coro, com um varandim talhado com grande pormenor em madeira e no qual são profusas as alcachofras enlaçadas por cordas de marinheiro, que apresentam as respectivas roldanas, e onde ainda é possível observar uma estatueta de um dragão com seios que evoca, claramente, a águia com seios que se encontra à varanda do chamado "laboratório" do terceiro andar do Palácio da Quinta da Regaleira, em Sintra; o Claustrum, ou "taberna vínica", decorado com cachos de uvas com folhas de oliveira e chão xadrezado; o Refectorium, levantado ao estilo cisterciense peninsular, no qual se pode ver nos capitéis das colunas uns baixos-relevos alusivos às fábulas do escritor francês seiscentista Jean de La Fontaine (como a da raposa que contempla deliciosos cachos de uvas que é impotente para alcançar e que acaba por desdenhar, convencendo-se a si própria que estão verdes); a Capela, pequena divisão complementar ao refeitório. Pontualmente, nas paredes do Abadia, encontram-se celas ou nichos.

Outros elementos artísticos - e simbólicos - determinam a decoração: rodas de lemes com efígies dos navegadores portugueses Pedro Álvares Cabral e Vasco da Gama; uma fonte de "coral" suspeita de ocultar uma passagem para os subterrâneos de Lisboa; diversas andorinhas e pombas; cabeças de elefantes numa mísula claustrina, suportadas por uma personagem que enverga um barrete frígio; e vinte e quatro bustos de maçons e maçonas nos cachorros das paredes Norte e Sul do Refectorium - alguns com as jóias distintivas dos seus graus.

Uma sociedade para-maçónica que conviveu amiúde no Restaurante Abadia (além de continuar a frequentar os locais em que já se reunia, como as caves do Teatro Condes, em frente ao Palácio Foz - o jornalista e escritor Raul Brandão refere, a dada altura, nas suas Memórias que as caves do Teatro Condes foram o berço da queda do regime monárquico de D. Manuel II e a implementação da República) foi o excêntrico Clube dos Makavenkos: agremiação "gastronómico-filantrópica" à qual pertenceram, entre outros, o almirante Francisco Joaquim Ferreira do Amaral, o médico Azevedo Neves, o pintor, ceramista e caricaturista Rafael Bordalo Pinheiro, o poeta e cronista Raimundo Bulhão Pato, o supracitado Rosendo Carvalheira e o empresário Francisco de Almeida Grandela, um dos fundadores do clube (em 1884).
A empresa (ou divisa) do Clube dos Makavenkos foi um punho fechado, acompanhado pelo mote da Ordem da Jarreteira - «honni soit qui mal y pense» -, e o seu patrono foi a personagem veterotestamentária Noé: célebre prior da vinicultura, tendo plantado a primeira videira pós-diluviana. De facto, foram íntimas as ligações de Grandela e de outros Makavenkos, como o vinicultor José Camilo Alves (da famosa marca de vinhos Caves Velhas ), a lojas maçónicas das regiões vinículas de Fanhões e Bucelas - alguns elementos das quais proclamaram a república no dia 4 de Outubro de 1910, nos Paços do Concelho de Loures (o proclamador foi Augusto Moreira Feio): um dia antes dela ser proclamada por Eusébio Leão na varanda dos Paços do Concelho de Lisboa. Independentemente de outros significados simbólicos que possuam as videiras que adornam a Abadia, elas também consistem certamente numa evocação dessas ligações enológicas; talvez residindo no facto de Noé, patrono do clube, que no livro bíblico Génesis recebeu de uma pomba um ramo e folha de oliveira como prova de terra seca, a chave para interpretar a razão pela qual os cachos de uvas se apresentam com folhas de oliveira: são uma alegoria de, pelo menos, duas luzes, a das candeias alumiadas por azeite, que afastam a treva, e a proporcionada pelo domínio da natureza hostil através da vinicultura.

Foi Josué dos Santos, amigo de Grandela e cozinheiro (aparentemente, também fora saltimbanco e ilusionista), que "desvendou" na contracapa do livro Memórias e Receitas Culinárias dos Makavenkos (publicado em 1919 pela Marginália Editora e escrito pelo próprio Grandela) a misteriosa origem do nome do clube: «"Makavenkos" eram um povo que existia aqui, no nosso país, e províncias vascongadas, vindo do Japão, das Ilhas Curilas, muito antes da civilização grega, antes do desaparecimento da Atlântida, e que tinham uma seita que professava uma espécie de culto pela mulher esbelta, mundana, com quem conviviam e protegiam aproveitando a mesma para fins de utilidade geral». Este resumo é, como é óbvio, satírico, mas seja qual for a sua origem, sabe-se que o nome Makavenkos foi adoptado como verbo pelos elementos do clube: era às sextas-feiras que esta sociedade "secreta" se reunia para as suas «makavenkadas» ou para «makavenkar».
A boémia dessas epícuras reuniões adquiriu contornos de anedotário, com descrições de danças desempenhadas por belas mulheres despidas, ao som de música tocada por instrumentistas de olhos vendados, e um gradiente generalista de libertinagem. Conhecido é o suposto lado revolucionário do clube (ou de alguns dos seus membros), já comunicado por Brandão, mas menos falado é o seu papel filantropo - subsidiado generosamente por Grandela, sob o qual foram realizadas todas as diligências para construir-se um sanatório para raparigas indigentes e tuberculosas em Cabeço de Montachique, com traça de Carvalheira. As obras foram interrompidas abruptamente em 1919, por culpa da crise económica provocada pela Grande Guerra à qual Grandela não foi imune. O imóvel foi então doado à Assistência Nacional aos Tuberculosos que não o desenvolveu.


(Fotos de Gisela Monteiro.)
Published on May 28, 2012 07:44
May 27, 2012
"Compêndio de Segredos Sombrios e Factos Arrepiantes" nas livrarias
O meu novo livro,
Compêndio de Segredos Sombrios e Factos Arrepiantes
(Saída de Emergência, 2012), já se encontra nas livrarias.
História
Ciência
Oculto
Bestiário
«Em Compêndio de Segredos Sombrios e Factos Arrepiantes, David Soares convida a uma viagem surpreendente pelo lado negro da História, da Ciência, do Oculto e do Bestiário: quatro pilares de saberes secretos, como a Alquimia e a Cabala, mas também de criaturas como o grifo do Infante D. Pedro e as gárgulas das catedrais medievais, assim como experiências com cabeças decepadas, rituais de feitiçaria, pragas de dança e vampiros lisboetas. A profusão de temas, reflexões e desmistificações abrangidos será uma fonte inestimável de consulta para todos os leitores empenhados em saberem sempre mais sobre aquilo que os rodeia. Numa união erudita entre a enciclopédia e o livro de ensaio, Compêndio de Segredos Sombrios e Factos Arrepiantes é um livro repleto de histórias reais e factos espantosos que vos desvendarão um mundo negro, mas admirável.»
História

Ciência

Oculto

Bestiário


Published on May 27, 2012 10:32