Deana Barroqueiro's Blog: Author's Central Page, page 75

November 15, 2010

Eu, pecadora, me confesso

Testemunho de Bárbara Wong, jornalista do "Público"

Pergunto-me muitas vezes como é que é possível um professor não ter o controlo da sala de aula. Como é que é possível? Se fosse eu... A minha experiência com crianças e na qualidade de "professora" é diminuta e feita em circunstâncias muito especiais, de maneira que me parece que se eu consigo, qualquer pessoa consegue! Muito enganada. Há dias lia sobre uma professora de uma determinada escola de Lisboa que desistiu de dar aulas quando um aluno se dirigiu a ela e espetou um murro com imensa força contra o quadro, mesmo ao lado da sua cabeça. Nem de propósito, nesse mesmo dia passei à porta dessa escola e vivi uma situação que me recordou a docente, a diferença é que os murros foram dados no meu carro e eu estava dentro dele.Os miúdos vinham descontraidamente no meio da estrada, com dois passeios vazios, de um lado e do outro e eles calmamente, vagarosamente, e eu, de frente para eles, cautelosa não fosse atropelar algum porque nenhum se desviava. Com o desafio nos olhos e a boca num meio sorriso lá vinham eles na minha direcção e eu já com o carro completamente parado, à espera que passassem de uma vez. Eram uma dezena, todos rapazes, alguns pequenotes, mas a maioria enormes.Eis que, quando passam começam a bater no capot e nos vidros, imediatamente apito-lhes e começo a andar, com cautela para não os atropelar, mas o meu cérebro envia-me mensagens diferentes: de um lado diz-me "calma, Bárbara, calma, eles são maiores do que tu mas são menores, não atropeles nenhum"; do outro a indignação verbalizada com uns "estúpidos, não têm educação, não merecem nada, não percebem nada, não se ajudam a si próprios e depois espantam-se quando tomamos a parte pelo todo e chamam-nos racistas e sentem-se vítimas da sociedade, idiotas", ok, mentalmente também os mandei para uns sítios impróprios.Mais à frente, um grupo de miúdas, com o mesmo desafio no rosto. Há uma que dança no meio da estrada, virada de costas para o carro, rodopiando e rindo, outra que espeta a perna em direcção ao veículo, desvio-me como posso, não lhes toco. "Anormais", murmuro entre dentes, com as janelas fechadas e um calor de morrer.E voltei a lembrar-me da professora daquela escola, dos professores que aturam estes miúdos diariamente. Dos que têm sorte ou jeito e conseguem estabelecer pontes com eles; dos que passam mais de metade da aula a tentar sentá-los e acalmá-los, dos que têm esperança de contribuir para a diferença, dos que já entregaram as armas e só querem que o dia acabe, dos que também se passam e agridem os alunos. Tento pôr-me no lugar destes professores, não consigo.Em muitos destes casos, os professores perderam, a escola perdeu, a sociedade perdeu. Os miúdos são os que mais perderam mas não sabem, nem querem saber. O que fazer com eles?

(A crónica foi-me enviada por e-mail pelo amigo Fernando Couto e Santos)

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Published on November 15, 2010 11:30

November 9, 2010

Desafio ao Leitor das "Memórias de Estalo"

Obrigada aos que participaram na minha brincadeira e adivinharam a identidade do Estalo e a sua qualidade asinina. Já convidei no Facebook e gostaria de renovar aqui esse convite aos que acertaram e que estejam perto de Lisboa, para virem tomar um chá ou um "Porto" em minha casa, em dia que servisse a todos.

Deixo-vos aqui outro desafio:

No Capítulo X, Estalo vai encontrar um poeta que costumava frequentar o Malcozinhado.

- O que era o Malcozinhado? (É referido no "Navegador da Passagem" e no "Espião de D. João II").

- Quem é o poeta? (Também é personagem do "D. Sebastião e o Vidente")

Fico à espera das vossas respostas.
Um grande abraço.
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Published on November 09, 2010 02:20

November 8, 2010

Memórias de Estalo - Capítulo VII

Zacapela no Rossio

Hui! Como João do Restelo vem em boa companha! Que fêmeazinha de estalo traz ele consigo, capaz de fazer perder o siso ao mais sisudo! Um longo pescoço, delicado e nervoso, com gentil e formosa cabeça de finas orelhas móvedasUm mancebelhão arreeiro arremete com valentia: "Uxte, uxte, sendeiro! Uxtixpor má sina minha, solta uns sonoros estalidos de língua, qu'inda me são de mor acinte. Quiçá por isso me hajam dado o nome de Estalo, pois se adrego ouvir o estralejar de uns dedos, língua ou chibata, toma-me logo um formigueiro nas pernas, uma coceira nas mãos, que me deixam com ânsias de ginete em picadeiro que só assossega depois de corrida desatada! Ai, se meu amo não m'acode…

Sinto as mãos de João do Restelo no meu pescoço e a sua voz amiga acalmando-me: "Então, Estalo, assossega! Que bicho te mordeu, home, para t'amostrares assi tavanés

Empachado


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Published on November 08, 2010 10:55

November 7, 2010

A Sociedade da Língua Portuguesa vai ser exterminada?

Embora tenha havido recuos da ministra da Cultura, Gabriela Canavilhas, nos cortes previstos para o sector da Cultura, a prestigiada Sociedade da Língua Portuguesa vai deixar de receber o subsídio do Estado imprescidível para a sua existência:
«Apesar de contar com 61 anos de actividade, os apoios à SLP têm vindo a ser reduzidos. E se há 10 anos o instituto recebia 1500 euros por mês, o subsídio de 2009 ficou-se por um total de 2500 euros, além do apoio concedido ao Prémio Internacional de Linguística Lindley Cintra. "Temos três mil euros mensais de despesas fixas", queixa-se Elsa Rodrigues dos Santos. A única fonte de receita da SLP é a quota dos associados, que rondam os 33 mil euros anuais. "Só que o número de sócios é cada vez menor, sobretudo porque perdemos a nossa biblioteca", sublinha. A SLP tem um espólio de mais de 20 mil títulos, que estão encaixotados na cave da Academia das Ciências de Lisboa, porque "as actuais instalações são velhas e não permitem recebê-los", lamenta a presidente. Para fazer face às dificuldades, a SLP vai concorrer, pela primeira vez, a fundos comunitários.» (Jornal I - 3/08/2010).

Fundada em 14 de Novembro de 1949, a Sociedade da Língua Portuguesa (SLP) nasce vocacionada para a investigação, difusão e defesa da Língua Portuguesa. Em 1979, passa a Instituição de Utilidade Pública e, em 1982, a Membro Honorário da Ordem do Infante Dom Henrique. Em 2009 festejou o seu 60º aniversário de uma vida de intensa actividade na promoção e defesa da Língua Portuguesa, tão maltratada e desrespeitada pelos seus falantes, nomeadamente os que teriam por obrigação defendê-la.

A SLP afirma-se pelo modo continuado qualitativo como desenvolve o seu trabalho. As suas actividades são diárias e abarcam não só a área específica da língua portuguesa como outras da cultura. Citam-se os seus três programas fixos:
- Ciclos de palestras às 3.as feiras, o Curso Anual de Língua Portuguesa para Estrangeiros, o Curso de Verão de Língua Portuguesa para Estrangeiros (Agosto), e ainda, em horário pós-laboral, Oficina de Escrita, Árabe, Expressão Dramática, Inglês, Francês e Alemão.
- Com o Ciberdúvidas na Internet dá resposta a milhares de perguntas vindas de Portugal e das várias partes do mundo.
- Tem ainda um programa semanal na RDP Internacional, repetido 5 vezes por semana, intitulado Falar Português onde, para além de uma crónica de gramática ou de língua portuguesa, se fala de livros.
- Publica a revista anual Língua e Cultura e tem um boletim trimestral com uma tiragem de 1500 exemplares que os sócios da SLP recebem gratuitamente e chega a todos os concelhos do país.
- Atribuição de três prémios internacionais: Grande Prémio Internacional de Linguística Lindley Cintra, Prémio Internacional de Tradução e Prémio da Crónica João Carreira Bom / SLP.

A SPL está há décadas à espera que lhe dêem um espaço adequado às suas necessidades, como lhe foi prometido, quando foi forçada a deixar as instalações degradadas da sua velha sede.
Agora o Estado, além de lhe cortar o subsídio, quer expulsá-la do edifício em que está, sem lhe dar qualquer alternativa, o que resultará na extinção desta tão prestigiada e útil Instituição.

Com os políticos incultos e medíocres que temos, este país cada vez se afunda mais na ignorância e na boçalidade, mascaradas por um leve verniz cultural (ou já nem isso!), de pura fachada, "para a UE ver", com uma gestão de dinheiros públicos incompetente e quase sempre incompreensível.
A morte desta nobre Sociedade da Língua Portuguesa-Instituto de Cultura, é um crime e uma vergonha, porque é castigar que trabalha bem e esforçadamente, dignificando Portugal e os Portugueses.

Quem quiser saber mais sobre esta instituição, consulte a Página da SPL
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Published on November 07, 2010 11:30

November 1, 2010

Memórias de Estalo - Capítulo VI

Feira no Rossio

Junto

ao chafaCor do textoriz do Rossio, onde meuamo me deixou, enquanto mastigo consolado a comidinha saborosa, não perco nada do que se passa na Feira da vastíssima Praça. Aqui mesmo ao lado, grande soma de mulheres, vindas dos montes, vendem em suas bancas pães-de-ló, queijinhos frescos, requeijão e marmelada. Além, sapateiros, aljabebesNo alpendre do Hospital, as tendinhas de vestimentas e enfeites são de maior luxo, com fanqueiras e mercadores que vendem linhos, veludos e brocados de Flandres, Paris e Veneza, sedas da

Aqui, deste lado do chafariz onde faz menos ruído, a escritura é outra e arrecebe sua paga. Sentados a umas mesinhas d'armar, há uns homens que ganham dinheiro por pena, escrevendo ofícios, petições, louvores, cartas, mensagens d'amores e versos, tudo aquilo de que as gentes hão mister e lhes vêm ditar e que tantas vezes me tem causado muita risa e outras muito dó, segundo a cor de suas histórias. Aqui, se fazem por escrito tratos de compras e vendas, préstimos de dinheiro ou pagamentos de dívidas e grossas bolsas de moedas d' ouro ou pedraria mudam de mãos a cada instante, acabando por vezes na sacola d'algum ladrãozeco, com o lídimoGentes de muitos mundos e de um sem conto de raças, em seus raros trajos e estranhas aravias


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Published on November 01, 2010 02:37

October 31, 2010

Made in Portugal ou Produto Estrangeiro?

Caros amigos, estamos todos cansados de ouvir falar na nossa desastrosa economia, que Portugal não produz, importando muito mais do que exporta, que os portugueses gastam mais do que ganham, que o investimento e a iniciativa são baixos e o desemprego alto, que não somos competitivos, etc.

Os políticos são em grande parte culpados deste estado da nação, a crise mundial também... todos sabemos isso. E nós, os cidadãos comuns, estaremos isentos de pecado?
Os produtos e marcas portuguesas são quase sempre preteridos em relação às marcas estrangeiras, mesmo quando são de melhor qualidade, quer nos materiais quer na execução. Temo que isso seja fruto do síndrome, muito nosso, de mostrar desprezo por tudo o que é nacional e babar-se por tudo o que vem de fora, por mais "bacoco" que seja. Só se tem valor "cá dentro", depois de se vencer e ser conhecido "lá fora".
Por alguma razão os nossos criadores de sapatos têm de lançar as suas marcas de óptima qualidade, com nomes ingleses, italianos, franceses... para se venderem entre nós.

Este texto vem a propósito de um artigo que vi numa dessas revistas sobre televisão que acompanham os jornais, que passo a citar. Uma apresentadora de TV, chamada Júlia Pinheiro, "só veste criações de estilistas famosos", como Valentino, Cavalli, Armani e Gucci que "custam uma fortuna" - entre 1300 e 3000 euros -, que ela escolhe e a cadeia televisiva compra para as suas actuações e que ficam a pertencer ao guarda-roupa do dito canal. E, quanto a sapatos só Stivalli (cujo custo equivale ao dos vestidos). Nada a argumentar, trata-se de uma empresa privada, livre de gastar o seu dinheiro como quiser.

O que me pareceu ridículo e me trouxe a falar do assunto, foi a manifestação dessa espécie de novo-riquismo deslumbrado, contida na justificação da autora do artigo - "a escolha de estilistas de gabarito internacional não acontece por acaso" - e na frase lapidar de Júlia Pinheiro:
"Não encontro em Portugal alguém que tenha olho para me vestir".

Achei esta afirmação espantosa. E extremamente ofensiva para os talentosos estilistas portugueses que temos actualmente no mundo da Moda e são reconhecidos "lá fora", alguns com lojas nas grandes capitais e exposição de peças no MUDE. São aplaudidíssimos em New York, Paris ou em Milão os desfiles de Ana Salazar, Fátima Lopes, de José António Tenente, Pedro Pedro, Buchinho ou Nuno Gama (que me perdoem os que não cito e são igualmente bons). Bom gosto, sofisticação, elegância, materiais de qualidade, acabamentos perfeitíssimos (tenho peças de Ana Salazar que são prova do que afirmo).
E as criações dos nossos estilistas já surgem nos shows internacionais dos Óscares e outros. Contudo, nenhum deles serve para vestir Júlia Pinheiro ou para os "reality shows" de requintada elegância da TVI. Só de Armani para cima...

Faço-vos um apelo, queridos leitores: Quando pensarem nas prendas de Natal, se quiserem oferecer aos famíliares e amigos outra coisa que não seja livros (tenho de puxar a brasa à minha sardinha!), lembrem-se das peças de cortiça da Pelcor (lindíssimas e originais em que a cortiça parece veludo, já tem loja na Baixa lisboeta); ou da Casa das Peles (das malas, cintos e carteiras aos coletes e casacos de cabedal e peles, loja na Praça do Campo Pequeno); os vidros do Depósito da Marinha Grande ou a rústica cerâmica da Fábrica de Bordalo Pinheiro; a Vista Alegre; a Atlantis, a SPAL ou a Fábrica Jasmim com a delicadeza colorida dos seus copos.
E tantos e tantos outros...

Vamos comprar português (ou para soar mais "in" - made in Portugal)?
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Published on October 31, 2010 18:21

October 30, 2010

o Outono visto pela janela, in "a verdade dói e pode estar errada"

Recebi esta notícia que o poeta João Negreiros me enviou pelo Facebook, a qual não posso deixar de partilhar com os meus leitores, sobretudo os que não conheçam este talentoso mágico das palavras, que é também um belíssimo intérprete da sua poesia. É bom ver reconhecido, a nível internacional, o valor dos nossos escritores. Não deixem de ver este vídeo, por favor.

A Mensagem do Poeta:

Há poucos dias recebi uma notícia fantástica. O vídeo "o Outono visto pela janela", um dos poemas que faz parte do meu livro galardoado com o Prémio Nuno Júdice, foi seleccionado entre os 10 melhores por um júri de um festival internacional de poesia em vídeo, tendo ficado em 6º lugar na votação on-line. Foi fantástico! Nunca pensei que isso pudesse acontecer, pela simples razão de eu estar muito limitado do ponto de vista financeiro para produzir os vídeos. No entanto, contei com a preciosa ajuda do cineasta chileno Pedro Juan Alvarez. Talvez por isso, possa ter dado ao trabalho uma mais-valia estética que eu ainda não tinha almejado. Partilho esta notícia, porque acho que as coisas boas devem ser sempre partilhadas com quem nos apoia e nos dá ânimo. Não tinha pretensões de ganhar, mas visto que era o único português em prova, acho representei a literatura portuguesa da melhor maneira possível e, com a vossa ajuda, obtive uma percentagem de votos honrosa.

Deixo-vos o link para assistirem ao vídeo com melhor qualidade e para poderem partilhar com outros amigos.http://www.facebook.com/l/05dd5ab5Cjs... uma vez obrigado por tudo! Grande abraço,

João Negreiros

Para adquirir o livro - http://www.facebook.com/l/05dd5YSmf1qfGr2_D41DH4iisZQ;www.saidadeemergencia.com/index.php?page=Books.BookView&book_id=535&genre=

Parabéns, João Negreiros!

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Published on October 30, 2010 10:40

October 28, 2010

Mother Earth (Black Symphony) - Within Temptation

Música com raízes antigas, dos Within Temptations, com que o meu leitor Paulo Franco Henriques costuma acompanhar a leitura dos meus romances históricos. Não destoa... pelo contrário. Obrigada, Paulo, mas é responsável por me ter impedido de escrever esta noite. Só posso ouvir música sem palavras enquanto escrevo. Se houver poema, ouço as palavras dos outros e não as minhas. Uma Sinfonia Negra, em grande esplendor, bom pano de fundo para a vertente mais gótica da minha escrita - inspiradora, sem dúvida!

É tão bom ter esta partilha com os leitores!

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Published on October 28, 2010 17:52

October 24, 2010

Memórias de Estalo - Capítulo V

O Hospital de Todos-os-Santos

O Hospital de Todos-os-Santos estende-se do Rossio à Betesga, com trinta e quatro arcadas de pedraria e sua abóbada que vai por baixo, de onde parte esta grande Feira, que já está a ferver de uma gente alvorotada e disputando em raivosa grita os preços das fazendas.

Passamos diante do portal mui bem lavrado, com escadaria de dezanove degraus de patamares, que é cousa mui formosa de se ver por não haver outra igual em Lisboa, e paramos na esquina que faz o Rossio com a rua da Betesga, a ala sul do Hospital que abriga o Criandário com suas amas, para as crianças enjeitadas, e a Albergaria para os peregrinos e pedintes.

O porteiro chama o Comprador do Hospital que dá ordens a um mancebilho(1) e a duas moças das cozinhas para descarregarem a carroça, enquanto oferece um pichel de vinho a meu amo e o leva para dentro. Como sempre, vou ter de esperar algum tempo té ele aparecer de olho mais vivo e humor mais prazenteiro.

Sem mexer uma palha, que já fiz a minha obrigação, deixo que as moças me aliviem da carga, e vou mirando alrededor, pois aqui muito se aprende só de olhar as gentes, sendo o bicho homem uma criatura cheia de surpresas. E assim é que, no meio desta azáfama de idas e vindas, vejo uma mulher embiocada a coser-se contra os muros do Hospital, com modos de assustada e um emburilho(2) nos braços, o qual, de passagem, vai deixar escusamente na porta de serventia, para logo fugir trigosa.

Uma sorte de ganido de cainçada pequena parece sair do emburilho, primeiro fraco, mas de seguida tão forte que faz acorrer as moças de dentro do Hospital. "Ai, Jesus, qu' é outro enjeitadinho!" diz a mocetona, abaixando-se para tomar a criança nos braços, emburilhando-a no mantelote : "Vai chamar uma das amas, Maria. Vai asinha , cachopa, que o anjinho tá a sofrer!" Gente curiosa acerca-se da moça para olhar o enjeitado.

"Más entranhas há-de ter essa madre que tal filho deita fora!" e a mulher cospe para o chão com desprezo. "Ninguém viu a negregada?" pergunta um almotacém , "Botara-lhe eu a mão e logo a fizera arrepender!" Mas tão só eu a vira, a esgueirar-se para a Praça da Palha e a perder-se num mar de gente. "Estas moças d'agora só pensam em amores e folgação e despois… ai, Jesus, qu'emprenhei! e toca a deitar o rebento fora. Deviam ser todas bem açoutadas na picota ". O almotacém(3) protesta: "E não o são, quando se lhes descobre o rastro?" "Antes fossem garrotadas ou mortas à pedrada, como perras raivosas!"

A Ama surge trigosa e abespinhada: "Melhor fora teres levado o anjinho lá p'ra dentro, que 'stares pr'aqui no soalheiro com mariolas e mulheres ociosas! Tevessem os homes honra em não abandonar as mulheres à sua desgraça e já isto não acaecera . E não se olvide, menina, que no melhor pano cai a nódoa!" Embalando a criança e murmurando: "Com este, já são cinco esta semana!", a boa mulher entra no Hospital deixando a metediça a resmonear de despeito.

E, com todo este alvoroto não há uma alma generosa que s'alembre do meu penso, que estou sem comer e beber desde manhãzinha, que a esta hora meu amo já deve estar bem comido e melhor bebido, folgando com as moças da cozinha que, como ele não se cansa de falar, são guapas e faceiras. Porém, como diz o ditado, Em tempo de figos não há aí amigos! É encher a pança, sem olhar a mais ninguém… Se mais depressa falara… melhor m' aviara! Eis meu bom amo, à porta do Hospital, a desfazer-se em cortesias e agradecimentos e, à bofé de quem sou(4), que traz uma alcofa de comida!


(1) Rapazola.

(2) Embrulho.

(3) Inspector de pesos e medidas.

(4) Por minha fé! (exclamação)

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Published on October 24, 2010 12:26

October 21, 2010

As ilustrações das Memórias de Estalo

Caríssimos Leitores

Vem esta prosa a propósito de uma conversa que tive com a leitora e amiga Maria Fernanda Pinto, residente em Paris, sobre as ilustrações de Memórias de Estalo, as quais no texto em papel me serviam de base às "iluminuras" para as letras de início de parágrafos, em que recorri e adaptei iluminuras verdadeiras (de Livros de Horas, por exemplo) ou pormenores de pinturas da época, como os quadros de Bosch.
Maria Fernanda apercebera-se também de que algumas ilustrações retratavam lugares, edifícios ou monumentos que o narrador mencionava durante o seu percurso e que ela desconhecia, sugerindo-me que referisse aos leitores as menos óbvias (o Mosteiro dos Jerónimos e a Torre de Belém não precisam de legenda).
E como, de facto, algumas delas são únicas e podem ter interesse para quem gosta da nossa História, vou repeti-las aqui com uma pequena explicação:

Cap. II - Santos-o-Velho


Nesta pintura - "Os santos mártires Veríssimo, Máxima e Júlia: Desembarque em Lisboa", de Garcia Fernandes (activo 1514-1565), do Museu Carlos Machado -, surge ao fundo o palácio de Santos-o-Velho sendo, segundo creio, a única imagem que temos do edifício original, onde hoje se situa a Embaixada de França que o restaurou.

História das personagens: «O percurso da vida destes mártires, impossível de averiguar com rigor, aparece descrito num códice quatrocentista da Biblioteca Pública de Évora, (cód. CV/1-23d). Segundo a "Legenda", os irmãos lisboneses, Veríssimo, Máxima e Júlia, durante a perseguição de Dioclesiano (imperador romano de 284 a 305 d. C.), apresentaram-se espontaneamente ao executor dos éditos imperiais, confessando a fé cristã. Tentou ele dissuadi-los, com promessas e ameaças e, como nada conseguisse, mandou-os prender. Vitoriosos da prova do cárcere, aplicou-lhes o juiz vários tormentos: açoites, ecúleo, unhas de ferro, lâminas em brasa. Como ainda resistissem, mandou arrastá-los pelas ruas da cidade e, por fim, degolar. Assim alcançaram a palma do martírio a 1º de Outubro de 303 ou 304.
Não contente com o que lhes fizera em vida, perseguiu-os o juiz depois de mortos, ordenando que os cadáveres ficassem insepultos, para servirem de pasto aos cães e às aves. Como as feras os respeitassem, mandou então que os lançassem ao mar com pesadas pedras. Ainda os barqueiros não tinham regressado à praia e já os santos despojos lá se encontravam. Recolheram-nos piedosamente os cristãos e sepultaram-nos no lugar onde depois se erigiu uma Igreja que ainda por memória se chama "dos santos".
Em 1529, a comendadeira D. Ana de Mendonça, mandou colocar as relíquias em cofre de prata, ao lado direito do altar mor, com o epitáfio seguinte: "Sepultura dos santtos martyres S. Verissimo, Santa Maxima & Iulia, filhos de hum senador de Roma, vindos a esta cidade a receber martírio, por revelação do Anjo. Iazem nesta sepultura os seos santos corpos, os quaes há 1350 annos que padecerão & forão trasladados a esta casa onde jazem".
Quanto à naturalidade, nada se costuma afirmar com certeza. Só em época muito recente os hagiólogos os fizeram filhos de um senador romano e os imaginaram em Roma, em colóquio com um anjo que os mandou a Lisboa para confessarem a fé. Esta lenda refletiu-se na iconografia: os três mártires são apresentados em traje e hábito de romeiros, com bordões compridos nas mãos, como pode ver-se num belo conjunto de três imagens, do Século XVII, expostas ao culto na Igreja do extinto Mosteiro de Santos-o-Novo, em Lisboa, que guarda as relíquias dos mártires.»
(Extraído de Hágios da Trindade)

Cap. IV - Da Porta de D. Roque ao Rossio

O Hospital Real de Todos-os-Santos - iniciado por D. João II e continuado por D. Manuel (que lhe ornamentou a porta principal - era considerado um dos mais modernos da Europa e recebia visitas de médicos de todo o mundo. Tinha médico e enfermeiros permanentes e uma ala para doenças venéreas, contraídas nas viagens pelos países exóticos; além de alas separadas para homens e mulheres. Esta fachada era a do Rossio e conjunto de edifícios estendia-se por toda a Praça da Figueira, com jardins de plantas medicinais. Era para ser uma escola de medicina, mas os físicos (teóricos) e os cirurgiões (e barbeiros) que "sujavam as mãos" na prática, não se entenderam e a escola não foi avante. Desapareceu consumido pelas chamas, antes do Terramoto de 1755.


"A construção iniciou-se na manhã de 15 de Maio de 1492 com o lançamento da primeira pedra na presença do Rei D. João II, onde actualmente é o largo do Rossio, tendo a obra ficado a cargo do mestre arquitecto Diogo Boitaca sobre projecto de Mateus Fernandes seu sogro, foi inaugurado em 1501 já no reinado de D. Manuel I, o objectivo era juntar num só edifício os pequenos hospitais espalhados por Lisboa, cidade que na altura tinha 60.000 habitantes, que satisfaziam as populações mais pobres da cidade." (Ver mais Aqui)

Por enquanto, caríssimos leitores, estas imagens são as que têm «vidas» mais secretas e interessantes. E termino com a pergunta de sempre: Quem é o narrador de Memórias de Estalo?
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Published on October 21, 2010 11:31