Deana Barroqueiro's Blog: Author's Central Page, page 76

October 18, 2010

Memórias de Estalo - Capítulo IV

DA PORTA DE S. ROQUE AO ROSSIO

Vista assim do alto, sem maus cheiros que nos apoquentem, é uma cidade de sonho, iluminada a azul, branco e oiro, com suas desvairadas colinas a imitarem a curva ondeada das marés. Do outro lado do vale, a Mouraria e a Judiaria derramam pela encosta do Castelo a espuma do seu casario branco e cerrado, a fervilhar de vida e de gentes de estranhos trajos e costumes. Lisboa mede três mil e cem passos de comprido, mil e quinhentos de largo e de cerco em roda sete mil passos, sendo toda edificada em lugares altos e baixos, de tal feição que nunca a podemos ver toda duma parte. Do lado do mar tem vinte e duas portas e da parte de terra dezasseis, contando por todo o muro alrededor setenta e sete torres…

"Ai, não queres trabalhar, meu tinhoso? Vilão forte, pé dormente, já lá dizia meu padre! Hei-de deixar-te uns dias em jejum, a ver se ficas mais ligeiro". Desta vez a ponta do chicote morde-me as costelas, a mostrar que meu amo está prestes a perder as estribeiras e a prudência aconselha-me a obedecer: Quem quer fogo busque a lenha, porém eu já não tenho idade para guerras nem revoltas. Lanço-me num passo trigoso encosta abaixo, para o Rossio, embora com cautela, não vão as çapatas escorregar no esterco do caminho. Apesar das mil negras que andam pela cidade com suas canastras a alimpar as ruas, o lixo parece não ter fim, por serem tantas as gentes e as alimárias de transporte, bem como rebanhos de cabras e ovelhas, perros, gatos, porcos, patos e galinhas, todos fazendo seus feitos onde lhes dá a gana. Mea culpa… té eu já me tenho aliviado, embora a contra gosto!

Dos lados do monte de Santa Ana, vem o fedor do açougue duma praça onde se mata e esfola o gado que pasta na encosta e se corta a carniça para vender na cidade. Por aqui já é basto o mosquedo a atazanar homens e bestas, té parece a Rua de Mata Porcos! Pardeus, como as moscas me fazem raivar! Dou-me pressa d'avançar que o Rossio é lá ao fundo e já se ouvem os pregões de "Água fresca! Água fresquinha!" das negras aguadeiras que são mais de mil, vendendo água ao pote e quartas, por toda a cidade. Muitos outros pregões se soltam, a despertar Lisboa do seu sono, cantigas de mulheres cativas e forras a oferecer pelas ruas e às portas das casas, em panelas grandes e muito limpas, aletria, arroz doce e marmelada, frutas secas, cozidas ou frescas. Assim que os meninos as ouvem, se alevantam da cama chorando por dinheiro a seus padres e madres (menos mal que é isso por vezes seus almoços, que pobreza e alegria nunca dormem numa cama). Outras muitas vendem toda a sorte de viandas, peixe e marisco: cuscuz e chícharos , camarões, berbigões e caramujos , cousas tidas em muito apreço pelas gentes da cidade, que tudo compram, pese ieramá a carestia da vida.

Desemboco por fim no Rossio, passado um pouco já do galante Paço dos Estaus, mandado fazer pelo Infante D. Pedro, filho d'El-Rei D. João I, para dar pousada e gasalhado aos príncipes e embaixadores que vêm a Lisboa. Contra o Oriente, está a Igreja de Nossa Senhora da Escada e o Mosteiro de S. Domingos, logo seguido do sumptuoso Hospital de Todos-os-Santos, o nosso destino. O Rossio é um formigueiro de gente, por ser hoje terça-feira – dia da grande Feira da cidade – e só a muito custo rompemos por entre a multidão, seguindo para as arcadas do Hospital onde, depois de deixar a carga à porta das cozinhas, vou poder finalmente beber água do Chafariz, comer alguma cousita e descansar desta minha trabalhosa viagem.

Nota da autora: Ainda não descobriram quem é o narrador? Até agora só Maria Fernanda Pinto andou por perto... quase a chegar lá . Ninguém mais quer dar um palpite?

 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on October 18, 2010 10:48

October 16, 2010

O que dizem os meus Leitores

Em tempo de grande actividade editorial e de movimento nas livrarias para o Natal que se aproxima, a Editora Ésquilo está a preparar a 3ª edição de "O Espião de D. João II" e promete ter nas livrarias o meu último livro, "O Romance da Bíblia". Aqui vos deixo as mais recentes opiniões e críticas dos leitores, repescadas na blogosfera.

Sobre O Espião de D. João II

"Em O Espião de D. João II, Deana Barroqueiro leva-nos a viajar pelos continentes africano e asiático à boleia de Pêro da Covilhã, na sua demanda pelo caminho das Índias e do Preste João. Esta viagem é repleta de aventuras e percalços prontamente superados pelo protagonista e pelos amigos que vai fazendo ao longo da viagem. Além das aventuras da história, há a aventura para o leitor, deixado em tom de desafio pela autora: a fala do séc. XV, juntando ainda muitas expressões da Beira-Baixa (simpaticamente explicadas em pequenas notas de rodapé).
Na minha opinião, esta ideia da autora de escrever os romances com o português da época, transporta-nos para dentro do livro e leva-nos a imaginar que viajamos no séquito de Pêro da Covilhã. A autora descreve tudo com bastante pormenor, conseguindo a proeza de não tornar a leitura monótona, de tal forma que consegui visualizar os ambientes, perceber os usos e costumes da época.
Como alguém disse na página do Facebook da autora, fiquei "refém do livro" e da escrita (entretanto já li D. Sebastião e o Vidente, comprei O Navegador da Passagem e O Romance da Bíblia está na lista das próximas aquisições).
O "Espião" foi uma lufada de ar fresco, a grande maioria (para não dizer todos) os romances históricos que li, contam a mesma história de Reis e Rainhas e as intrigas das suas cortes. Ainda traz uma "lição" que serve bem para os dias de hoje, o convívio pacífico entre religiões. Do grupo de amigos no nosso espião fazem parte muçulmanos e judeus."
Susana Henriques - rating: ***** 03/09/2010Goodreads - rating: Susana, Maria e Biblioferreira****+

"O livro O Espião de D. João II de Deana Barroqueiro, é merecedor de menção no que toca à ficção histórica em língua portuguesa, na actualidade".Margarida de Castro 05/04/2010


Sobre O Romance da Bíblia

"Acabei de ler O Romance da Bíblia, da Deanna Barroqueiro e amei!
A dedicatória conquistou-me logo. Ia em busca de um livro para oferecer a uma amiga pelo aniversário e veio o seu - vezes dois! Porque ofereci um e trouxe outro exemplar para mim. Porque delas também reza a História."
ianita (Paraíso do Inferno)5/08/2010

"O romance é uma reedição de outras duas obras da autora sobre lendas, parábolas e histórias do Antigo Testamento, com as suas personagens sacralizadas, mas escrutinadas do ponto de vista feminino e focando a condição da mulher. Foi esta a razão porque me interessei por ler este livro. Assim, descobri um romance sensual, erótico, poético e muito violento, sobre uma época em que a falta de ética e moral originava um tremendo sofrimento e luta constante pela sobrevivência e integridade. Não é possível o distanciamento, porque existe a clara noção de que não se trata de mera ficção, porque sabemos que esta obra é resultado de uma apurada pesquisa e investigação sobre o que existe documentado. As mulheres eram propriedades, adquiridas por contrato, um bem que se dá, se troca ou se vende, segundo o interesse da família. Não eram consultadas ou ouvidas sobre os seus sentimentos e as suas vontades e o seu destino era consoante outros o designassem. Ora uma maldição, ora uma bênção, conforme a sua beleza, sagacidade, ou sorte. Por tudo isto, penso que este livro é realmente de interesse colectivo. Absolutamente."Helena (Segredo dos Livros)11/09/2010
"Um galeria de mulheres do Antigo Testamento pintadas com mestria pela autora e que nos dão um retrato diferente daquele que lemos na Bíblia. Uma Sara (mulher de Adão) libidinosa e sedutora, a mulher de Onan cheia de malícia e ardis... para só citar 2 de tantas que a Deana nos traz com outras cores. Gostei muito. Um livro que se lê muito bem, mas que denota um profundo conhecimento da Bíblia e uma exaustiva investigação em textos da época, com a citação de vários poemas encontrados em livros antiquíssimos e de que gostei muito.Recomendadíssimo!"Maria Afonso (Segredo dos Livros)20/06/2010
"Diz Maria Teresa Horta no prefácio que a Bíblia nos apresenta um "Velho Testamento moralista, repleto de anciãos preguiçosos, libidinosos e lascivos, de brutamentes ignorantes e violadores, convocados por um Deus irado frente à própria incompetência e à própria imagem, segundo a qual teria criado o homem, de quem afinal não gosta e castiga." É contra esta visão que a autora se insurge, trazendo para a ribalta um lote de mulheres que, ao longo da história do povo judeu, estiveram longe de ser as esposas fiéis, as concubinas dóceis e as escravas submissas."Sebastião Barata (Segredo dos Livros) 07/06/2010

Nota: Podem ler e ouvir excertos e mais críticas do romance em http://romancedabiblia.blogspot.com/

 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on October 16, 2010 06:30

October 11, 2010

Memórias de Estalo - Capítulo III

DA ESPERANÇA A SANTA CATARINA
Com estas remembranças nem dei pela subida empedrada e retorcida junto ao Cruzeiro da Esperança que nos leva do Paço do Duque de Aveiro ao arejado outeiro do Convento de Nossa Senhora da Piedade de Boa Vista, mais conhecido por Santa Maria da Esperança. Casa religiosa de franciscanas, de mui simples aparência, mas mui rica paredes adentro, foi fundada há bem pouco tempo por D. Isabel de Mendanha para aí albergar algumas donas nobres anojadas do mundo e donzelas de bom nome e minguado dote. Aqui há-de meu amo deixar muitos e bons recados dos nossos fradinhos Jerónimos para as dedicadas irmãs e arreceber grande soma de produtos de seus belos vergéis, hortas e vinhas – uma generosa oferenda para levar ao Hospital de Todos os Santos.

Enquanto espero meu amo, vou respirando regalado os bons ares destas ricas lavras de cheirosos frutos e bebo uma pouca d'água fresca no Poço da cerca da Esperança. Não é de espantar que tantas casas de gentes-d'algo se hajam começado a alevantar por estas partes, que seus donos mais não desejam que fugir os ares corruptos das pestes e das sujidades e maus cheiros da cidade, causadores de todas as pragas de rataria, mosquedo, piolhedo e demais bichedo.

Depois da carga aviada, de muitas sombreiradas e outros tantos "Deus vos guarde, minhas santinhas", de meu amo às boas freirinhas da Esperança, que nos lançam muitas bênçãos de "Ide-vos muito embora, João do Restelo!" e "Que o Senhor vá em vossa companha!" e também: "Olhai, que não vos olvide as cartas para o Prior e para os nossos bons irmãozinhos Jerónimos!", volvemos à estrada que nos vai levar às Portas de Santa Catarina.

Prestes se faz sentir o cheiro endemoninhado do Poço dos Negros, uma cava ou tranqueira para onde lançam os corpos dos escravos negros que se finaram. Triste destino, o destas pobres gentes, arrecebendo pior tratamento que perro ou sendeiro, salvo seja! E como a vala está tão cheia que só a muito custo logram cobrir os corpos dos negros, El-Rei ordenou de se abrir outra, aí mais arriba, à qual deram o nome de Poço Novo. Meu amo cobre os narizes e a boca com um suadeiro, mas eu, que o não posso fazer, vou de ventas ao léu e arrecebo em plenos focinhos um fedor tão abominável que me revolve as tripas e me traz amargos à boca e tremeduras de sezões.

Mareado de morte, lanço-me em carreira desenfreada, sem atender aos brados do meu amo, e só paro lá bem no alto, à entrada da Vila Nova de Andrade Respiro por ambas as ventas, todo consolado, o ar perfumado destas hortas de semeadura, vinhas e olivais, agora pertença da família Atouguia

Vêem-se algumas casinhas, cerca da ermida de Santo António Pela porta de S. Roque, ou do CondestabreNotas:

 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on October 11, 2010 07:43

October 7, 2010

Broas de Mel (Alvaiade - Castelo Branco)

Atendendo ao sucesso do Bolo de Mel, das terras de Pêro da Covilhã e de Afonso de Paiva, deixo-vos aqui outra receita antiga da família Pires Ribeiro:

Broas de Mel
1 malga (caneca ou taça) de ovos inteiros
1 malga de azeite
1/2 malga de açúcar (a original leva 1 malga, mas ficam muito doces)
3 colheres de sopa, bem cheias, de mel
1 colher de chá de fermento em pó
1 casca de limão
Canela a gosto
3 malgas (cerca de) de farinha

Bate-se os ovos inteiros com o azeite, o açúcar, o mel, a casca de limão e a canela (não bater tanto como para o Bolo de Mel) e, em seguida, mistura-se a farinha com o fermento. Deita-se a massa às colheres em tabuleiros untados com azeite e polvilhados de farinha, deixando uma boa margem entre elas porque crescem bastante (a massa não deve ficar muito corredia, para não se espalhar muito e fazer bolos muito finos, terão de corrigir com a experiência).
Cozem em forno bem quente, previamente aquecido, até crescerem (devem ficar com cerca de 7 cm. de diâmetro e bem douradas, como as da foto que acabei de fazer). São fáceis de preparar e rendem muito.
Bom apetite!
 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on October 07, 2010 06:39

October 4, 2010

Memórias de Estalo - Capítulo II

SANTOS-O-VELHO

Asinha galgamos a meia légua que nos separa da porta sul da cidade, com o sol a romper, anunciando que o dia há de ser de truz e Lisboa parece saída de um banho de ouro na rua dos ourives. Como todas as manhãs, por estes caminhos, corre uma bicheza de gentes rumorosas e açodadas que nos fazem atardar o passo.

Muitos são almocreves como meu amo, com suas bestas carregadas de fazenda que vêm vender à cidade, mas há também estrangeiros à cata de fortuna, vendedeiras e oficiais de muitos ofícios que moram fora de portas e vem fazer por sua vida. Há o costumeiro alvoroto à entrada, com muitos empuxões, correrias, grande grita de "À que d'el-rei!" e larga soma de doestos e pragas, quando os soldados e beleguins carregam sobre os ajuntamentos, semeando cacetada de criar bicho. Rompemos por este rio de gente com algum perigo e grandes trabalhos.

"P'ra frente, Estalo!" grita meu amo, exasperado: "Abre-me caminho, home, não sejas cebolo! Uxte, Uxte, sendeiro!". E aquele seu estalar da língua contra os beiços ressoa no ar como um açoute, fazendo estremecer bestas e gentes que logo se apartam abrindo estrada para a nossa carrocinha.

Por fim, entramos na cidade pelo caminho que leva ao Paço Velho e avivamos o trote que a manhã já rompeu e, por ser a primeira terça feira depois do dia de Todos-os-Santos (um mui solene feriado de procissão e missas de finados, no qual nada se pôde mercar) haverá hoje Grande Feira no Rossio onde se há-de comprar e vender dobrado. Ora aí temos o Paço, mas não vamos parar que não há recado para entregar e de verduras não hão mister, pois têm mui boas e frescas hortas com seu hortelão.
O formosíssimo Paço Real de Santos-o-Velho, assim chamado por nele se haverem guardado os corpos de três Santos Mártires – os irmãos Veríssimo, Máxima e Júlia – do tempo dos Romanos que os perseguiram e mataram com grande crueza. Dá gosto saber todas as histórias da cidade de Lisboa, pois assim, conhecendo-lhe o coração, sempre a vejo com olhos de maior amor. Grande proveito tenho tirado destes meus serviços aos Freires do Mosteiro dos Jerónimos, pois são mui sabedores e sempre andam praticando sobre todas as cousas da vida, do céu e da terra e eu não tenho mais que ouvir e aprender. Assim também ouvi falar que os corpos dos Santinhos já aqui não repousam, pois foram trasladados para Santos-o-Novo, no tempo de D. João II e da piedosa Rainha Dona Leonor, com muita despesa, em devota e solene procissão.

Dizem que foi o primeiro rei de Portugal quem aqui ordenou de fazer uma Igreja, que seu filho, D. Sancho I, doou aos irmãos da Ordem de Santiago para aí fazerem suas casas e viverem com suas mulheres. Quando os Cavaleiros partiram para a guerra contra a Mourama, suas mulheres tomaram a seu cargo o lugar, criando uma casa religiosa, o Mosteiro de Santos, e tomando o nome de Comendadeiras de Santiago.

Há alguns anos (inda eu não nascera) estas Comendadeiras deixaram o Mosteiro indo para a parte oriental da cidade, fundando aí a Casa Religiosa de Santos-o-Novo, onde inda vivem. Então, o rico-homem Fernão Lourenço tomou o sítio de aforamento às ditas freiras, erguendo aqui um maravilhoso paço que El-Rei D. Manuel cobiçou e ao qual deitou a unha, dando-lhe o nome de Paço Real de Santos e usando-o para receber suas magnas embaixadas, como a do Prestes João das Índias que dizem ter sido cousa espantosa de se ver e lhe deu muita fama. E também Mestre Gil Vicente apresentou aqui à mui nobre Rainha Velha D. Leonor e a El-Rei D. Manuel o seu Auto da Fama, no ano de 1510, se me não engana a memória. Agora, El-Rei D. João III fez dele sua residência e aqui passa alguns meses do ano, assistindo à chegada e partida das naus e escutando o Tejo a bater docemente de encontro aos muros do jardim.

(Continua...)

 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on October 04, 2010 14:46

October 1, 2010

Surrealismo - Un Cadavre Trop Exquis


Assisti ontem, na Perve Galeria, à inauguração da espantosa exposição das obras de três ícones da pintura surrealista portuguesa: Cruzeiro Seixas, Isabel Meyrelles e Benjamim Marques (os dois últimos radicados em França).
Num espaço belíssimo, em pleno coração da Alfama (por favor, não deixem de lhe fazer uma visita!), as obras dos três mestes - pinturas, gravuras, desenhos e esculturas - estabelecem um diálogo de contrastes e harmonias, que só se consegue em sonhos ou pela magia de uma imaginação criativa... como a destes artistas.

No pequeno, mas muito cuidado catálogo, diz-nos Carlos Cabral Nunes, curador da exposição:
"Trata-se, especialmente, de uma mostra que reune, pela primeira vez em Portugal, três importantes Surrealistas portugueses: Cruzeiro Seixas (agora com 90 anos, foi fundador, com Mário Cesariny e demais companheiros, de Os Surrealistas - em 1949 realizam a 1ª exposição), Isabel Meyrelles (responsável, com Natália Correia, do mítico bar Botequim) e Benjamim Marques (membro do Grupo do Café-Gelo, liderado por Cesariny, nos anos 60; representou a França no seu pavilhão na Expo 98)".

Do catálogo, aqui vos deixo ainda algumas frases do texto de Françoise PY, Mestre de Conferências da Universidade de Paris:

Cruzeiro Seixas - Sem Título
Desenhos e guaches "realizados num estado quase alterado que favorece o automatismo. O tipo de desenho muito puro de Cruzeiro Seixas é essencialmente visionário. O seu tipo de traço contínuo junta elementos gráficos com figuras compostas, em metasmorfose perpétua. (...) Essas criaturas míticas, andróides e animais, estão simultaneamente animadas e inanimadas, objectos e biomórficas, originam-se umas às outras, poder-se-ia dizer que tentam povoar um universo que estava vazio".

Isabel Meireles

"Isabel Meyrelles encontra soluções inéditas para a oposição entre elementos biomórficos e elementos geométricos. Seios ou uma cara surgem de uma superfície lisa como vidro. Por vezes um objecto concreto (instrumento de música, revólver, degraus de escada) serve de matriz conceptual da obra. A forma de um violancelo inspirou frequentemente os surrealistas pela sua analogia com o corpo da mulher. Isabel Meyrelles insere-se nesta tradição, joga com volumes puros e mostra um corpo feminino coroado com uma cabeça de pássaro".

Benjamim Marques

Benjamim Marques é um grande viajante, herdeiro da tradição dos navegantes portugueses do século dezasseis. (...) As suas telas são cartografias imaginárias onde surgem ilhas míticas, ou constelações, ou planetas - Marte, o vermelho, por exemplo. Toda uma série de trabalhos está consagrada às Galáxias: viagem interior e exploração visionária do infinitamente grande".

EXPOSIÇÃO A NÃO PERDER!

De 30 de Setembro a 30 de Outubro

Perve Galeria - Alfama: Rua das Escolas Gerais, nº 17,19,23 - Lisboa

 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on October 01, 2010 04:07

September 28, 2010

Memórias de Estalo - Capítulo I


DE BELÉM A SANTOS-O-VELHO

O breu da noite já se esfuma e não tarda a clarear a manhã. Arrimado ao muro deste grandíssimo Mosteiro de Santa Maria de Belém, no surgidouro[1] do Restelo, vou arrecebendo na carrocinha a carga de verduras e frutas do quintalejo que os bons freires Jerónimos deixam cultivar a meu amo a troco d'alguns serviços e sinto-me entanguecido[2], com os costados húmidos pelo chuvisco geeiro[3] vindo do mar ali tão cerca. O matabicho costumeiro destas albas de Novembro assaz frias soube-me a pouco, à míngua de castanhas, que este ano as geadas foram bastas e nos castanheiros os ouriços não medraram. Ora sus ! Quem muito pede… muito fede. À cautela deixei de banda umas poucas de favas para ir dando algum trabalho às queixadas e entretendo o caminho. Trigoso[4] vem meu amo e com razão que a jornada até à Ribeira de Lisboa tem a lonjura de três mil passos, muitos por ásperos carreiros, que a direito nos tolhe o mar o caminho e há que entrar na cidade pela porta dos Paços de Santos-o-Velho. "Desenguisa-te, desgorgomilado[5], que quem não trabuca não manduca!" brada-me com fingida sanha, por ser homem d' ânimo aprazível e faceiro. "Uxte! Uxte! que se faz tarde!" E lá vem o estalido da língua, como só ele sabe fazer, qual estoiro de petardo no silêncio da alvorada, não havendo mula ou jumento, por mais entirrado[6] que seja, que ao ouvi-lo não se meta a caminho, tão esforçado, como se disso dependesse a salvação de sua vida. Rompemos, pois, num passo vivo que a carrocinha não vai cheia e os mercaderes não esperam, pois lá diz o dito que "quem não parece[7], esquece". Ladeando o muro, e muito antesde dobrar a quina do Mosteiro, afemenço[8] o vulto da Torre de S. Vicente a que chamam de Belém, toda em pedra de cantaria. Tem quatro pisos, mas é tão formosa e airosa que parece mais pequena, feita assim, sobre rochas, mar dentro. Guarda o Mosteiro e o porto de Lisboa, sempre de vigia à passagem estreita, para que nenhuma nau se possa acercar sem seu consentimento. Agora, no lusco-fusco da alba, abre os olhos e a boca em jeito de sono ou pasmo, mas nada lhe passa desapercebido.
A frontaria do Mosteiro de Santa Maria de Belém alteia-se negra e temerosa, pois a hora é de avantesmas e de maus encontros e, a pesar do varapau do meu amo e da sua sobeja Tamanho do tipo de letraarte de varejar um terreiro de malandrins, um arrepio de medo eriça-me os pelos do toutiço. "Toma-me tento ao caminho, ó malparido, que a carroça vai de banda!", brada-me iroso do meu tropeço, que tão pouco lhe praz a escurana e o que ela pode esconder.

A porta travessa, virada para o Tejo, é a mais formosa e melhor lavrada do Mosteiro, abrindo para uma comprida e galante varanda de pedra talhada, de longo do caminho público até ao cabo[9] de todos os jardins e casas do convento. Tendo as gentes passo[10] às suas arcadas, estas oferecem guarida e pousada, durante a noite, a grande soma de matelotes[11] e forasteiros que saem das naus surtas aqui no cais. De dia, é um ferver de vida com as idas e vindas dos mercadores no concerto de seus tratos de especiarias, ricos panos e pedraria da Índia ou de escravos da Guiné.
El-Rei D. Manuel começou de fazer este Mosteiro no ano de 1499 – no lugar de uma ermida do Infante D. Anrique[12] a Nossa Senhora da Estrela –, para celebrar a chegada de D. Vasco da Gama, depois de descoberta a derrota para a Índia. Espantoso feito, sem dúvida, que deu causa a muitas das fortunas, mas também das grandes misérias, do presente! Não poupou El-Rei Venturoso despesas para a edificação deste maravilhoso templo que ele elegeu para jazigo de sua sepultura, mas que não viu acabado por se ter, primeiro que ele, acabado sua vida. Agora seu filho, El-Rei D. João III, o está acrescentando e levando a cabo, como se pode ver pelos estaleiros (a esta hora sem viv'alma).
Na porta travessa que está contra a praia, por ser a mais principal em vista, mandou El-Rei D. Manuel pôr a imagem do Infante D. Anrique, como primeiro fundador desta casa, sobre a coluna do meio, armado com sua cota de armas e a espada nua na mão, alevantada para riba, em sinal de vencedor, que é cousa maravilhosa de se ver! Inda andam nas bocas do povo as trovas de Resende feitas à memória de D. Manuel:
"Rei e Príncipe seviu
De Castela, e lá andou,
Di a pouco descobriu
A Índia, e a tomou,
Como todo o mundo ouviu,
Tomando reinos, e terras
Por mui guerreadas guerras,
Ganhando toda a riqueza
Do Soldam e de Veneza,
Subjugando mares, serras.

Vimos-lhe fazer Bethleem
Com a gram torre no mar,
As casas do almazem
Com armaria sem par
Fez só el Rei que Deos tem:
Vimos seu edificar,
No Reino fazer alçar
Paços, igrejas, mosteiros,
Grandes povos, cavaleiros,
Vi o reino renovar" .

Mas o grandíssimo Mosteiro lá ficou para trás, apequenando-seapequenando-se na lonjura do caminho, e corremos já meia légua por campos e pastos, entre quintas de ricas casas de lavoura. Os vergéis são bastos e a fruta cheirosa, de criar apetites e saliva na gorgomileira. De todas as vezes que aqui passo, aboco uma maçã e a vou roendo e masticando com demoradas delícias, porém, hoje, não me sorriu a Fortuna, que meu amo nos desviou na pressa de ganhar caminho e cruzamos terras de pastos rasos e ralos do retouçar continuado de muitos rebanhos de cabras e ovelhas, que tudo engolem e nem os talos deixam. Arranco, de passagem, uma verdurita que lhes escapou e a vou mordiscando, que não há melhor cousa para refresco da boca e do bafo que um ramito verde acabadinho de colher! E, como soe dizer-se, "segundo são os tempos… assim hão de ser os tentos." Paciência, pois, e toca a andar!

(Continua...)

[1] Encoradouro.
[2] Tolhido de frio, enregelado.
[3] De geada, de gelo.
[4] Apressado.
[5] Desembaraça-te, comilão!
[6] Teimoso.
[7] Aparece
[8] Avisto.
[9] Extremo.
[10] Acesso, passagem.
[11] Marinheiros.[12] Infante D. Henrique, filho de D. João I e impulsionador dos Descobrimentos.

 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on September 28, 2010 07:34

Bolo de Mel - o maná dos meus heróis

Nas apresentações mais informais dos meus romances, na Fnac ou no Centro nacional de Cultura, para evocar o "espírito de época", tenho oferecido aos meus amigos um Bolo de Mel, de Castelo Branco - receita antiquíssima da família de meu marido - que (quase poderia jurá-lo, sem receio de mentir), deve ter feito parte da dieta de Pêro da Covilhã e Afonso de Paiva, um manjar delicioso pelo qual os dois heróis devem ter suspirado, nos momentos de maior saudade e privações, durante as suas andanças pelo Oriente.
Algumas leitoras pediram-me a receita, por isso aqui fica, com algumas "dicas" para um bom sucesso:

Bolo de Mel

2 dls de mel
2 dls de azeite
Meia chávena de açúcar
200 g de farinha (com 1 c. de chá de fermento)
6 ovos
1 casca de limão
Canela (pó) a gosto

Bate-se as 6 gemas com o açúcar, o mel, o azeite, a casca de limão e canela (1 c. de chá), até ficar um creme grosso, quase branco.
Junta-se as claras batidas em castelo forte, alternando com a farinha, a que se adicionou o fermento.
Deita-se numa forma grande, com buraco, untada e polvilhada de farinha. Vai a cozer em forno quente (a 180 graus) durante 30 m., baixa-se então um pouco a temperatura (dependerá do forno) e deixa-se cozer ainda cerca de 20 m.
Cresce muito. Deixar-se arrefecer um pouco para desenformar.

Bom apetite!
 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on September 28, 2010 05:57

September 27, 2010

Memórias de Estalo - Crónica de uma Lisboa desaparecida


PRÓLOGO


os mui insignes Leitores da nobilíssima Nação de Portugal, venho submeter esta obra, fruito de aturado estudo e dos bons ensinamentos que tenho recebido, com muita humildade e gratidão, de tantos e tão grandes Mestres, vivos ou já desaparecidos desta Terra, cujas obras foram feitas com grandíssimo custo e sacrifício de seu parco descanso e lazer, a fim de acrescentar e creditar nossos saberes, pera melhor proveito de todos aqueles que acham prazer nas histórias antigas de sua cidade e ...
 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on September 27, 2010 11:34

Galerias Romanas da Rua da Prata

Vou morrer sem as ver!
Há anos que tento, em vão, visitar estas catacumbas da Rua das Prata, mas, mesmo indo de manhã, as bichas são imensas, o que implica estar horas de pé, a avançar a passo de caracol, provação impossível para a minha idade e péssimo estado da minha ossatura. Abriu durante três dias - sexta, sábado e domingo passados - mas, antes do meio-dia de Sábado já tinham fechado a fila, que chegava ao Rossio, embora a última visita fosse às 17.30 h. Eu e o meu marido desistimos...
 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on September 27, 2010 03:52