Memórias de Estalo - Capítulo III

DA ESPERANÇA A SANTA CATARINA
Com estas remembranças nem dei pela subida empedrada e retorcida junto ao Cruzeiro da Esperança que nos leva do Paço do Duque de Aveiro ao arejado outeiro do Convento de Nossa Senhora da Piedade de Boa Vista, mais conhecido por Santa Maria da Esperança. Casa religiosa de franciscanas, de mui simples aparência, mas mui rica paredes adentro, foi fundada há bem pouco tempo por D. Isabel de Mendanha para aí albergar algumas donas nobres anojadas do mundo e donzelas de bom nome e minguado dote. Aqui há-de meu amo deixar muitos e bons recados dos nossos fradinhos Jerónimos para as dedicadas irmãs e arreceber grande soma de produtos de seus belos vergéis, hortas e vinhas – uma generosa oferenda para levar ao Hospital de Todos os Santos.

Enquanto espero meu amo, vou respirando regalado os bons ares destas ricas lavras de cheirosos frutos e bebo uma pouca d'água fresca no Poço da cerca da Esperança. Não é de espantar que tantas casas de gentes-d'algo se hajam começado a alevantar por estas partes, que seus donos mais não desejam que fugir os ares corruptos das pestes e das sujidades e maus cheiros da cidade, causadores de todas as pragas de rataria, mosquedo, piolhedo e demais bichedo.

Depois da carga aviada, de muitas sombreiradas e outros tantos "Deus vos guarde, minhas santinhas", de meu amo às boas freirinhas da Esperança, que nos lançam muitas bênçãos de "Ide-vos muito embora, João do Restelo!" e "Que o Senhor vá em vossa companha!" e também: "Olhai, que não vos olvide as cartas para o Prior e para os nossos bons irmãozinhos Jerónimos!", volvemos à estrada que nos vai levar às Portas de Santa Catarina.

Prestes se faz sentir o cheiro endemoninhado do Poço dos Negros, uma cava ou tranqueira para onde lançam os corpos dos escravos negros que se finaram. Triste destino, o destas pobres gentes, arrecebendo pior tratamento que perro ou sendeiro, salvo seja! E como a vala está tão cheia que só a muito custo logram cobrir os corpos dos negros, El-Rei ordenou de se abrir outra, aí mais arriba, à qual deram o nome de Poço Novo. Meu amo cobre os narizes e a boca com um suadeiro, mas eu, que o não posso fazer, vou de ventas ao léu e arrecebo em plenos focinhos um fedor tão abominável que me revolve as tripas e me traz amargos à boca e tremeduras de sezões.

Mareado de morte, lanço-me em carreira desenfreada, sem atender aos brados do meu amo, e só paro lá bem no alto, à entrada da Vila Nova de Andrade Respiro por ambas as ventas, todo consolado, o ar perfumado destas hortas de semeadura, vinhas e olivais, agora pertença da família Atouguia

Vêem-se algumas casinhas, cerca da ermida de Santo António Pela porta de S. Roque, ou do CondestabreNotas:

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Published on October 11, 2010 07:43
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