Hugo Gonçalves's Blog, page 10
June 4, 2012
Confiar na bondade de estranhos
Ontem, num bar de sucos, disse a uma pessoa que se podia sentar na minha mesa porque não havia espaço. Ele perguntou: Você é escritor? Além de perspicaz, o homem - contou-me depois - é campeão do mundo de UFC. Foi o mais novo de sempre, aos 19 anos, e é mega celebridade no Brasil. Foi de uma amabilidade e humildade que me desarmaram e deitaram por terra meus preconceitos. Mesmo quando me falou da importância de Cristo na sua vida. Disse: "Não sou daqueles que acham que os não crentes são piores ou menos felizes que os crentes." Uma lição para as mega estrelas da nossa seleção.
Ps - este cavalheiro, que se chama Vitor Belfort, ainda teve a gentileza de pagar o meu suco.
Published on June 04, 2012 05:45
June 1, 2012
O elogio do bigode
Published on June 01, 2012 15:38
Fado da diáspora
O senhor Francisco, que me vende uvas chilenas, nasceu em Chaves mas, na primeira vez que falámos, apressou-se a dizer: "Sou de Campo de Ourique", mostrando o mesmo orgulho dos indígenas desse bairro lisboeta. Veio para o Rio em 1968. Só regressou uma vez a Portugal, em 1995. "Ui, estava tudo diferente." E aqui estamos, convencidos da sina repetitiva de um país, sabendo que sempre foi assim. Aparentemente, muito mais é aquilo que me separa do que aquilo que me une ao senhor Francisco. Mas sempre que vou à feira da Gávea procuro a sua banca e compro as suas uvas, mesmo que não sejam as mais doces. Gosto de lhe apertar a mão, falar-lhe como se estivesse no Jardim da Parada, sem gerúndio ou vogais abertas, apenas: "Então bom fim de semana, sôr Francisco." E uma estranha comunhão acontece, cordas tinindo coisas muito mais antigas do que eu mas que pulsam perpetuamente numa veia do pescoço.
Published on June 01, 2012 06:06
May 31, 2012
Gloriosa pausa para almoço
Porque nas últimas semanas entrei na reta final do meu livro, descuidei o blog. Mas estou de volta. Fica um pedaço do meu dia carioca, uma espécie de celebração por ter terminado um romance de trezentas e tal páginas. Saravá!
Published on May 31, 2012 05:54
May 30, 2012
Manifesto pró-grama e anti-relvas
O relvas é bicho antigo, escorpião de Alcácer Quibir, e não há herbicida que nos valha.
O relvas é neto do dantas, carrega o gene falhado das gerações bandidas.
O relvas não marca passo, anda para trás.
Não se mate o relvas, não sujemos as mãos, que para meliantes já nos basta o séquito do relvas e ainda apanhamos uma doença ruim.
Mas dispare-se uma pistola de fulminantes, pólvora sem furo de bala, porque o relvas apodrecerá por dentro, sozinho, num lar de idosos de um banqueiro amigo do relvas.
Bang Bang, assuste-se o relvas.
Uma geração que grama com o relvas é uma geração ajaezada para o velório da decência, cavalgada pela mesquinhez, vergastada pela mediocridade.
O relvas é o Mister Burns depois da explosão da central nuclear de Springfield.
O relvas é a centopeia dentro das galochas da criança que vai para a escola.
O relvas é o carro alemão de grande cilindrada, as parcerias público/privadas e as derrapagens orçamentais.
Bang bang, pregue-se um cagaço ao relvas.
O relvas não tem obra feita e mesmo que tivesse não deixaria de ser um relvas.
Por onde o relvas passa, agonizam ervas daninhas e colapsam eucaliptos.
O relvas contradiz o aforismo que garante que o poder é afrodisíaco.
O relvas faz-nos emigrar, faz-nos desesperar, faz-nos desistir.
O relvas é mau para a tosse, dá mau nome à vizinhança, estraga qualquer festa.
Bang Bang, alguém grite, quando o relvas for almoçar ao Eleven.
O relvas deixa comichões no corpo.
O relvas distrai-nos do pôr-do-sol, dos filhos, dos amigos, é tóxico porque acumula nas raízes tudo o que está mal, é uma metáfora parola para décadas de descaso, manipulação e síndrome de porteiro de discoteca.
O relvas é igual a tantos outros relvas. Nem nisso é original.
O relvas dá mau nome à relva, estraga-nos as fantasias campestres como se fosse um empreendimento construído em zona protegida.
O relvas nem se pode fumar porque não dá onda, só dores de cabeça.
Se não joga golf, o relvas devia jogar, porque lhe assentará tão bem como uma condecoração daqui a dez anos, atribuída por um presidente amigo e compincha do partido do relvas.
O relvas é um Sócrates. Um José Sócrates.
O relvas é pernicioso porque nos obriga a escrever manifestos quando podíamos estar a pisar a grama.
O relvas faz-nos preferir a grama.
O relvas prefere a grana.
Portugal, que com todas estas urtigas conseguiu a classificação de país devedor com sintomas de depressão, mas sem guita para a terapia ou comprimidos; Portugal: país exportador de almas esgaçadas, com o rabo preso na europa e o nariz a farejar o atlântico. Portugal de relva seca, cimento armado, centros comerciais recordistas e vira o disco e toca ao mesmo, oh Portugal, ficas mais pequeno, visto de longe, com esse relvas a puxar-te as rédeas, cagando tudo no caminho. Mas um dia, um dia relvas, a grama será mais importante que a grana, e descerão a tua estátua lá na praça da aldeia onde nasceste, e Portugal voltará a ser qualquer coisa mais verde, qualquer coisa com mais esperança e gente limpa.
Published on May 30, 2012 08:19
May 11, 2012
Um casamento em Paraty, diário de uma viagem com história
Para o Jordi e Maíra
“Qual é a história?”
É isso que te oiço perguntar numa esplanada de Paraty, na noite do teu casamento.
“Qual é a história?”
Não te quis dizer logo qual era a história, além disso, a torpeza da língua cachaceira não permitia grandes eloquências. Mas a história (a minha visão da história) começa há muitos anos, longe do lugar onde conversávamos, distante de Paraty, porto fundado por portugueses em redor de 1600 e onde escolheste casar. Talvez a história pudesse até começar nessas ruas de pedras traiçoeiras e casas tão brancas que podiam estar na costa alentejana.
(Não deixo de pensar como a brancura do casario contrasta com o sofrimento de todos os que passaram ali, desembarcados após meses de viagem desde África (lanhos vermelhos de sangue e ossos forçando a pele), antes de terem um dono e um destino escravo. Nunca mais regressariam a casa. Estavam fodidos de cabo a rabo. Também não deixei de pensar, quando vi as crianças índias de hoje, comendo aquilo que os turistas dispensam nas esplanadas, como são belas as suas peles pintadas contra a alvura da cal, e como são pobres (logo eles, que há séculos sabiam viver da terra e do mar), como os seus genes fazem parte de uma lista muito antiga de fodidos – no Brasil colonial e pós colonial, é tão longa essa lista de fodidos. Há tanta beleza e tanto descaso. Tudo aqui é emocionalmente excessivo.)
Paraty, como tu próprio comentaste naquela noite, é um porto (e ponto) importante na história que quero contar. Mas comecemos, como avisei, bem longe, na Polónia, porque este relato, meu irmão, não é jornalístico ou cronológico. É o relato de alguém que, como tu, pergunta com frequência, ao longo da viagem: “Qual é a história?”
Dizia eu: Polónia, Segunda Guerra Mundial e um escritor, judeu, tímido, que contactava com o mundo a partir de cartas. Bruno Schulz foi levado para o gueto, mas caiu nas graças de um oficial nazi e chegou a pintar as paredes dos quartos dos filhos do seu protetor. Há uma versão comumente aceite sobre a morte de Schulz, embora existam dúvidas sobre o real desenrolar dos eventos. Supostamente, o benfeitor de Schulz teria fuzilado um judeu, que, tal como o escritor, também tinha um guardião nazi. Certa tarde, Schulz ia na rua e, sem aviso prévio, levou um tiro na cabeça. O assassino foi procurar o protetor do morto para lhe dizer: “Tu mataste o meu judeu, agora eu matei o teu.”
Soube tudo isto num ônibus para Paraty, numa sexta-feira de trânsito selvagem e Rodoviária em alvoroço, gente saindo à pressa do Rio de Janeiro, pessoas amachucadas pela semana de trabalho e pelas sovas que, todos os dias, levam nos transportes da cidade: a espera, o bufar dos escapes, a condução letal dos motoristas de ônibus, vans e táxis.
Sabia que a viagem ia ser longa, e mesmo que o modelo do ônibus fosse uma inspiração – chamava-se Marco Polo –, não suspeitava ainda qual seria a história. Nas minhas orelhas, os headphones sussurravam uma voz feminina. Nicole Krauss, escritora americana, falava, num podcast, de Bruno Schulz, dizendo que nunca ninguém esquece o dia em que descobre aquela prosa tão peculiar e fantasista, por vezes filigranada como os brincos de uma minhota. Preparava-me, através da voz de Nicole, para estrear-me na ficção do escritor malogrado. Ela preparava-se para ler um dos seus contos. Pensei se, daqui a vinte anos, quando encarasse o nome “Bruno Schulz”, seria capaz de recordar onde tinha ouvido as suas palavras pela primeira vez – cortando a escuridão do mato que ladeava a estrada, a caminho do teu casamento, num lugar onde nunca estivera antes, antevendo já que, em algum momento durante o fim-de-semana, perguntaria “Qual é a história?”.
O leitor de mp3 estava atafulhado com podcasts para me entreter, mas também para me abstrair do perigo lá fora. Várias vezes fechei os olhos para não perceber como o motorista se aproximava do abismo, fazendo curvas apertadas a alta velocidade. Entretanto, Nicole Krauss falava-me ainda sobre o conto de Schultz, Father’s last escape, comentando o universo obsessivo do escritor: a constante referência à doença prolongada e à morte do pai. Nesse texto, o pai de Schulz, morre vezes sem conta. O escritor ressuscita-o, diz que ele reencarna nas expressões faciais do papel de parede ou que se transforma num caranguejo e aparece durante as refeições da família, sapateando as tenazes no chão da casa. Pressenti, entre uma e outra morte, o conforto da vida familiar e a esperança. Mas, uma e outra vez, é a dor da morte repetida que enche de sangue as palavras de Schulz.
Era um texto bonito e um texto triste, mas era sobre a morte, e ainda que eu fosse a caminho de um casamento (um começo, não um fim), não consegui esquecer o que o José Eduardo Agualusa escreveu sobre ti num dos seus livros:
“Jordi Burch perdeu o pai aos 16 e a mãe aos vinte. Perdeu ainda o mais velho dos dois irmãos. Este somatório de tragédias podia ter feito dele um sujeito cínico, inclinado às sombras, propenso à solidão. Pelo contrário, fortaleceu-o:
— O pior que me podia acontecer, já aconteceu. Agora tenho o direito a ser feliz.”
Confrontado com a obsessão de Schulz, com o constante revisitar da morte do pai, tirei os headphones e pus-me a olhar pela janela. Não sabia de cor toda passagem do livro de Agualusa (tive de procurá-la em casa), mas não esquecera as tuas palavras: “O pior que me podia acontecer, já aconteceu. Agora tenho o direito a ser feliz.” E foi a pensar no nessas palavras, que afastei a impressão desconfortável causada pelas palavras de Schulz.
(“Agora tenho o direito de ser feliz”)
Tu, tal como Schulz, pareces pôr tudo o que tens e o que amas naquilo que fazes, mas, ao contrário de Schulz, e apesar de já teres fotografado miséria, morte e desespero, há em ti, e na forma entusiástica como enfrentas cada história, uma enorme libertação, muito mais do que um peso a carregar ou a revisitação do sofrimento. Tu procuras a luz, a mesma luz de que precisas para fotografar as tuas histórias.
Essa certeza aliviou-me e senti menos receio de um despiste na estrada para Paraty. Tens o direito de ser feliz, como tu próprio disseste. Não era um motorista de ônibus, doido varrido dos carretos, que iria estragar o fim-de-semana com uma tragédia.
“Português entre as vítimas de um despiste de ônibus” não seria a manchete desta história.
Quando a viagem é longa (quase seis horas) e o ar condicionado cria uma atmosfera de shopping dentro do ônibus, há sempre um alívio quando pisamos terra firme e, por fim, a humidade, entranhada de maresia e mato, se pespega na pele como melaço, percorre o nariz, os brônquios e os pulmões, enchendo tudo de possibilidades e esplendor tropical.
Nessa minha primeira noite em Paraty. ficámos até tarde na praça da Matriz, bebericando cachaça e falando desarticuladamente. Demos um abraço. Casavas no dia seguinte. No regresso a casa, as ruas brancas, com janelas coloridas, pareciam-me todas iguais. Dei voltas e voltas. Pensei que ali os bêbedos forasteiros jamais encontrariam suas camas temporárias. Precisei de ajuda para chegar ao destino, ainda que tenha passado várias vezes diante da estalagem sem me dar conta. Tudo piorou quando perguntei a que horas era a cerimónia.
“Dez da manhã”, respondeu alguém cruelmente.
Dormi como uma pedra que se joga num poço. Nem sequer aqueles que engolem indutores de sono se apagam tão completamente. Sonhei com uma ideia para um conto de terror, onde vários amigos se perdiam em Paraty, após uma noite de festa. Não era uma boa ideia. Muito menos seria essa a história.
De manhã, abrindo as janelas e vendo, pela primeira vez, a vila iluminada pelo céu da costa, percebi que não havia mesmo espaço para narrativas sombrias ou personagens desgraçados. Eram nove da manhã e as nuvens, se as havia, teriam absorvido toda a escuridão do Lado Negro da Força. Tudo era luminosidade trespassando corpos, casas e oceanos. Até os saguins que visitaram a mesa do café da manhã, no pátio da estalagem, sabiam disso. O dia era de festa.
O barco que saiu do porto transportava convidados do Rio Grande do Norte, do Ceará, de Pernambuco – uma senhora explicou-me com afinco que o bolo de rolo era património palpável pernambucano. Havia paulistas e cariocas; portugueses e angolanos emigrados no Brasil. Havia portugueses que viajaram de Lisboa e que, em pouco tempo, se sentiram em casa. Havia alemães que, certo e seguro, apanhariam um escaldão durante o passeio de barco. Havia escritores, jornalistas, vários contadores de histórias e um sem fim de fotógrafos. Havia tantos sotaques e maneiras diferentes de dizer as coisas, uma miscigenação que apregoas mas também protagonizas, porque além de português e catalão, o tio da noiva garantiu que eras já brasileiro e nordestino.
E depois há Maíra, a tua mulher. A primeira vez que a vi, numa livraria carioca, dei-me conta, de imediato, do seu sorriso que se estende pelo corpo inteiro. Maíra sorri inteiramente.
Não sei até que ponto, num casal, as coisas em comum são decisivas para o triunfo do amor. Mas Maíra tem, como tu, esse sorriso que é também abraço, um sorriso que começa e acaba com luz – e não falo da alvura impecável dos vossos dentes. Falo da mesma luz que crias e recrias a fim de contar mais uma história. Maíra: a metáfora mais sublime desta viagem transatlântica, a mulher onde, como disse o próprio pai, “se encontra o poder do Brasil, a mistura de três raças”, a maravilha da bagunça genética, acrescento eu agora.
No dia em que deverias receber, Jordi, soubeste dar. Estamos mal habituados contigo. E da tua generosidade, garanto-te, fica algo muito mais marcante e memorável que a prosa de Schulz. Quando, daqui a vinte anos, tropeçar no nome do escritor judeu, saberei onde estava ao escutar as suas palavras pela primeira vez. Mas será a viagem a Paraty, o teu casamento, muito mais que a singularidade do estilo de Schulz, que me farão recordar esses dias. Não o pesar da finitude, mas a alegria da descoberta.
No barco, realizada a cerimónia, os teus convidados saltaram para o mar como moleques em primeiro dia de férias. Com ilhas tropicais ao fundo e balanço marítimo, a composição dos elementos parecia tão magnífica como certos quadros dos mestres: crianças brincando na proa, mulheres enroladas em cangas como princesas egípcias, gente nadando para a praia deserta, o torpor da boa vida, a densidade de tudo o que é efémero afirmando-se no gosto das caipirinhas, nas especiarias da moqueca, nos beijos na boca depois de um mergulho.
Enfrentas o lixo do mundo no teu ofício mas procuras sempre o brilho mais límpido da história, aquilo que acrescenta, não aquilo que subtrai. Talvez por isso sejas uma criatura anacrónica nesta era de apodrecimento jornalístico. Não te vejo, no entanto, amargado, desistente, contaminado pelo facilitismo. Sabes, tão bem como eu, que aqueles que encontram aquilo que amam e fazem disso a sua vida, são privilegiados. Há quem transforme essa dádiva em arrogância. Para ti, é uma graça, e por isso o dia do casamento foi tão fiel a tudo aquilo que tens feito. Um dia bonito, num lugar magnético, com centenas e centenas de histórias para contar entre as pessoas que ali estavam. O angolano que, num sotaque tão fragante de mangueiras e vogais abertas, nos alertou: “Comes uma coisa que gostas e dizes ‘Soube-me bem. Aqui no Brasil ninguém percebe.” A portuguesa que, em noite de lua cheia, confessou que a sua primeira palavra não foi ‘mãe’, ‘pai’ e muito menos ‘escanifobético’, mas sim ‘lua’. O repórter brasileiro que, com a mestria de um Truman Capote tropical (e bem mais viril) me manteve preso na lâmina do seu relato, contando-me sobre a investigação de um homicídio que saiu nas notícias.
Se, como afirma um escritor americano que tanto gosta de Portugal, as boas histórias só aparecem a quem sabe contá-las, tu és a prova mais concreta dessa verdade. Eu regressei de Paraty, do teu casamento, ainda mais rendido ao milagre redentor da beleza, esperançoso nos avanços da humanidade, capaz de escrever uma triologia de romances e cinco odes triunfais. Cheguei ao Rio atropelado por cinco horas de ônibus e em estado de ressaca acumulada. Mas cheguei carregado de histórias.
Qual é, então, a história, Jordi?
É tão simples, a sério, tantos quilómetros viajados para te dizer somente isto: é uma história de amor. Mas isso, meu irmão, tu sabias desde o princípio.
Published on May 11, 2012 06:12
April 25, 2012
25 de Abril
- O que levas na torrente do teu sangue? - São cravos, senhores, são cravos.
Published on April 25, 2012 06:07
April 18, 2012
Johnny be good
1
Johnny nunca vira um elefante na savana embora tivesse sido concebido em África, num território onde os paquidermes eram comuns.
Johnny olhou para o animal, que não tombou com o primeiro tiro. Johnny só começou a correr após o segundo disparado, como todos os jornais viriam a relatar mais tarde.
2
Há vinte e três anos, a mãe transportara Johnny, ainda alimentado pela placenta, entre o continente da fome negra e a promessa do continente branco, numa patera, com mar calmo e desembarque nas praias mediterrânicas durante a noite. Foi apanhada pela polícia, mas como estava grávida não podia ser deportada.
Johnny cresceu na Europa vigorosa da indústria automóvel, do advento das telecomunicações, das obras públicas que davam trabalho aos que chegavam de fora, como a mãe de Johnny, que viveu em três cidades europeias, até se casar com um primo, e montar um mercado com produtos do seu país.
Johny era bom aluno, cidadão com passaporte, um exemplo da integração e do modelo de desenvolvimento. Terminada a faculdade, foi escolhido no processo de seleção para ajudante pessoal do monarca do país. Já não vestia sua alteza da cabeça aos pés, como aconteceria séculos antes, e teve uma notoriedade incomum para o posto que ocupava. Os jornais fizeram perfis sobre o rapaz africano, que atravessara Gibraltar na barriga da mãe – uma família que cruzou a Europa até que, apoiada e motivada pelo sistema e pela bondade das gentes, conseguiu que o filho frequentasse os mesmos salões com chefes-de-estado, estrelas rock, celebridades cinematográficas, atletas de primeira linha.
3
O segundo tiro não acertou no animal. O elefante seguiu caminho, foi perdendo velocidade, cambaleava como os bêbedos, tombou junto de uma árvore que Johny não sabia o nome mas, estava seguro, vivia ali há mais tempo que toda a comitiva do safari em que participava o monarca.
Johny tinha uma namorada. Pensava casar e, mais tarde, depois do estágio com o rei, abrir um negócio, como fez sua mãe. Johny correu, por fim, mas não para o monarca, que jazia no pó, sangrando da cara porque a arma, com defeito, rebentara no momento do segundo disparo.
Johny correu para o elefante e, mais tarde, os jornais e as televisões repetiram o relato desse detalhe como a mesma insistência com que um adolescente relembra a sua primeira experiência sexual nos dias subsequentes ao extraordinário evento.
Contrataram-no para fazer anúncios de produtos orgânicos, de carros amigos do ambiente e de bancos e companhias de energia que se esforçam por dar miminhos aos clientes em função de um mundo melhor e sem poluição.
4
Johny ficou famoso.
O rei desfigurado.
E um cronista social, malvado e megalómano, tornou famoso o cognome do rei, aquele pelo qual ficará conhecido nos manuais de história: “Trombinhas”.
Houve manifestações nas redes sociais e em certas ruas por causa do incidente com o elefante. Escreveram-se crónicas a favor da caça e outras em desprimor da raça. Homem que é homem mata o que come, diziam uns. Vais pedir um double cheese de elefante?, diziam outros.
Johnny foi despedido, meses depois, quando ninguém já se lembrava dele ou do animal assassinado. O rei chamou-o e disse:
“O senhor preferiu ir em resgate do animal do que salvar o seu monarca.”
Trombinhas tinha saído, recentemente, de uma plástica de sucesso que, no entanto, não o impedia de parecer o Homem Elefante.
“O animal, como se percebe pela ação da justiça do Acaso na sua tromba, é vossa alteza. Diria mesmo uma real cavalgadura (sem insultar os equídeos) e uma majestosa bosta de vaca (igualmente sem desprimor para o trânsito intestinal dos bovinos)”.
5
Johnny abriu um mercado, teve um filho e jamais se mudou para África ou voltou a ver um elefante na savana. Quando o rei morreu, engasgado na azeitona de um dry Martini, a bordo de um iate onde pescava tubarões, Johnny fugiu do luto oficial e das cerimónias nas ruas. Levou o filho ao zoológico. Não era a savana nem havia árvores ancestrais, mas Johny habituara-se, há muito, que a procura da excelência pode ser frustrante. O zoo servia.
Desrespeitando os cartazes que pediam para não alimentar os animais, Johnny deu amendoins ao filho e disse que os atirasse na direção dos elefantes.
Johnny inquietou-se, pensando se, no futuro, o seu filho seria caçador, se abandonaria um cão, se compraria bilhetes para a tourada.
Depois, um pensamento deu-lhe algum descanso:
“Quanto à forma como o meu filho irá tratar os animais, está tudo em aberto. Mas ao menos sei que não tem a sina amaldiçoada de um dia ser rei.”
Published on April 18, 2012 12:09
April 17, 2012
Folhetim eletrónico do viajante Joaquim Paixão Leal Filho
Conheci Joaquim Paixão Leal Filho no início deste ano e, desde então, reparei como falava dos mais variados assuntos de uma forma epistolar. Se por acaso nos encontrávamos num boteco, era capaz de dizer-me: “No outro dia escrevi ao meu pai para lhe contar que o Benfica tem uma barraca na praia de Ipanema” ou “Mandei um email ao meu irmão para dizer-lhe que aqui gordura é formosura” ou “Hoje recebi notícias da minha mãe, foi a uma palestra do Paulo Coelho, em Zurique.”
Não sendo amigos, já tínhamos partilhado várias festas e mesas de esplanada. Juntava-nos, além da nacionalidade, o facto de nos conhecermos, embora sem nunca nos termos cumprimentado, desde a adolescência. .
Um dia, na festa de uma amiga no Alto Leblon, perguntei-lhe porque falava daquela maneira, referindo-se sempre à correspondência que mantinha com familiares e amigos.
“Não me tinha apercebido disso”, comentou.
Sendo eu, há pouco tempo, editor no Rio de Janeiro, farejei ali uma oportunidade.
“Tu tens lábia e sabes contar uma história. Aposto que tens muita coisa escrita.”
“Nem por isso, além dos emails, não tenho mais nada.”
Pedi para ler os tais emails e, na semana seguinte, propus editar um livro com a sua correspondência eletrónica dos últimos dois anos. Ele disse que não, que não ia estragar papel ou matar árvores e que não via o interesse da publicação.
Uma semana após ter recusado, ligou-me e perguntou:
“E se for num blog?”
“Eu tenho um blog.”, respondi.
“Logo vi.”
Ficou acordado que Joaquim escolheria os emails e que poderia apagar nomes ou algumas referências que identificassem terceiros – mais ou menos como desfocar a cara das criancinhas nas revistas de ficção e coscuvilhice social. Todas as semanas me mandaria três emails, eu poderia não publicá-los, se apresentasse uma razão válida.
“Tipo quê?”, perguntou ele.
“Tipo serem uma merda.”
No dia seguinte recebi os três primeiros textos.
Desde Janeiro que as encomendas não param de chegar semanalmente.
Começo agora a publicar alguns desses emails.
Quando perguntei porque tinha mudado de ideias e resolvera tornar pública a sua correspondência, Joaquim Paixão Leal Filho, respondeu:
“Vá se lá saber, apeteceu-me.”
(muda de ideias amiúde e tem revelações como se fossem gases)
“E além disso os livros têm demasiada dignidade para mim. Eu preciso de bas-fond. Os blogs são o bas-fond das belas letras, como tu.”
Entre as muitas coisas que se podem dizer de Joaquim Paixão Leal Filho, uma parece-me hoje a mais evidente. Nunca sabemos ao certo quando está a gozar connosco, com a mesa do lado ou com o mundo inteiro.
Feliz Ano Novo
Santa Teresa, Rio de Janeiro, 01 Janeiro de 2012
Querido Pai,
Gostaria de lhe dizer que estou com uma daquelas ressacas que nem um bloody mary do avô Domingos ou sequer uma omelete mista da Cleonice poderiam curar, mas a verdade é que me apresento tão saudável como os velhos imortais que madrugam para correr na orla de Copacabana.
O pai não tem nada a ver com estes maratonistas da terceira idade (desculpe se lhe estou a chamar velho, mas já conta com cinco netos e duas operações de peito aberto). Isto é gente que não aceita barrigas, matadores profissionais da caloria, uma rapaziada com muito amor pelas atividades ao ar livre.
O pai, que sempre preferiu bares e casinos, talvez não se interessasse muito pelo Rio de Janeiro, mas ontem aconteceu qualquer coisa de excecional que pode alterar o meu movimento perpétuo de nomadismo. Perdi a conta dos países por onde passei nos últimos dois anos. Tudo se esgotava rapidamente, como se entrasse num centro comercial para uma sessão de compras – em vez de sapatos adquiria experiências com cogumelos nas escarpas verdes das Astúrias, em vez de joias recolhia o amor e a amizade de outros viajantes em comboios e pequenos quartos atafulhados de mochilas, em vez de eletrodomésticos, telemóveis e aplicações, colecionava a diferença, a marginalidade, o luxo como prémio e o prazer como ofício.
Ontem choveu muito. Passei o fim de ano numa cobertura do Arpoador, com vista para os fogos-de-artifício. Havia dezenas de cruzeiros na baía, milhões de pessoas nas ruas da cidade.
O pai sabe como sou praticante ferrenho da autopsicoterapia de pacotilha (o pai fuma charuto, eu tenho meus vícios), e quando, depois da meia-noite, vi as manchas de luz desbotada pela chuva em vez da pirotecnia em todo o seu esplendor de réveillon, quando olhei à minha volta e vi mulheres bonitas, copos ao alto e corpos em saldo, champanhe tão caro que nem o pai estaria disposto a pagar por ele, percebi finalmente que já nada pulsava de emoção, percebi que estava tão apagado e aquém de mim como como os fogos-de-artifício na noite chuvosa do Rio – muita pólvora e pouca chama.
Um psicoterapeuta poderia suspeitar que se tratava de início de depressão. Sei que o pai me diria para arranjar um emprego ou um passatempo (xadrez, pesca, jiu jitsu?) e que a mãe voltaria a sugerir que me casasse com ---------, mas garanto-lhe que não temos diante de nós um típico caso de spleen. Não só estou no século errado para sofrer de aborrecimento de classe, como me molestam cada vez mais as pessoas que, tendo tudo, não se saciam com nada.
Há dois anos que viajo e antes que o dinheiro que ganhámos (e o ócio a que nos entregámos) possa tornar-me indolente e queixinhas, decidi fazer alguma coisa.
A grande notícia é essa, embora não lhe saiba dizer exatamente qual será o meu propósito.
Só posso dizer que, na noite passada, saí da cobertura sem beber mais que um gin tónico e fui passear para a praia de Ipanema.
Caminhei pela areia como se atraído pelo magnetismo do morro Dois Irmãos, cujo topo estava envolto numa película de nuvens peganhentas e chuva molha parvos. Não sei como dizer-lhe o que se passou, mas (como lhe contar isto?), olhe, tive uma ereção.
Há aqui um poder no mato, uma pujança na terra, nas pedras, nas cachoeiras e no voo dos urubus.
Isto aqui é diferente. Espero, em breve, poder explicar-lhe com mais precisão e propriedade do que falo. Só aqui estou há uma semana e por agora trata-se de um palpite, de uma intuição física – a tal ereção? (Acha estranho que me tenha acontecido isso? O avô dizia que andar de pau feito era sinal de saúde e boa esperança. Mas o avô elevou essa certeza ao paroxismo anedótico: morreu num bordel das Filipinas com 79 anos.)
Talvez esta coisa das ereções desprevenidas em momentos de mudança seja apanágio da família. Há quem tenha manchas de pele que passam de pai para filho, um determinado tipo de nariz, as mãos e os pés idênticos, mas nós, os Paixão Leal, sentimos tusa caso se nos ocorra uma epifania.
Ontem não dormi sozinho, mas também não me apaixonei.
É nesta cidade, pai, que tanto tresanda a lixo como cheira a maresia, que tanto nos tolhe o passo como nos atira ao céu, é nesta cidade que ficarei nos próximos meses. Se decidir passar com o seu barco por estas margens, avise-me. Este é o meu número brasileiro 21--------, ligue-me quando quiser. Gostaria muito que percebe na pele aquilo que sinto – lembro-me agora que, ao falar-me dos seus tempos em África, me descreveu essa pulsão física para abraçarmos árvores, essa pequenez, e ao mesmo tempo pertença, se mergulhamos na imensidão do mato e do oceano; ou o clima colado na pele e os cheiros mais molhados, mais pungentes, um mundo onde se respira outro tipo de ar, o céu cor de enxofre um segundo antes da tempestade, os pássaros que soam como buzinas de camiões antigos sempre que nasce e se põe o sol (ainda não consegui descobrir como se chamam essas aves que ouço em todo o lado.)
Por agora, estou em casa de um amigo escritor. É um holandês que enriqueceu com estufas de cannabis e, como nós, escapou da crise com a conta bem almofadada. Há dois anos que vive aqui, em Santa Teresa.
Mas isso dá outra carta. Desejo-lhe um feliz ano novo. Tenho saudades, o seu filho
Joaquim
Published on April 17, 2012 12:42
April 12, 2012
Manifesto do feminista (parte 1)
O feminista manifesta o seu amor pelas mulheres todos os dias.
O feminista ama todas as mulheres. Umas mais que as outras.
O feminista ama uma mulher.
O feminista não é um grouppie das mulheres – é um apreciador, um contra-peso, o oponente e o parceiro, aquele que celebra a beleza do que lhe é contrário.
O feminista devora o corpo e cuida do resto.
O feminista cuida do resto com carinhos sem ter fim e algumas qualidades culinárias.
O feminista antecipa as necessidades, prescreve o antídoto para os amuos, também segura forte nos pulsos depois de fazer as pazes.
O feminista não aproveita o ônibus para encostar a mão, não cospe piropos babados, não faz cerco quando as mulheres dançam na pista.
O feminista não força, não enquadra contra a parede, entende com a razão e o instinto quando lhe dizem "não".
O feminista força, enquadra contra a parede, quando faz parte do jogo.
O feminista pode partir a cara de um homem que levante a mão para uma mulher.
O feminista diz sempre que sim quando uma mulher lhe pede para passar à frente para ir no banheiro dos homens.
O feminista olha, aprecia, mas não persegue.
O feminista deixa bilhetinhos a mulheres em cafés.
O feminista gosta de dar prazer.
O feminista gosta de ter prazer.
O feminista, no que se refere à depilação feminina, segue o aforismo popular: se cabe no biquíni, cabe na minha vida.
O feminista tem fetiche com sapatos de salto.
O feminista abre portas, levanta-se da mesa para cumprimentar, não se importa que vá ela dirigindo, é cavalheiro mas jamais membro de um clube exclusivo para homens.
O feminista não tem afecto pelo Photoshop nem por botox, não se importa com estrias, percebe a atracção das cicatrizes, das marcas, do peito descaído.
O feminista não joga golf, não usa écharpes, não faz juízos.
O feminista não queima soutiãs, desaperta-os sem encalhar no fecho, com a destreza de um joelheiro e a arte de um pianista.
Published on April 12, 2012 06:27


