Hugo Gonçalves's Blog, page 6
March 26, 2013
Pontos de vista
Antes a Europa era boazinha e tinha boas intenções e cuidava dos seus. Agora é uma vaca castigadora, controlada por interesses de grandes bancos e empresas e políticos facínoras. Ah, como é que se chama isto? Crescer e perder a ingenuidade. Ou crescer e ficar pobre. Porque se ainda houvesse guita, andava tudo na boa. O desengano é proporcional ao dinheiro no bolso. Vai-se a guita, descobrem-se a verdades e zangam-se as comadres.
Published on March 26, 2013 07:38
March 7, 2013
“Don't ask for whom the bell tolls, it tolls for thee”
No mesmo dia morreu um ditador e morreu a minha palmeira preferida na praça santos dumont, arrancada pelo temporal. Quando lá passei, de manhã, e vi o tronco tombado sobre a fonte, fiquei triste como um menino que perdeu o cão. Amo mais certas árvores do que certas pessoas.
Published on March 07, 2013 05:03
March 5, 2013
Boletim psicológico volátil
Saindo de casa para ir ao supermercado, lembro-me que tenho uma sacola ecológica, pego nela e fico satisfeito com o meu ato sustentável, seguro da minha enorme bondade para com os golfinhos que não morrerão sufocados em sacos de plástico. Mas logo de seguida percebo que o gesto não é assim tão grandioso e que me satisfaço, muitas vezes, com minúsculas fantasias de humanidade e decência. Rendido com a minha pequenez, avanço pelo supermercado e encontro uma prateleira só com ovos da Páscoa Angry Birds. Penso, ok, não sou o Gandhi, mas ao menos não ando a inventar e a vender estas merdas. E volto a sentir-me especial.
Published on March 05, 2013 07:38
February 25, 2013
A que cheiram as alfarrobas?
Querido avô,
Desculpa se hoje não estou contigo. Desculpa se, mesmo que supere o trânsito carioca e force a minha entrada num avião com destino a Lisboa, jamais chegarei a tempo de estar outra vez diante de ti, tão pequeno como quando me lançavas ao alto, tão menino que te via como colosso das histórias de aventuras - as tuas mãos de homem trabalhador pegando-me como se eu estivesse no Espaço, os teus olhos tão azuis como os dos heróis dos filmes, o after-shave na tua cara escanhoada garantindo-me que era assim que deveriam cheirar os homens duros.
Hoje sou outra vez menino, caminhando pela rua abaixo como quando me contaram que a tua filha - a minha mãe - tinha morrido, um mágoa sem pudor, de creche, indiferente aos preceitos da gente grande que diz Os meus pêsames ou Ele já estava doente há muito tempo.
(Estou longe, sinto saudades, tenta entender a pieguice.)
Sou outra vez menino porque, há uns anos, tínhamos invertido os papéis assim que comecei a acompanhar-te nas consultas ao hospital de Santa Maria - um baque doloroso e súbito na minha vida, como um acidente de carro no dia de aniversário, uma implacável evidência: ao estar contigo num hospital, durante meses, um vez por semana, senti-me adulto pela primeira vez. Há anos que eu pagava impostos, contas, multas. Há anos que usava contraceptivos, que votava em branco e até escrevia livros. Mas nunca, como nas salas de espera do hospital, percebi a inexorável marcha das coisas da gente grande: era eu quem tinha de cuidar de ti naquele momento.
Como poderia voltar a ser menino, depois de estar a teu lado, vendo como tremia a caneta prestes a assinar o termo de responsabilidade para que te cortassem a perna abaixo do joelho? Como ser o menino que esperava das tuas mãos as fatias de melancia nas férias grandes, se o teu sorriso nervoso no hospital contaminou tudo com o teu medo e o meu medo?
Foi preciso acalmar-te para que a tua caligrafia fizesse sentido no papel. E segurei-te no pulso e quis ser tão forte como eras sempre que chegavas a casa e me atiravas ao ar.
Um dia, fui fumar um cigarro no parque de estacionamento do hospital e vi um homem sozinho, desmoronando-se de choro dentro de um carro. Um choro ancestral, de bicho, um choro de revolta e de derrota, um choro que eu desconhecia mas que, após tantas visitas ao hospital, me pareceu mais uma evidência incontornável dessa idade adulta que eu passara a conhecer. Uma dia, pensei, também eu vou ter de chorar assim.
Depois disso visitei-te em vários hospitais, uma vezes eras internado de urgência, outras tinhas um cirurgia marcada. Eu tentava encontrar sempre um contraponto para a tristeza do fim das visitas nas viagens de carro que fazia com o teu outro neto homem, e nas piadas que contávamos, usando um vocabulário só nosso, encontrando refúgio no lado mais feliz da memória de dois irmãos.
Certa madrugada, entraste comigo no Santa Maria para seres preparado para uma cirurgia bem cedo. Mas ficámos todo o dia em espera. Aproveitei para perguntar-te coisas que não sabia do teu passado, fiquei a saber-te mais homem e menos avô, percebi a dureza, os fracassos, as perdas tão irreparáveis - dois filhos mortos por doença - que fizeram com que a luta (ainda mais após uma perna amputada) começasse a parecer-te definitivamente injusta.
Como iria o homem gigante, que diziam ser parecido com John Wayne, viver com uma prótese? Como iria abandonar a alegria do seu assobio, escada acima, quando chegava para almoçar com os netos, pela sobrevivência de um sofá, diante de programas de TV?
Se eu tinha chegado à idade adulta, tu atravessavas esse meridiano a partir do qual são mais as coisas que se perdem do que aquelas que se ganham.
No final desse dia longo, já de noite, ainda sem sabermos quando irias a operar, após horas de silêncio, de merendas, das tuas queixas por causa das dores e de um desfilar de gente doente, debilidades humanas e alguma ternura, o meu irmão chegou, por fim, e substituiu-me naquele banco de hospital.
Por vezes a dor é uma dormência, numa rua fria, sem nenhum destino. Saí do Santa Maria e apetecia-me cair dentro de uma barrica de whisky, entrar no primeiro comboio para lado nenhum ou simplesmente teletransportar-me para o tempo em que tu assobiavas fados ao subir a escada, em que conduzias camionetas e me deixavas ir lá atrás, na caixa aberta, esse tempo em que adoptavas cães rafeiros e me levavas a apanhar alfarrobas, de tal forma que ainda hoje posso cheirar a serra algarvia a milhares de quilómetros de distância.
Foste operado poucas horas depois. Passaram já sete anos.
Esta manhã o teu outro neto homem ligou.
O avô morreu.
E eu no Rio, eu a olhar por uma janela, a ver árvores estranhas, garotos de escola, um silêncio desconhecido, de filme interrompido por falha mecânica, até que do outro lado
Mano?
E eu.
Sim.
E, no entanto, lá fora não era lá fora, o Rio não era meu, a Gávea era-me alienígena, alguma coisa crashou na máquina que faz o espaço e o tempo.
Desci rua abaixo, a passo largo, querendo escrever-te porque não posso estar aí. Os óculos escuros eram de homem adulto. Os olhos eram outra vez de menino.
Até sempre, avô António
Hugo
Published on February 25, 2013 12:44
February 1, 2013
O rapaz da Rua Capitão Rei Vilar
Umas vez andámos ao estalo, com os patins nos pés, no rigue de hóquei do colégio, e julgo que ali, aos doze anos, resolvemos definitivamente as nossas diferenças. Nunca mais nos chateámos ao ponto de partir para a ignorância. E isso não significa que estivessemos sempre de acordo. Por exemplo, num jogo de futebol, uns anos mais tarde, quando a testerona da adolescência resultava em frequentes entradas a pés juntos, tu preferiste queixar-te de um pitbullzinho da equipa adversária, dizendo, "Este gajo é maldoso." Eu preferi fazer-lhe um carrinho aos joelhos. Nem sempre estivemos acordo, já se vê. Muitas vezes, os meus ataques de nervos contrastavam com a serenidade do teu semblante, uma postura "sou-inocente-senhor" que te garantiu a alcunha de "submarino", junto dos professores, pela forma como sempre te safavas, com cara de pau impecável, das merdas em que nos metíamos.
Nunca foste um santo, mas o meu descontrolo emocional, toda a revolta com o mundo, eram mitigados pela estabilidade e amizade que pulsavam dentro de ti. Quando fomos knockauteados pela tequila nas férias de verão pré-universitárias, perdeste a noite na casa de banho da discoteca, assegurando-te de que eu, prostrado de tanto vomitar, não me afogava na retrete. Outra vez, carreguei-te em braços, depois de uma noitada, quando o teu joelho, vítima de um despiste de moto, parecia um melão pronto a verter líquido alienígena.
Não são gestos de generosidade extraordinária, nunca te salvei a vida, nunca me deste um rim. Mas, agora que a idade adulta nos obriga todos os dias a fazer coisas e depois ainda mais coisas, e há sempre uma lista, uma agenda, uma prioridade, dou-me conta da benção que era o tempo que tínhamos em mãos, quando os amigos eram a nossa tribo, quando a disponibilidade para as aventuras era constante, quando havia o vagar para estarmos sempre juntos. Tínhamos a cumplicidade e o dialecto de um gangue, a nossa amizade era regida por ideais românticos de lealdade, hedonismo e gajas. Essa convivência - passávamos mais tempo com os amigos do que com a família -, esse acumular de histórias, experiências e disparates, tem agora mais valor no mercado das coisas sem preço do que um rim fresco para transplante.
Essas são ainda a minhas memórias mais definidas. Posso lembrar-me de respostas cómicas a professores, de jogadas inteiras em campeonatos de futebol da escola, do nome do bar sinistro - Faunos -, em Cáceres, onde baratas subiam paredes e um insistente travesti marroquino afugentou a clientela .
Hoje, se nos encontramos, revisitamos todas essas histórias, em grupo e em voz alta, para cansaço das mulheres com quem casámos. Mas connosco funciona ao contrário, em vez de aborrecimento, há um deleite a cada detalhe narrado, um regozijo com a simples referência de personagens como o Cabra, o setor Mocho, o Padre Miguel, o Pompeu dos Morgados ou o sor Filipe da Casa dos 17. E não nos importa saber já o desfecho de cada história, porque o que nos interessa é a viagem no tempo, estar ali outra vez, reproduzir essa existência tão leve como andar de moto sem capacete e dar mergulhos no Guincho, quando eram mais as certezas do que as preocupações, e nos sentíamos tão na crista da onda como um bando de cowboys.
E agora, que estamos longe, e quando a vida passou também a tirar-nos coisas - em vez de só dar -, deixa-me dizer-te que nem só de memórias vive a nossa amizade. É mais do que isso. Está inscrito nas costuras, tatuado nas juntas, manifesta-se ainda, todos os dias, quando ando de bicicleta, faço uma piada de jeito ou levanto as sobrancelhas de diabinho prestes a passar-se com alguma coisa. Sei que muito do que somos ficou definido nesses anos. Vejo muito dos rapazes que eramos nos homens de agora. E se nesse jogo de espelhos identifico as perenes rachas da imaturidade, também vejo o escudo para enfrentar o peso de certos dias; vejo a alegria e o desvario infantil, a necessidade de sair da ordem, da lógica, da expectativa. E podemos acreditar, ainda que por momentos, que a vida é demasiado importante para ser levada a sério.
Um abraço,
Kit Maroto
Published on February 01, 2013 06:54
January 18, 2013
Manhã tão branca
Há meses que ando atormentado com uma frase de E.B White. Trata-se de uma inquietação do escritor americano, que já mencionei em várias coisas que escrevi, mas que regressa sempre, um tique do cérebro, uma obsessão repetida.
'I arise in the morning torn between a desire to improve the world and a desire to enjoy the world. This makes it hard to plan the day.'
Esta manhã fui comprar peixe, fruta e vegetais na feira da Gávea. Fazia sol pela primeira vez em dias. O plano parecia óbvio.
Mas logo abro o jornal e descubro que há clubes cariocas onde as babás só podem entrar fardadas; e numa estranha associação de ideias e imagens, de repente, a minha manhã fresca de verão é contaminada por uma sequência de lixo: dois políticos portugueses e um brasileiro celebrando o fim-de-ano no Copacabana Palace, que nem Irmãos Metralha ou amiguinhos da noite fazendo uma rodada de shots; ou o emigrante portuga, com quem jogava futebol na adolescência, e que reencontrei no Rio de Janeiro - quando lhe perguntei porque saíra de São Paulo para o Rio, recentemente, só foi capaz de falar do dinheiro que ganha e do tempo em que era um lorde, quando um euro valia quatro reais e era mais fácil para os gringos cavalgar a riqueza do Brasil e a subserviência dos fodidos.
Afortunadamente, o boletim metereológico do jornal anunciou céu limpo, interrompendo o videoclip da minha irritação. E só então percebo que querer anular ou castigar o lixo do mundo não é o mesmo que "melhorar" o mundo, como diz White.
Incapaz de ir agora para a rua e salvar viciados em crack, dar sangue num hospital ou apresentar-me como voluntário num lar de idosos, resta-me escolher o outro caminho. Pego na bicicleta, vou à praia, dou um mergulho e dou também graças pela poderosa paisagem de morros e mar, pelo corpo ressuscitando debaixo do sol, pela sorte que me calhou.
Hoje, não me inquieto mais. Os ônibus aqui têm o hábito de atropelar pessoas e amanhã pode ser o meu dia. My desire, Mr. White, is now to enjoy the world.
E como dizia Nucky Thompson, miúda da Gávea, há mais deus no meu amor por ti do que em todas as igrejas do mundo.
Published on January 18, 2013 05:30
December 5, 2012
Saudades aos bocados
1.
pernoitas em mim
e se por acaso te toco a memória... amas
ou finges morrer
Al Berto
2.
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3.
pernoitas em mim
e se por acaso te toco a memória... amas
ou finges morrer
Al Berto
2.
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3.
Published on December 05, 2012 06:52
November 27, 2012
The revolution
Brevemente estaremos de volta. Para partir a loiça toda, espera-se.
Published on November 27, 2012 13:23
August 3, 2012
Um bom dia para um casamento
A viagemEram pequenas coisas que se tornavam enormes: ele a conduzir e o pai ao lado, ele a ajudar o pai a entrar no carro por causa de uma dor nas costas, ele com o total controlo da rota, o silêncio entre os dois, não uma ausência de palavras, o silêncio. Pela primeira vez o silêncio. Crescer era isso – não apenas pagar contas, ser apanhado a conduzir com os reflexos inundados em gin ou nadar para fora de pé sem braçadeiras. Crescer, ser adulto, era aquilo: ir ao funeral da mãe do seu pai, a sua avó, tratar da papelada, ser mais pragmático diante do corpo que um médico em cenário de guerra. Havia muita coisa para fazer. Ser adulto era falar com o agente funerário e com a senhora das flores. Ser adulto era ouvir, na voz do pai, a sua voz de menino, frases rotas pelos soluços, as lágrimas escorrendo na garganta. Ele era adulto, o pai era velho. Ele já não era o menino do seu pai.
O pai tinha-lhe dito, ao telefone, “A minha mãe morreu, a avó morreu”, e naquelas palavras revisitou o seu próprio choro quando entregava um teste com negativa ou se tinha perdido numa praça de Badajoz ou quando o irmão lhe batia – ou quando o irmão não lhe batia e ele fingia-se saco da pancada, íman das atenções da casa, o filho mais novo.
Pararam várias vezes no caminho. O pai tinha a próstata danificada, demorava-se em frente aos urinóis das estações de serviço enquanto ele lia os jornais, as revistas, as legendas das páginas duplas com mulheres lambidas pelo Photoshop. Comprava chocolates mas ambicionava cigarros. Não fumava diante do pai. Nunca fumaria diante do pai depois de ter sido apanhado, no sétimo ano, com um maço escondido na gaveta das meias, denunciado pela empregada que também lhe apanhara material pornográfico. Os cigarros eram pior. Nunca se falaria de masturbação naquela casa, mas o tabaco era meio caminho andado para as ganzas, a heroína, a desgraça de uma família com as pratas roubadas. Não fumava diante do pai, não falavam de política, não trocavam ideias sobre temas que acabassem em semanas sem um telefonema.
Encostado ao carro, viu o pai, que saía da casa de banho, a braguilha aberta, os olhos procurando um lugar seguro, tal e qual a criança perdida em Badajoz. O pai, naquela estação de serviço, avançando medrosamente para um funeral, era o mesmo homem que, depois de confiscado o tabaco, lhe tinha atirado o maço à cabeça. O pai era forte e ambicioso e arrependia-se sempre que largava um estalo. O pai precisava agora de comprimidos para dormir e tinha os olhos tão vermelhos como uma tarde subaquática na piscina.
Entraram no carro, ele não acendeu a rádio. Não era estranho o silêncio.
Serás terra
Era um dia lindo para um casamento. O céu não tinha um farrapo de nuvens e havia pássaros. Iam a pé até ao cemitério, o pai sem dizer nada, caminhando atrás da carrinha funerária, atrás da sua mãe, encolhida por tantos anos de vida, dentro de um caixão. No final, quando a demência tudo confundia na linha cronológica das sinapses da avó, ela só reconhecia o seu filho. Não o filho com filhos, dores na próstata e três casamentos. O filho dela, pequeno, o filho carente de coisas doces, o miúdo incapaz de perceber que a mãe seria enterrada num dia lindo para se fazer um casamento.
O pai não falou no caminho para o cemitério, mas ele ouvia a sua voz como se equipado com auscultadores de museu. Na visita guiada, o pai repetia o que lhe contara há muitos anos, quando por ali passaram num verão:
“Esta foi a casa onde nasci.”
“O teu avô pôs um baloiço naquele sobreiro.”
Ele analisou as mulheres no cortejo. Só uma prima em segundo grau o cativou. Depois olhou para os pés dela e ficou manso. Sentiu-se aliviado. Não queria filmes nem filhos vítimas da consanguinidade. Olhou outra vez para os pés dela. Queria ter a certeza que não era aquilo que precisava. Ouviu a voz do pai nos auscultadores da infância:
“Devia vir cá mais vezes.”
“Tens a genica do teu avô.”
Cruzaram os corredores de sepulturas. Como fazia sempre que estava num cemitério, pôs-se a contabilizar a longevidade das vidas dos mortos: Justino Gomes (1956-98), Bernardina Ramalho (1910-78), Domingos Lourenço (1976-77). Ele sabia que todos os humanos faziam esse jogo nos cemitérios, esse exercício de perspectiva, como quando estamos debaixo de um céu estrelado ou nas ruínas de uma civilização muito antiga.
Há anos que o pai comprara, naquele cemitério, um pedaço de descanso eterno com jardim privado e cheiro a ciprestes. Estava lá o avô, estava lá o buraco que seria a campa de mármore da avó. Fez contas de cabeça para saber a idade do avô. Nos auscultadores ouviu:
“O teu avô fumava e bebia muito.”
“Eu nunca quis fazer mal a ninguém.”
“A minha mãe morreu.”
Porque tinha estado em vários funerais, ele sabia do apogeu dramático do caixão a descer ao fundo da cova. Segurou o pai pelos ombros, beijou-lhe a cara, não disse nada. Não fosse o choro do pai, que era também o seu choro de menino, tudo seria outra vez silêncio. Ele não chorou. Ele era o pai e o pai era o filho.
Regresso
Nessa noite dormiram num hotel na cidade mais próxima. A prima em segundo grau também. No bar, porque sabia dos poderes libertadores das bebidas espirituosas, ele pediu apenas um copo de vinho, enquanto ela sorvia Baileys com gelo em cálice largo e falava de uma série de televisão com médicos e do preço do aparelho para os dentes da filha. Ser adulto era ver ficção americana no pequeno ecrã e endireitar aquilo que nasceu torto por causa dos nossos genes. Ser adulto era ir para o quarto sozinho.
Ela disse: “Devíamos ver-nos mais vezes, nem sequer tenho o teu número.” Por via das dúvidas, ele olhou para os pés dela. Disse: “Vou dormir, o meu pai não anda bem.”
Escovou os dentes, apagou a luz e atreveu-se na escuridão, as pupilas aumentando, procurando os objectos, o seu pai deitado numa das camas. Dobrou-se sobre aquele corpo. Tentou ouvir a respiração. Não lhe tocou. Lembrou-se como, juntamente com o irmão mais velho, fingia que a cama era uma nave espacial. Entre os lençóis, disse baixinho: “Vamos levantar voo.” Não demorou muito a adormecer.
Na manhã seguinte, dentro do carro, outra vez o silêncio. Entregou o pai na casa onde crescera. Ali seria sempre mais filho do que pai, mesmo quando tivesse crianças e elas saltassem para a piscina e houvesse festas de aniversário e Natais que seriam outros Natais.
O pai disse: “Não queres entrar?”
E ele voltou a ser o filho.
Published on August 03, 2012 06:55
Mantra matinal
Published on August 03, 2012 06:49


