Bárbara Aroucha's Blog, page 3

March 24, 2014

Memória



                Passei os meus únicos dois dedos da mão direita pela sua imagem capturada na fotografia esquecida. Sem aviso prévio, resolveu aparecer no meio das minhas coisas, andava eu a vasculhar entre os meus antigos cadernos e folhas soltas. Tanto a papelada como a foto há muito se encontravam perdidos da memória, guardando uma outra realidade, um passado. Na fotografia antiga aparecia acompanhado por uma jovem, uma namorada de poucos meses. Dois meses, talvez? No máximo três, e isto já a contar com o período em que a cortejava enamorado. Lembro-me pouco do que vivemos juntos, no entanto, recordo-me do preciso momento em que a foto foi tirada. É provável que a memória esteja estimulada pela fotografia, daí lembrar-me deste acontecimento. As fotografias servem, aliás, para isso mesmo: guardar momentos, instantes, a fim de os relembrar mais tarde.Enfim, voltando à rapariga. Era linda. Linda e de uma sensibilidade extrema, pois percebia as pessoas melhores que elas próprias, como se houvesse uma transparência apenas captada por ela. Olhando para trás, é possível que me tenha percebido melhor do que eu julgava. É difícil dizer; ambos bastante egocêntricos e, pior, com a tendência para sermos vítimas do mundo. Era óbvio que duas pessoas que desejavam ser os maiores sofredores, incompreendidos e perdidos, não poderiam funcionar bem juntas.                 Encontrávamo-nos no meu pequeno quarto de estudante, o qual tinha apenas um aspecto positivo: a paisagem. Sobre uma vegetação verde e descuidada, e com um horizonte vasto que aludia à serenidade e aos sonhos. Eu soube, assim que a conheci, que ela adoraria sentar-se à janela a comtemplar o esplendor exterior. E assim foi, de facto. Deixava-se ficar ali, imersa numa melancolia muito própria e privada. Por mais que desse volta à cabeça, como se costuma dizer, não era capaz de imaginar o que realmente pensava, perita em adoptar feições neutras, as quais me levavam a conjurar se não estaria simplesmente vazia. Certo dia, agora me recordo, acusei-a disso mesmo, pondo um ponto final na relação. Ela parecia estar à espera de tal desfecho. Calçou os sapatos, os quais deixava num canto assim que entrava, pegou na mala e saiu, atirando-me com um “tchau” seco. Não sei o que pensei de tal atitude, mas agora vejo que ela tinha uma vantagem óbvia sobre mim. Enquanto eu falava abertamente dos meus complexos, renegando-a à incompreensão, ela mantinha aquele ar oco e distante.                 Refilou um pouco por eu querer tirar a fotografia, mas cedeu e ainda fez aquele sorriso que a câmara captou tão bem. Por mim, teria tirado muitas mais. Custava-lhe ver-se a si mesma e mostrava desejo em ser bonita. Contudo, ela era bonita.                Está certo, não se trata do tipo de beleza a que estamos habituados, uma beleza fácil. As suas feições miúdas transmitiam-me a sensação de estar perante uma jovem mulher cuja beleza pertencia a outros tempos. Isto é, perdera-se nos cálculos – aliás, ela não tinha jeito algum para a matemática – e nascera anos depois do seu período histórico. Isto, claro, era apenas a minha percepção pessoal em relação ao seu aspecto físico. Eu estava tão convicto desta teoria, assim como da sua beleza, que ficava incomodado quando resolvia enumerar os pontos que mudaria para se tornar bonita. Na verdade, ela nem era de se queixar muito, visto saber que incomodava os outros quando se punha nisso. Acredito que, se me atrevesse a perguntar-lhe o que é que ela achava que estava mal em si, receberia uma longa lista de defeitos. Mas ela era de facto bela! Quanto mais a fitava naquela foto velha, mais certeza tinha.                 Através desta imagem recordo-me também de todas as suas imperfeições. Sim, tinha uma série delas, como bem se vê aqui na fotografia. Todavia, era esse conjunto de pormenores imperfeitos, que ela tanto desprezava, situados em locais estratégicos, que tornava o seu rosto invulgarmente belo. Assim como uma daquelas obras de arte que apenas tocam certas pessoas, talvez por terem uma perspicácia especial em si. Enruguei a testa ao tentar imaginá-la numa relação com um homem dotado desta capacidade artística. Orgulhar-se-ia de estar na sua companhia, tal como um detentor e verdadeiro apreciador de arte, e sentiria uma leve – ou forte – superioridade em relação aos incapazes de captar tal singularidade.                 Bem, não estou aqui a falar de uma peça decorativa, mas sim de uma mulher. Se fosse ainda senhora de uma personalidade melancólica e solitária, não seria fácil conviver com ela. Contudo, tal como eu mudei - orgulho-me de ter alcançado um outro nível de maturidade, a qual me permite apreciar diversas perspectivas sobre a vida e os outros -, ela também poderá ter crescido e transformado numa outra pessoa. Imaginei-a madura e distinta, com o seu quê de inocência a condizer com as suas feições. Agradava-me. Arrumei de novo a foto, colocando-a mais uma vez no esquecimento, e esperei voltar a vê-la, num dia futuro, quando aqueles dois jovens semi-apaixonados tenham sido substituídos quase por completo.
 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on March 24, 2014 10:44

March 14, 2014

Atemporal



Atravessou a areia fina, até chegar à beira-mar, onde a água salgada e fria atreve-se a envolver os seus pés descalços. Ali, ansiava por continuar, apesar de tal procedimento arrasar com o que presumimos ser real e limitado. Desejava avançar e chegar ao outro lado, caminhando sobre a água com a confiança de quem caminha em chão sólido, até alcançar as terras longínquas. E aí, já cansada, mas determinada, percorrer a terra desconhecida e extasiante que a espera. Por fim, chegar, cansada e contente, aos braços quentes e seguros, fortes e ternos do destino. Inspirando a brisa da maré, fechou os olhos e viu, na sua mente, a qual é a porta que une mundos, a sua vida, num futuro presente.
 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on March 14, 2014 10:51

March 8, 2014

O Príncipe



Josh estava grato por poder refugiar-se naquela estalagem ruidosa e de atmosfera bafienta a suor e álcool, mas quente, ao contrário do vento gelado e da neve acumulada que lhe dificultava os passos. Há muito que andava, puxando o cavalo pelas rédeas atrás de si quando este começou a tropeçar, fraco. A estima pelo garanhão era demasiada para o deixar para trás. Agradeceu o homem do estábulo e pagou-o o suficiente para assegurar que Renegado era bem tratado. Assim que entrou no espaço atulhado, sacudiu a neve das roupas e evitou os olhares descontentes por ter trazido consigo um pouco do frio exterior. Pendurou o casaco e gorro húmidos perto da lareira e dirigiu-se ao balcão.                Haviam dois homens, ambos de cintura ampla e faces rosadas, separados por vários anos. Josh supôs que fossem pai e filho, donos daquele pequeno negócio, no meio de uma estrada solitária cuja presença de um estabelecimento, estivesse frio ou agradável lá fora, era de paragem quase que obrigatória. Pai e filho deviam viver bem. O mais novo atendeu-o, com um olhar que percorreu as faces do cliente o mais rápido que conseguiu, avaliando o seu aspecto repulsivo. Josh estava habituado a tais olhares, contudo desejou ter sido atendido pelo homem mais velho, pois decerto os anos a mais de experiência o haviam habituado às mais diversas pessoas. Se fosse outro, Josh poderia ter armado confusão só devido àquele olhar de desagrado.                Sabia que não entrava nos padrões de beleza. A sua estatura baixa e magra indicava, erroneamente, um homem fraco; o nariz adunco era o primeiro traço onde qualquer olhar se detinha, num momento de confusa surpresa; os dentes, demasiado grandes para se manterem dentro da boca, alargavam o maxilar e espreitavam o exterior. Dois deles, bem no centro, tinham sido perdidos numa sangrenta luta com o seu pai, deixando apenas um solitário e feio dente à mostra. A barba áspera estava já pintalgada com alguns pelos brancos, a pele avermelhada dava-lhe um ar de estrangeiro em qualquer ponto do reino, e os olhos, o único gene bom que lhe chegara, eram de um azul puro. Estes pareciam desafiar as trevas da sua aparência, um indício da sua bondosa alma.                 Entre o preconceito geral, as pessoas dirigiam-se-lhe como se dirigiam a um comum camponês analfabeto. Todavia, tal origem estava muito longe da verdade, pois Josh era, na realidade, um príncipe. Aliás, não um príncipe qualquer, daqueles que ganham o título através de regalias monetárias, mas o primogénito do Rei das Terras Baixas. Devido à sua posição de mais velho, Josh deveria ser herdeiro do trono, segundo a tradição. No entanto, a repugnância que provocava na sua própria mãe, desde bebé, facto que dava certa liberdade à população de o intitularem como Josh, o Amaldiçoado, ou ainda, o Horrível, fez com que se contornasse a lei, em caso excepcional. E, assim, o irmão mais novo, esse com os atributos dignos de um rei, passou a herdeiro.                 A mágoa e humilhação, por mais habituado que estivesse àquela existência de renegação, instalara-se no seu peito, em desenvolvimento crónico. Todavia, o que é a beleza? Questionava-se muito sobre a subjectividade deste conceito, acabando sempre por se sentir melancólico, pois, por mais que tentasse diminuir o impacto da beleza, não era capaz de o fazer. Ele próprio deixava os olhos prolongarem-se nas raparigas bonitas que cruzavam o seu caminho, cuja imaginação aproveitava para saborear uma vida que nunca teria. Para além da percepção do príncipe feio, contudo, pelo menos para uma jovem, sentada num grupo que ocupava duas mesas no canto da estalagem, Josh era belo. Através de que olhos ela o via era impossível saber, já que, se perguntássemos a qualquer outra pessoa que se encontrasse no estabelecimento, Josh seria descrito como um homem hediondo. Mas assim acontece no amor.                 Existe algo mais profundo do que a beleza. Algo que se sente apenas, e ultrapassa o plano físico. Muitos o sentem, mas poucos o compreendem. E, daqueles que o compreendem, são mais os que rejeitam tal sentimento, assustados por este não ser compatível com a imagem da beleza a que estão habituados. Esta rapariga, Ana, simples e cujo semblante suave se transformava num agradável e familiar rosto sempre que oferecia um sorriso, era das raras que estava disposta a deixar-se levar por esta força invisível. Foi por isso que sussurrou à amiga do lado, ocupada a namoriscar um rapaz de ombros largos e vocabulário estreito, a presença daquele príncipe disfarçado. A outra, num esgar desconfiado, disse-lhe que não sabia o que via ela naquele homem baixo e feio, mas, se desejava conhecê-lo, mais valia agir.                - Faz o seguinte, vais até ao balcão e pedes três jarros de vinho. Quando quiseres trazer os jarros ao mesmo tempo para a mesa, vais ficar atrapalhada por só teres duas delicadas mãos, obviamente. Se ele for um cavalheiro, vai oferecer ajuda; caso contrário, querida, é porque nem vale a pena ralares-te com o estupor.                - E depois? – Perguntou intimidada Ana.                - Depois, convido-o a juntar-se a nós e tens o pretexto perfeito para meter conversa! Agora vai, minha doida.                Ana seguiu o conselho da amiga e, colocando-se perto do homem, o qual tinha uma bebida fumegante entre as mãos, fez o seu pedido. Espreitou-o de faces rosadas e sorriu. Ele baixou os olhos, carrancudo, o que deixou a rapariga desanimada e insegura em relação ao sucesso do plano. No entanto, assim que se viu atrapalhada em agarrar os três jarros de vinho escuro, Josh lançou-se para a ajudar, tal como qualquer príncipe educado faria. O gesto levou a jovem corar e atrapalhar a voz ao agradecer a ajuda.                Pouco de pois, hesitante, o homem de rosto rude aceitou o convite para se juntar ao grupo, que bebia e cantava alegre. Eram mais barulhentos de que Josh estava habituado, visto ser raro ser bem-vindo em qualquer grupo e, quando tal acontecia, era para ser alvo de perguntas indecorosas, ou mesmo ordinárias. Assim, viu-se um pouco desconcertado perante a simplicidade alegre da rapariga que o tratava como qualquer outro. Sentiu-se, por momentos, normal e com o pensamento longe da sua aparência grotesca. Tal situação, no entanto, deixava-o em certo desconforto, o qual era disfarçado pelos sorrisos discretos, impossíveis de evitar, que dirigia a Ana.                Com o corpo quente e a alma leve, desculpou-se, horas mais tarde, para se ir deitar. Pretendia acordar cedo, pois tinha ainda uma longa jornada pela frente. A desilusão que notou no olhar da bonita jovem, que o abençoara com a sua companhia, provocou um aperto no seu peito. Aquele aperto era, sem dúvida, a comunicação do solitário coração, avisando-o que Ana era a mulher que desejava. Não só o seu coração, mas todo o seu corpo físico, percebeu então, queria-a. Pelo contrário, a sua mente, habituada a desconfiar e condicionada a acreditar que ele era um príncipe abandonado, um corpo vil, um rosto para nunca ser beijado, já que nem a sua mãe, Rainha das Terras Baixas, alguma vez fora capaz, convenceu-o a retirar-se. Josh assim o fez, de sorriso apagado. Contudo, talvez voltasse, um dia não muito longínquo, e encontrasse a bondosa Ana. E disse-lho.                 Na manhã seguinte, não tão cedo quanto Josh gostaria, devido ao excesso de vinho da noite passada, o príncipe viu o grupo jovial a prepararem a caravana, cheios de energia. Até parecia que não tinham estado com ele, mergulhados em álcool, canções e danças sedutoras. Ao preparar Renegado para a viagem, visivelmente recuperado, viu Ana acenar ao longe. Ele aproximou-se e achou-a ainda mais bonita do que a noite anterior. Claro que, avisava-o a mente, essa súbita formosura era influência de tal sentimento que lhe aconchegava o coração, pois ela era uma jovem vulgar e aprazível, longe das damas delicadas da corte a que se acostumara desde criança. A mulher provocou o príncipe anónimo a acompanhá-los, justificando-se com o partilharem uma viagem mais segura e agradável. Animado com tal proposta, Josh estava prestes a ceder quando o acontecimento seguinte corroborou a força dos seus pensamentos usuais.                - Bolas! – Exclamou um dos companheiros de viagem, alto e esguio. – Pensava que era da bebedeira, mas afinal és mesmo feio!                Ana lançou-lhe um olhar furioso, ignorado pelo outro, que continuou:                - Diz-me lá, como é que arranjas trabalho com essa cara? Não deve ser fácil. Mas, se quiseres juntar-te a nós, estás à vontade, ainda afastas os ogres do caminho!                E, rebentando em gargalhadas sonoras, afastou-se e deixou dois enamorados numa vergonha desconfortável. Josh quebrou o silêncio, de cabeça inclinada em despedida graciosa e real:                - Obrigada pelo convite, Ana. Mas estou habituado a cavalgar sozinho e mais depressa do que as caravanas me permitiriam.                 Sem a olhar, humilhado, não tanto pelo gozo do homem, pois vivia momentos desses com regularidade, mas mais por ter ousado pensar ser merecedor da companhia de uma jovem como Ana, montou o cavalo e pôs-se a galope. Não olhou para trás uma única vez, envolto numa submissão indigna a um membro da realeza. Caso o fizesse, caso tivesse renunciado ao orgulho ferido e lançado um último olhar, deparar-se-ia com uma Ana de olhos lacrimejantes e leria neles a súplica silenciosa para que voltasse. Apesar de ser possuidor de uma força capaz de derrotar todos os homens da caravana ao mesmo tempo, tinha um espírito fraco. Não que esta fraqueza fosse negativa, como outras fraquezas o são, pois apesar de ser a provocadora da sua partida absoluta, também poderia tê-lo levado a voltar para o lado de Ana, caso cedesse à vontade de a olhar uma última vez.
 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on March 08, 2014 05:53

March 4, 2014

BUM!        &nbs...



BUM!                O tiro fez-se ouvir pelo campo aberto, o eco nos ouvidos dos presentes dispersou os pássaros assustados e susteve as respirações, ao mesmo tempo que reivindicava a atenção. Um tiro em pleno dia de sol, entre as flores rebeldes e vistosas da Primavera, entre os passeios lânguidos que surgem depois do Inverno. Um cão ladrou, seguido por outro, os primeiros a reagirem ao susto, dando o alerta aflito de que algo estava fora das normas rotineiras. Os transeuntes, assim que recuperaram do choque, olharam para os seus, de coração num aperto que espera o pior, para confirmarem se tudo continuava bem. Soltam o ar, aliviados por terem as suas vidas intactas, pois, embora nenhum dos presentes alguma vez tivesse presenciado o som de um tiro real, sabiam do que se tratava. Era inconfundível: seco e explosivo, assustador.                 No meio do alívio que surgia tão depressa quanto o tiro, Pedro sentiu o susto transformar-se em medo, o qual, em breve, seria substituído por uma tristeza que lhe esmagaria o peito, sufocando-o nas noites curtas de Verão. Observava com carinho a filha de 9 anos, que corria alegre pelo campo, encantada com as cores vivas que brotavam a seus pés. O vestido novo tinha pássaros azuis bordados no fundo branco e parecia implorar ao sol que os privilegiasse com o calor há meses esquecido. O estouro repentino levou a menina ligeira a parar, de olhos postos no chão, enquanto a maioria das pessoas olhava para o céu, em busca da fonte de tal impacto. O pai percebeu imediatamente que algo não estava bem. E, sem necessitar de ver a mancha vermelha que crescia no vestido novo, correu na direcção da menina loira entre as flores amarelas. O nome fugiu-lhe dos lábios, no profundo grito da tragédia, captando a atenção dos estranhos.                 O corpo frágil cambaleou e caiu. Assim que embateu na terra húmida, Pedro ajoelhou-se a seu lado e puxou-a para os seus braços desesperados. Os olhos sem vida focavam o céu, mas nada viam, e o rosto suave recebia as lágrimas ferozes daquele que deixava para trás. O sangue quente tingia as flores e manchava as mãos que a seguravam, na tentativa vã de a conservar à vida. O destino decidira. A aflição dolorosa daquele pai era a tranquilização sombria dos restantes.
 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on March 04, 2014 06:45

February 26, 2014

conto criado no workshop de escrita criativa :)



                Soraia. Detestava aquele nome quanto se detestava a si. Ou, então, apenas não gostava do nome por este estar associado a si. Não interessava muito, pensou ao fitar a sua imagem reflectida no espelho manchado. Pegou nas molas e procurou domar o cabelo, comprido e farto. Demasiado comprido. Teve a vontade súbita de agarrar numa tesoura e o cortar de uma só vez, mas claro que não o fez. A razão dizia que, se o quisesse cortar, devia dirigir-se a um cabeleireiro, estabelecimento próprio para tais aventuras. Maldita razão; maldita lógica. A sua vida era uma sucessão de eventos desprovidos de qualquer lógica, porque haveria ela, então, de se preocupar em a estabelecer nestes pequenos detalhes? Saiu irritada da casa de banho, passando por cima do enorme cão que se encontrava a ressonar preguiçosamente.                Arrumou, em gestos apressados, o que necessitava para a entrevista daquela tarde, ansiosa para que tudo corresse bem. Embora sem grande fé. Bateu à porta do quarto em frente ao seu, abrindo-a de seguida de forma cuidadosa.                - Pai, vou sair. Não te esqueças de tomar a medicação.                 O vulto magro acenou, murmurando uma despedida incompreensível para os ouvidos desabituados. Soraia voltou a fechar a porta, acariciou o velho cão, cujo pêlo bronze se encontrava salpicado de manchas brancas, adequadas à idade. O animal levantou a cabeça para olhar a dona, que vestia o blusão à porta de casa, como era habitual. Tinha olhos cansados, um pouco baços, enfeitados por círculos brancos. Assim que a porta se fechou e a jovem elegante desapareceu, o cão suspirou e voltou a adormecer.                 Já tinha percorrido uma boa parte do caminho, absorta em pensamentos, quando se apercebeu da realidade à sua volta. Estacou, abrupta. Voltava a acontecer. Desta vez o cenário era mais pacífico do que o costume, o que agradeceu. Todavia, perguntou-se quanto tempo demoraria a voltar ao seu mundo, pois não queria mesmo perder a entrevista. Tinha um pai doente e uma mãe desaparecida, para não falar do cão. Era urgente obter um rendimento extra para aguentar a casa e as despesas do médico.                À sua volta as pessoas tinham desaparecido, assim como os edifícios e os transportes. Sentiu os pés frios e olhou para baixo: encontrava-se descalça, perfeitamente estável sobre a água. De repente sentiu-se insegura, com medo de se mexer e afundar. Ela não sabia nadar. Nunca fora uma criança dada a aventuras e riscos, já bastante ocupada a lidar com situações espontâneas que mais ninguém parecia partilhar. A tremer, deu um passo em frente, seguido por outro, e outro mais confiante ao ver-se capaz de andar provocando apenas um suave vibrar nas águas.                 Depressa percebeu que não valia a pena continuar, pois não parecia haver destino, somente um vasto horizonte límpido. Parou, tentando perceber o que poderia tirar daquela situação. Olhou para a água e viu estranhos seres a deslizarem por baixo de si, os quais mexiam enérgicos tentáculos curtos e escuros. Olhou-os atenta; o que quereriam eles? Normalmente existia uma mensagem ou um objectivo naquelas viagens sobrenaturais. Os seres pareciam nadar para trás de si, tocando levemente na superfície da água, roçando os pés molhados de Soraia, como se a provocassem a segui-los. Foi então que a jovem viu a sua casa. No meio do nada, a sua pequena casa branca e vulgar continuava presente. Correu de volta, agora destemida, mas com um aperto urgente no peito. O cão pesado estava sentado à porta do quarto do pai. Ela entrou, de mãos trémulas, sabendo, por instinto, o que acontecera.                Seguida pelo labrador, sentou-se à beira da cama. O pai dava os últimos suspiros. Estava frio ali dentro. Não que lhe fizesse diferença, provavelmente o homem já não era capaz de o sentir. A filha beijou-lhe a testa, na sua despedida, e coçou as orelhas do velho companheiro de quatro patas, o qual se aproximara do corpo sem vida, para também ele prestar um último adeus.
 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on February 26, 2014 03:42

February 20, 2014

Perdição na noite (mulheres que matam)



                Estava feito. Não havia volta a dar. Era impossível voltar atrás. Agora, tinha de manter a calma e apagar os seus vestígios. Manter a calma! Como se isso fosse possível. Não, claro que não se encontrava calma: as mãos tremiam-lhe, o que dificultava as tarefas urgentes, e o coração não podia bater mais depressa. O silêncio da rua adormecida tornava todos os movimentos naquele escritório ensurdecedores. Tinha a sensação que cada passo, cada encontrão atrapalhado, cada respiração ofegante a denunciavam. Pegou em todos os papéis que a incriminavam, as cartas de chantagem dele, e as cartas de súplica dela. O canalha estava a pedi-las, não havia outra hipótese. Ela bem que insistira para que ele a libertasse daquela vida de escrava, um fantoche à sua mercê durante anos. Desde que ela cometera o terrível erro de se entregar ao amor de outra mulher.                 Tinha já enfiado os papéis na sua mala de mão, quando reparou, no ambiente escuro, as manchas de sangue que deixara na secretária. Olhou as suas mãos enluvadas para confirmar se realmente tinha sido ela, e viu-as banhadas em sangue. Teve de se esforçar para não gritar de desespero, gemendo apenas, sentindo-se enjoada e assustada. As lágrimas rebentaram, por fim. Contudo, logo inspirou e expirou devagar, para se acalmar, para se focar. O que está feito, está feito, disse para si mesma. Era necessário concentrar-se e eliminar o seu rasto. Primeiro, roubar uns documentos ao acaso, a fim de levar a polícia a analisar aquelas marcas de sangue como um roubo propositado. Ninguém sabia da chantagem, portanto era preferível roubar qualquer coisa de tangível. Enfiou na mala, para além dos documentos em cima da mesa, objectos que lhe pareciam valiosos: uma caneta, um pisa papéis com diamantes, uns botões de punho guardados numa das gavetas…                Preparava-se para sair pela passagem secreta que dava à cozinha, quando se deteve a olhar o cadáver ensanguentado. Tinha atacado o homem de trás, enfiando uma faca bem no centro das costas, o sangue manchando a camisa branca de imediato. O grunhido de choque e dor fora mais alto do que ela esperara, contudo não pareceu acordar ninguém da casa. O corpo caíra para a frente, tropeçando no banco que servia para descansar os pés, e acabara de traseiro espetado. Teve a súbita vontade de lhe tirar as calças e coloca-lo numa posição ainda mais vergonhosa, mas resolveu que seria uma grande falta de classe, algo que ela ainda tinha, apesar de tudo. No entanto, pensou, que o canalha do chantagista merecia, merecia. Estava fora de questão. Tinha de sair dali o mais rápido possível.                 A mulher entrou pela porta escondida na estante e fechou-a firmemente atrás de si. O túnel era escuro e frio, com um cheiro a humidade intenso. Agradava-lhe aquele cheiro, que se misturava com o aroma acre do sangue, o que, para sua admiração, também a agradava. Caminhou pela escuridão, apoiada nas paredes para se orientar, as luvas de sangue deixando um rasto atrás de si. Já não se preocupava em deixar sinais, ninguém sabia daquela passagem. Ele próprio o dissera, numa das noites em que a convidara lá a casa, em horas discretas e silenciosas, a fim de receber carinho de, como ele gostava de colocar, uma mulher que só amava mulheres. Sentiu o estômago revoltar-se com a recordação. Nunca mais. Nunca mais! Dera-lhe dinheiro, dera-lhe satisfação física e doentia, dera-lhe a sua sanidade.                 Ao chegar à cozinha começou a notar que um formigueiro particular se formava dentro de si, o qual precisava de se manifestar, de sair. Era um sentimento confuso, pois já não estava tão assustada ao sair pela porta aberta dos criados, com cuidado para não deixar marcas do sangue, salpicado pelo vestido preto e longo. Correu, na noite fria, ansiosa. Àquela hora tinha certeza que ninguém daria por ela e, caso alguém a visse, não seria mais que um vulto negro, envolto num véu sombrio. Chegaria a casa num instante, através do parque escuro, por entre as árvores. A meio do percurso, uma gargalhada histérica ecoou, vinda bem do seu âmago. Não tinha vontade de chorar, não tinha medo, nem culpa ou arrependimento. Experimentava uma satisfação mórbida e única, fruto do culminar do seu êxtase. Queria calar-se, manter-se invisível na escuridão, mas o riso teimava em acordar toda a cidade. O guarda-nocturno do parque apareceu à frente da mulher louca, segundos depois de a ouvir. Sob o foco da lanterna, a sua palidez contrastava com as negras manchas que a salpicavam, na cara, no vestido, nas luvas. A boca escancarada dando livre passagem à gargalhada arrepiante.                - Matei-o! Eu matei-o!                Estava feito. Não havia volta a dar. Ele roubara-lhe a sanidade.
 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on February 20, 2014 07:39

February 17, 2014

Para desopilar deste estado receoso e apático em que se ...



Para desopilar deste estado receoso e apático em que se encontrava há já vários meses, a chegar ao limite que transforma os dias em ano, Tomás decidiu agir. Não é coisa fácil, agir, quando nos encontramos absortos pelas vastas percepções manipuladas pelo medo, as quais tendem a ser mais convictas do que a promessa de uma vida melhor. A razão por ter dado o salto da inércia para a acção, praticamente da noite para o dia, foi um acontecimento subtil, embora marcante, no seu quotidiano. Como narradora, posso dizer-vos que este pequeno acontecimento teria passado despercebido, caso não fosse apenas mais um entre tantos similares; muitos o precederam até Tomás resolver mudar de táctica. Portanto, meus caros leitores, caso se preocupem em não experienciarem um momento crucial para vos dar a volta, fazendo-vos dar a volta à vida, podem relaxar, pois a vida encarregar-se-á de vos colocar em tais momentos. De qualquer forma, já os estão a viver. Apenas necessitam de uma boa dose de atenção.Voltando a Tomás. Até então tinha poucas certezas de ser capaz de viver como os comuns mortais, angustiado pelas poucas opções que conhecia e temendo ser infeliz, embora vivesse já numa tristeza constante. Eu percebo, e aposto que vocês também: há sempre a hipótese de cairmos na armadilha invisível da sociedade e colocarmo-nos a caminho da infelicidade. Todavia, e chamem-me simplesmente uma narradora dada a clichés, se quiserem, mas acho que ficar na mesma também não é solução. Talvez, por algum tempo, se safem, como Tomás, e possas sobreviver neste limbo. Não por muito tempo, espero.O que Tomás aprendeu com este recente acontecimento, numa mensagem escondida para além da dor que lhe esmagou o peito, foi a importância de ter um objectivo. Estava quase sem rumo, perplexo entre as suas ideias demasiado gerais para as conseguir perceber, até que aquilo, isto é, o tal momento, o acordou. Assim, passou das melancólicas dúvidas, para um fervor que acelerou a circulação sanguínea. Algumas pessoas chamam-lhe inspiração. Agrada-me. E agrada-me também observar Tomás a avançar na vida, com a intenção de chegar a determinado lugar, a partilhar a sua vida, resolvido a ser feliz, à sua maneira. E eu, enquanto narradora óbvia e metediça, eu instalo-me aqui, deliciada com a evolução independente das minhas personagens, assim como da minha própria vida.      
(a partir de um exercício para desbloquear a escrita)
 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on February 17, 2014 08:25

February 9, 2014

Tempestades e Desconhecidos



                O temporal parecia estar no auge. Marta apagou a luz do quarto e abriu o estore para dar uma espreitadela para a noite escura e tenebrosa. Quem lhe dera que parasse. A rua estava completamente deserta e só se ouvia o vento a assobiar entre as janelas, a arrastar o lixo que as pessoas teimosamente deixavam caído pelo chão; a chuva que caía intensa como se alguém tivesse resolvido abrir o chuveiro na potência máxima; e as ocasionais e assustadoras trovoadas. Arrepiada, foi até à cozinha a fim de preparar alguma bebida quente e torradas para se aquecer. Desejava que os pais estivessem em casa numa noite tão sombria. Tinham ganho uma estadia de três dias para celebrarem o dia de São Valentim e, apesar de ambos hesitarem em deixar a filha sozinha, ela lá os convenceu.                - Tenho 20 anos, sei perfeitamente cuidar de mim. Além do mais, aproveito para estudar.                 - O problema não é esse. Calha no fim-de-semana e custa-nos deixar-te sozinha, sem nada para fazer. – A mãe estava visivelmente frustrada com a situação, queria muito ir, mas sentia o remorso de deixar a filha sozinha durante três dias.                - Ora! Estudo. Além do mais, vou telefonar à Sara para vir cá a casa estudar comigo, no Sábado.                Aquela informação deixou os pais mais confortáveis.                - Se ela quiser, pode cá ficar a dormir. – A mãe, outra vez.                - Está bem. Agora, vão lá arrumar as coisas para não chegarem muito tarde. Está uma chuva horrível.                 Os pais partiram naquela mesma noite, debaixo de um tempo péssimo para longas viagens. No dia seguinte, no entanto, o sol parecia ter afugentado as nuvens em nome de todos os casais que comemoravam o seu amor naquela sexta-feira. Marta sentia-se agradecida, pois ter de ficar em casa sozinha a estudar já era bastante aborrecido, quanto mais ter de o fazer acompanhada pela chuva. Infelizmente, ainda antes de chegar a casa, ao final da tarde, já as nuvens tinham ganho terreno e expulsavam o sol. A ameaça era incontestável; lutando contra o vento, apressou o passo na tentativa de chegar a casa antes de a chuva começar a cair. Conseguiu essa pequena vitória, vendo a tempestade culminar uns vinte minutos depois de ter entrado em casa.                 Na cozinha, à espera que as torradas saltassem enquanto mexia, com uma pequena colher, o chocolate quente na chávena, observava a pequena janela que dava para o pátio. Constatou que as cortinas leves e de um material muito fino, não lhe davam nem um décimo da sensação de conforto e segurança como os estores presentes nas restantes janelas da casa. Teria de dizer à mãe. Aproximou-se para espreitar lá para fora rapidamente, mas não conseguiu ver nada, pois a luz forte da cozinha reflectia a sua própria imagem no vidro. Sentindo o mesmo arrepio de há instantes, afastou-se para barrar as torradas quentes que acabavam de saltar.                 De pé, encostada ao balcão e a mastigar, ponderou se havia de ligar a televisão. Aquele silêncio anormal em casa, juntamente com a tempestade isoladora, perturbava-a, por muito que não quisesse admiti-lo. Em contrapartida, sentia a cabeça estafada por estudar o dia inteiro na Universidade. Só a ideia do barulho incessante e característico, composto com o intuito de cativar a atenção dos espectadores, era desagradável. Antes de tomar a decisão, a campainha da porta soou. A jovem parou de mastigar, franzindo o sobrolho. Num relance rápido ao relógio pendurado perto do fogão, questionou-se quem poderia ser àquela hora.                 Com movimentos inseguros, espreitou da cozinha e amaldiçoou-se por ter deixado a luz do hall da entrada acesa. Esperou, mastigando o pedaço de torrada cuidadosamente, como se receasse que quem quer que fosse a ouvisse. A campainha tocou mais uma vez, arruinando a hipótese de terem ido embora. Deixou os chinelos a meio caminho e encaminhou-se para a porta de entrada, os seus pés silenciosos. Uma trovoada; e, acto contínuo, mais dois toques, desta vez insistentes, revelando a impaciência do visitante. Prendeu a respiração de forma inconsciente e espreitou pelo pequeno óculo, em bicos dos pés. Do outro lado encontravam-se dois homens altos. O da frente, aparentemente magro, trazia vestido um casaco comprido e um chapéu de feltro, o qual parecia fora de moda, que lhe ocultava as faces numa sombra sinistra; atrás dele estava um homem incrivelmente gordo, de gorro enfiado, blusão impermeável e de boca aberta, revelando a sua dificuldade em respirar. Ambos completamente encharcados.                Marta engoliu em seco antes de dar alguns passos atrás, arrependendo-se de não ter trancado a porta ao chegar. Esperava que se fossem embora e, após um período sem ouvir nada, sentiu-se relaxar. Preparava-se para se aproximar e fechar a porta à chave quando mais quatro toques soaram, sucessivos, seguindo-se de um abanar da porta que provocou um arregalar de olhos da parte da rapariga. Ouviu murmúrios incompreensíveis e passos que se afastavam. O coração batia-lhe no peito cheio de adrenalina e apenas se acalmou ao verificar que ninguém se encontrava do outro lado. Expirou o excessivo ar retido nos pulmões e, de mãos trémulas, trancou a porta. Que susto, pensou.                De volta à cozinha, a rapariga sentiu uma fugaz irritação por ter as torradas frias. Abriu o frigorífico; não encontrando nada que pudesse preparar rapidamente, voltou a colocar novas fatias de pão na torradeira. Sentou-se à mesa com a chávena, cujo líquido se encontrava ainda morno. Perdeu-se em pensamentos solitários por breves momentos, até que as torradas ficaram prontas, sobressaltando-a com o estalido comum. Ao barrar o pão com doce de frutos vermelhos, pôs-se à escuta da tempestade, que requeria atenção ao trovejar. As gotas grossas ecoavam contra o chão e a janela e fundiam-se com o raspar da faca no pão torrado e estaladiço. Nada perspicaz para música, parecia captar um certo ritmo naqueles ruídos naturais, surpreendendo-se. Voltou para a mesa e trincou a primeira torrada, ao mesmo tempo que um relâmpago iluminava as cortinas. Pelo canto do olho ficou com a impressão de ver um vulto lá fora e, mastigando devagar, fitou a janela do seu lugar, sem nada distinguir. O trovão, sempre atrasado, fez-se ouvir e Marta voltou a sua atenção para as deliciosas torradas.                Ainda a caminho do fim da primeira torrada, um som diferente da chuva captou a sua atenção. Num primeiro momento, não foi capaz de identificar o som, o qual parecia algo a bater ali perto, muito perto. Todavia, uma segunda sucessão do toc toc foi o suficiente para a sua mente associar o som ao seu significado: alguém estava a bater na janela. Como para o confirmar, uma descarga eléctrica iluminou as cortinas de tecido leve, revelando duas sombras muito juntas. Seriam os mesmos homens de há pouco? Tinham de ser. Ouviu uma voz chamar, mas o trovão engoliu-a e Marta não conseguiu perceber. Levantou-se, assustada e encostando-se ao frigorífico atrás de si, ao mesmo tempo que o eco da tempestade vibrava, as torradas esquecidas no prato.Toc, toc, toc. Toc, toc, toc.                   - Menina?!                A menina parecia colada ao frigorífico, surda pelo batimento desgovernado do seu próprio coração.                - Menina! Abra a janela! Está uma chuva que não se pode, porra!                Sem saber muito bem o que fazer, nem o que pensar, Marta pegou numa das facas afiadas cuja função era cortar carne. Engolindo em seco um pedaço de pão que parecia ter ficado meio esquecido no início da garganta, a jovem mulher dirigiu-se à janela. O homem continuava a chamar. Assim que puxou a cortina para o lado, deparou-se com duas caras franzidas praticamente coladas ao vidro, espreitando. A mais magra, de chapéu antigo, abriu-se num “Ah!” assim que viu Marta, revelando-se ainda mais assustadora, o que levou a rapariga a dar um passo para trás, num impulso instintivo. O homem continuava a pedir para que abrisse a janela, gesticulando para a pequena fechadura. Vendo que a outra não se decidia a fazê-lo, o seu esgar transformou-se numa máscara zangada e, de um momento para o outro, começou a abanar o vidro de forma violenta, batendo, desta vez, de punho fechado.                Aquela reacção levou Marta a tomar uma decisão: fugir. O seu plano, formado no calor do momento, era pegar no telemóvel, algures no seu quarto, e correr para a rua o mais rápido possível. Eles demorariam a dar a volta ao prédio – já agora, como tinham entrado no pátio fechado? – E a rapariga podia encontrar algum estabelecimento aberto facilmente. Aí, telefonaria aos seus pais para pedir ajuda. Não tinha ainda saído do quarto e já ouvia o estilhaçar da janela a partir-se. Mudanças de planos; sairia mesmo pela janela do quarto. Soltou um grito de frustração quando a janela teimava em não abrir, perra há meses, mas sempre colocada no fim da lista de arranjos do pai. No preciso momento em que sentiu o vento frio e molhado a bater-lhe na cara, aberta a janela, uma mão firme agarrou-lhe o braço e puxou-a para dentro.                - Eh, lá, menina! Acalme-se que nós não a vamos magoar. – Apesar da voz do homem alto e magro soar segura e não mostrar qualquer ameaça, a jovem lutou contra o seu aperto para tentar agarrar a faca pousada na cama, enquanto ele a conduzia de volta para a cozinha.                - Largue-me, por favor! – Implorou a mulher.                - Pronto, está bem.                 Para sua surpresa, Marta sentiu que o homem a soltava e recuava, mas logo viu a presença magnificente do gordo a barrar a passagem. Perguntou, assustada, olhando um e outro alternadamente:                - O que é que querem?                O magro, que parecia exercer sempre a parte da fala, respondeu-lhe ao mesmo tempo que despia a gabardina comprida e a pousava nas costas de uma cadeira, pingando para o chão.                 - Bem, o que nós não queríamos, efectivamente, era ter partido o vidro; já viu o que nos obrigou a fazer, menina. Não percebo como dois canalizadores, pois viemos arranjar os seus canos, de ar tão simpático podem assustá-la assim tanto.                 Simpáticos não pareciam nada, muito pelo contrário, constatou ao olhar os homens encharcados e anormalmente altos, eram até bastante feios, a roçar o susto. Todavia, guardou as suas observações pessoais e apenas rematou com os factos, ainda assustada.                - Os canalizadores não forçam a entrada, muito menos partem propriedade privada para tal.                - Ela tem razão, oh chefe. – O gigante barrigudo falou, com a sua voz profunda que encaixava na perfeição à sua aparência.                - Hm. Pois, bem. Se calhar não somos canalizadores, na verdade. – Pegou no prato e trincou a torrada que estava quase no fim, oferecendo a outra ao companheiro com um esgar. – Está fria. No entanto, menina, o nosso trabalho envolve mexer nos canos que vão dar a esta casa.                - Isto não me parece nada bem. – Incrédula com a atitude bizarra daqueles dois, Marta começou a acreditar que, realmente, eram inofensivos. Pelo menos em relação a ela.                 Sem se preocupar com explicações, o magro retirou um aparelho estranho, que piscava uma luz azul, da mala feminina que trazia a tira-colo, ocultada quando vestia a gabardina. A luz piscava enquanto ele fazia o estranho aparelho deslizar pelo ar, até que o piscar se tornou numa luz fixa, arrancando um “Ah-ah!” da parte do utilizador. Abriu o armário junto ao chão e viu-se perante o cano por baixo do lavatório. Erguendo-se, virou-se para o outro, com um sorriso largo:                - Estás com sorte, meu caro Golias! Não tens de lidar com canos ligados à sanita. – Inclinando-se na direcção de Marta, acrescentou: - Esses são sempre os piores, menina, muito, muito sujos.                De olhos arregalados, viu Golias debruçar-se desajeitadamente e, num único puxão, arrancou o cano da parede. Depois, com as próprias mãos, destruiu a parede em volta do buraco onde encaixava, ficando com um túnel oco à sua frente. O magro passou-lhe um pequeno instrumento, redondo, parecido a um botão, e o gordo colou-o na parede do túnel.                - Pronto, está activo, chefe.                - Óptimo! – Exclamou o chefe esfregando as mãos.                 - Mas que raio…? – Sussurrou Marta. – Quem são vocês?!                - Ah! Bem, hm, sim…                - Conte-lhe mas é a verdade, chefe.                O chefe suspirou.                - Nós pertencemos a outro mundo, menina, e apenas queremos voltar. E isto, - indicou apontando para a passagem. – é o caminho que nos vai levar de volta.                 Ele sorriu-lhe confiante.                - Outro mundo?                - Sim! Sabe, um mundo com pessoas como nós, assim, bonitos.                - Lindos… - Rematou a jovem em tom irónico.                 Sem um pedido de desculpa pela destruição, sem mais explicações e um adeus descontraído, o chefe seguiu Golias, que miraculosamente coube de gatas dentro do túnel, e, envoltos numa luz azul intensa e repentina, Marta viu-os desaparecerem sem deixar rasto. Ainda lançou um olá que apenas ecoou a sua voz pela passagem escura. Confusa e levemente desapontada por aquela história chegar ao fim, olhou para a janela partida que deixava a chuva e o vento entrarem e gelarem o compartimento. Pela terceira vez, colocou mais uma fatia de pão na torradeira, a última do saco e, lançando breves olhares para dentro do buraco, de braços apertados contra o peito a fim de afastar o frio, esperou que o pão saltasse. Ao barrar a fatia com o doce aberto em cima do balcão, instantes depois, um brilho intenso e repentino inundou a cozinha. Marta ficou atenta aos ruídos, sem ter a certeza se um raio a iluminara ou a luz azul do túnel brilhara mais uma vez. Em vez do trovão, uma cabeça extremamente magra, particularmente feia, espreitou pelo armário debaixo do lavatório.- Golias, realmente um homem atencioso e perspicaz, comentou, estávamos nós a meio da viagem, que agíramos, efectivamente, de forma pouco cavalheiresca perante a menina. Dito isto, quero agradecer à menina o ter-nos recebido e permitido a leve desorganização e confusão que deixámos para trás.Marta desejou informar que não tinha permitido nada disso, mas o homem não lhe deu oportunidade, continuando o seu discurso convulsivo. - Além do mais, e isto também uma sugestão do meu caro amigo Golias, quero convidá-la a visitar o nosso mundo, isto se, realmente, a menina o desejar.- Posso voltar no domingo?A cara cadavérica abriu-se no seu sorriso soberbo.- Claro!Sem se preocupar em vestir um casaco ou comer a torrada, esquecida em cima do balcão, Marta seguiu o desconhecido pelo buraco bafiento e escuro, o qual ficou iluminado de um momento para o outro, transportando-os para a sua viagem.
 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on February 09, 2014 09:06