conto criado no workshop de escrita criativa :)



                Soraia. Detestava aquele nome quanto se detestava a si. Ou, então, apenas não gostava do nome por este estar associado a si. Não interessava muito, pensou ao fitar a sua imagem reflectida no espelho manchado. Pegou nas molas e procurou domar o cabelo, comprido e farto. Demasiado comprido. Teve a vontade súbita de agarrar numa tesoura e o cortar de uma só vez, mas claro que não o fez. A razão dizia que, se o quisesse cortar, devia dirigir-se a um cabeleireiro, estabelecimento próprio para tais aventuras. Maldita razão; maldita lógica. A sua vida era uma sucessão de eventos desprovidos de qualquer lógica, porque haveria ela, então, de se preocupar em a estabelecer nestes pequenos detalhes? Saiu irritada da casa de banho, passando por cima do enorme cão que se encontrava a ressonar preguiçosamente.                Arrumou, em gestos apressados, o que necessitava para a entrevista daquela tarde, ansiosa para que tudo corresse bem. Embora sem grande fé. Bateu à porta do quarto em frente ao seu, abrindo-a de seguida de forma cuidadosa.                - Pai, vou sair. Não te esqueças de tomar a medicação.                 O vulto magro acenou, murmurando uma despedida incompreensível para os ouvidos desabituados. Soraia voltou a fechar a porta, acariciou o velho cão, cujo pêlo bronze se encontrava salpicado de manchas brancas, adequadas à idade. O animal levantou a cabeça para olhar a dona, que vestia o blusão à porta de casa, como era habitual. Tinha olhos cansados, um pouco baços, enfeitados por círculos brancos. Assim que a porta se fechou e a jovem elegante desapareceu, o cão suspirou e voltou a adormecer.                 Já tinha percorrido uma boa parte do caminho, absorta em pensamentos, quando se apercebeu da realidade à sua volta. Estacou, abrupta. Voltava a acontecer. Desta vez o cenário era mais pacífico do que o costume, o que agradeceu. Todavia, perguntou-se quanto tempo demoraria a voltar ao seu mundo, pois não queria mesmo perder a entrevista. Tinha um pai doente e uma mãe desaparecida, para não falar do cão. Era urgente obter um rendimento extra para aguentar a casa e as despesas do médico.                À sua volta as pessoas tinham desaparecido, assim como os edifícios e os transportes. Sentiu os pés frios e olhou para baixo: encontrava-se descalça, perfeitamente estável sobre a água. De repente sentiu-se insegura, com medo de se mexer e afundar. Ela não sabia nadar. Nunca fora uma criança dada a aventuras e riscos, já bastante ocupada a lidar com situações espontâneas que mais ninguém parecia partilhar. A tremer, deu um passo em frente, seguido por outro, e outro mais confiante ao ver-se capaz de andar provocando apenas um suave vibrar nas águas.                 Depressa percebeu que não valia a pena continuar, pois não parecia haver destino, somente um vasto horizonte límpido. Parou, tentando perceber o que poderia tirar daquela situação. Olhou para a água e viu estranhos seres a deslizarem por baixo de si, os quais mexiam enérgicos tentáculos curtos e escuros. Olhou-os atenta; o que quereriam eles? Normalmente existia uma mensagem ou um objectivo naquelas viagens sobrenaturais. Os seres pareciam nadar para trás de si, tocando levemente na superfície da água, roçando os pés molhados de Soraia, como se a provocassem a segui-los. Foi então que a jovem viu a sua casa. No meio do nada, a sua pequena casa branca e vulgar continuava presente. Correu de volta, agora destemida, mas com um aperto urgente no peito. O cão pesado estava sentado à porta do quarto do pai. Ela entrou, de mãos trémulas, sabendo, por instinto, o que acontecera.                Seguida pelo labrador, sentou-se à beira da cama. O pai dava os últimos suspiros. Estava frio ali dentro. Não que lhe fizesse diferença, provavelmente o homem já não era capaz de o sentir. A filha beijou-lhe a testa, na sua despedida, e coçou as orelhas do velho companheiro de quatro patas, o qual se aproximara do corpo sem vida, para também ele prestar um último adeus.
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Published on February 26, 2014 03:42
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