Perdição na noite (mulheres que matam)
Estava feito. Não havia volta a dar. Era impossível voltar atrás. Agora, tinha de manter a calma e apagar os seus vestígios. Manter a calma! Como se isso fosse possível. Não, claro que não se encontrava calma: as mãos tremiam-lhe, o que dificultava as tarefas urgentes, e o coração não podia bater mais depressa. O silêncio da rua adormecida tornava todos os movimentos naquele escritório ensurdecedores. Tinha a sensação que cada passo, cada encontrão atrapalhado, cada respiração ofegante a denunciavam. Pegou em todos os papéis que a incriminavam, as cartas de chantagem dele, e as cartas de súplica dela. O canalha estava a pedi-las, não havia outra hipótese. Ela bem que insistira para que ele a libertasse daquela vida de escrava, um fantoche à sua mercê durante anos. Desde que ela cometera o terrível erro de se entregar ao amor de outra mulher. Tinha já enfiado os papéis na sua mala de mão, quando reparou, no ambiente escuro, as manchas de sangue que deixara na secretária. Olhou as suas mãos enluvadas para confirmar se realmente tinha sido ela, e viu-as banhadas em sangue. Teve de se esforçar para não gritar de desespero, gemendo apenas, sentindo-se enjoada e assustada. As lágrimas rebentaram, por fim. Contudo, logo inspirou e expirou devagar, para se acalmar, para se focar. O que está feito, está feito, disse para si mesma. Era necessário concentrar-se e eliminar o seu rasto. Primeiro, roubar uns documentos ao acaso, a fim de levar a polícia a analisar aquelas marcas de sangue como um roubo propositado. Ninguém sabia da chantagem, portanto era preferível roubar qualquer coisa de tangível. Enfiou na mala, para além dos documentos em cima da mesa, objectos que lhe pareciam valiosos: uma caneta, um pisa papéis com diamantes, uns botões de punho guardados numa das gavetas… Preparava-se para sair pela passagem secreta que dava à cozinha, quando se deteve a olhar o cadáver ensanguentado. Tinha atacado o homem de trás, enfiando uma faca bem no centro das costas, o sangue manchando a camisa branca de imediato. O grunhido de choque e dor fora mais alto do que ela esperara, contudo não pareceu acordar ninguém da casa. O corpo caíra para a frente, tropeçando no banco que servia para descansar os pés, e acabara de traseiro espetado. Teve a súbita vontade de lhe tirar as calças e coloca-lo numa posição ainda mais vergonhosa, mas resolveu que seria uma grande falta de classe, algo que ela ainda tinha, apesar de tudo. No entanto, pensou, que o canalha do chantagista merecia, merecia. Estava fora de questão. Tinha de sair dali o mais rápido possível. A mulher entrou pela porta escondida na estante e fechou-a firmemente atrás de si. O túnel era escuro e frio, com um cheiro a humidade intenso. Agradava-lhe aquele cheiro, que se misturava com o aroma acre do sangue, o que, para sua admiração, também a agradava. Caminhou pela escuridão, apoiada nas paredes para se orientar, as luvas de sangue deixando um rasto atrás de si. Já não se preocupava em deixar sinais, ninguém sabia daquela passagem. Ele próprio o dissera, numa das noites em que a convidara lá a casa, em horas discretas e silenciosas, a fim de receber carinho de, como ele gostava de colocar, uma mulher que só amava mulheres. Sentiu o estômago revoltar-se com a recordação. Nunca mais. Nunca mais! Dera-lhe dinheiro, dera-lhe satisfação física e doentia, dera-lhe a sua sanidade. Ao chegar à cozinha começou a notar que um formigueiro particular se formava dentro de si, o qual precisava de se manifestar, de sair. Era um sentimento confuso, pois já não estava tão assustada ao sair pela porta aberta dos criados, com cuidado para não deixar marcas do sangue, salpicado pelo vestido preto e longo. Correu, na noite fria, ansiosa. Àquela hora tinha certeza que ninguém daria por ela e, caso alguém a visse, não seria mais que um vulto negro, envolto num véu sombrio. Chegaria a casa num instante, através do parque escuro, por entre as árvores. A meio do percurso, uma gargalhada histérica ecoou, vinda bem do seu âmago. Não tinha vontade de chorar, não tinha medo, nem culpa ou arrependimento. Experimentava uma satisfação mórbida e única, fruto do culminar do seu êxtase. Queria calar-se, manter-se invisível na escuridão, mas o riso teimava em acordar toda a cidade. O guarda-nocturno do parque apareceu à frente da mulher louca, segundos depois de a ouvir. Sob o foco da lanterna, a sua palidez contrastava com as negras manchas que a salpicavam, na cara, no vestido, nas luvas. A boca escancarada dando livre passagem à gargalhada arrepiante. - Matei-o! Eu matei-o! Estava feito. Não havia volta a dar. Ele roubara-lhe a sanidade.
Published on February 20, 2014 07:39
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