Pedro Guilherme Moreira's Blog, page 63

January 31, 2012

O esquecimento do "infim" a Torga

Chatice. Era uma tradição muito minha que ia fazer 16 anos (um menos do que os que passaram desde a morte de Torga). No dia 17 de Janeiro de 1995, ao saber da morte do poeta, escrevi-o na cabeça ao regressar da faculdade por uma rua íngreme que apanhava uma vista da baixa coimbrã antes de se fundir na Corpo de Deus, onde morei no último ano de curso, em frente à Bambi das malhas, num quarto andar sem elevador de onde se via o basófias. Estava triste por razões pessoais: era uma excitação quando apanhava o trólei 3 para ir ao quarto antigo antes do jantar - era o mesmo que o Dr Adolfo apanhava para vir do consultório que tinha na baixa. Para mim, não era normal nem podia ser verdade que o Torga do Miúra era de carne e osso em vez de apenas mito. Mas ele ali estava, quase todos os dias, no trólei 3. Podendo, sentava-me em frente a ele e só uma ideia me ocupava o pensamento durante os dez minutos da viagem: "fala com ele, fala com ele, fala com ele, fala com ele". Nunca falei. Depois ele deixou de aparecer. Depois morreu. Se me esticasse no parapeito do meu quarto da Dias da Silva, conseguia ver o quintal da casa dele. Mas deixei de morar nos Olivais em 1993 - e deixei de apanhar o trólei 3. Não assisti ao desaparecimento gradual do Torga. No dia em que morreu, escrevi este soneto e comecei a publicá-lo na internet todos os 17 de Janeiro, desde 1996, quando a internet ainda era uma coisa rara, estranha e distante para a maioria das pessoas. Falhei este ano, pela primeira vez. Emendo a falha com esta pequena história, que também conto pela primeira vez.
O INFIM


Foi um dia azul, cinzento e vermelho,
que o Belo topou, descendo em desdém,
às curvas já cem de um caminho velho,
um homem que leu pensando ninguém;


Lançou-lhe uma luz sobre o casario,
e o homem parou, por sobre um sorriso,
cheirando a visão, dos lados do rio;
"Poemas remando os barcos do siso,


O guarda desguarda a ausência do posto,
o monte está nu do andar do pastor,
e até o tal Sol tem sombras no rosto;"


E o sino falou calado o clamor:
"Que um cipreste seu de seiva nos crive."
Nem Torga morreu, nem a morte o vive. 


Pedro Guilherme-Moreira 
17 de Janeiro de 1995 


foto de Daniel Tiago, retirada daqui
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Published on January 31, 2012 10:36

January 30, 2012

Plátano

que nem o teu desesperonas tardes frias de chuvanem essas mãos a tremersobre as cartas que escrevinem os plátanosque te deixam no outononem a vigília do infernonem a indolência do céunem a dor da madrugadanem dúvidassobre o que nascecertezassobre o que morrenem memórias, por mais doces,nem absolutamente nada
meu amor te dê a dúvidade que te pertenço e ficopara lá do fim da noitee que até no tempo infindo
só os teus lábios me abrandamsó os teus beijos me calam
PG-M 201230-01-2012fonte da foto
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Published on January 30, 2012 00:01

January 25, 2012

Os pés a arrastar

Passa por mim com um semblante digno, grave, lábios pintados, olhar em frente, veio do wc e já pagou o café, vai percorrer alguns metros sozinha no passadiço junto ao mar, na íris já não lhe consigo ler a inocência como até há bem pouco tempo, apenas uma vida de sofrimento, as mãos deformadas, e agora isto, a trombose, o avc, os pés a arrastar, os passos pequenos, tão pequenos que são menos de metade dos de um bebé que começa a andar. Melhor: já não são passos, são pés a arrastar, só isso.Quando na cara já não vemos conhecimento, tendemos a desinteressar-nos e a enterrar a pessoa viva no talhão do nosso próprio subconsciente. Mas quando é assim soa um alarme.Aos setenta queria cá estar. E se cá estiver não queria arrastar os pés nem enfiar nos ombros o pescoço que já não suporto, mas se tiver de ser quero ter esta dignidade no olhar.Só peço mais leveza na expressão.E não me importo da comoção no olhar de um jovem.Tentarei sorrir e talvez lhe agradeça.
PG-M 2012fonte da foto
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Published on January 25, 2012 15:14

January 23, 2012

Carnificina de salão

A primeira mensagem vai para quem gosta de ver filmes que prendam à cadeira: este é um.A segunda mensagem vai para quem gosta de ter um olhar crítico sobre si próprio: o filme é um espelho da classe média ocidental.A terceira mensagem para espectadores normais que não gostam de filmes "malucos" a alternativos: o que este filme tem de notável é usar situações banais, que experimentamos todos os dias, para nos mostrar como estamos sempre perto de quebrar e de mudar.O filme é visto com um sorriso permanente nos lábios porque está bem escrito e tem grandes actores que estão bem dirigidos por Polansky. São pouco mais de sententa minutos que parecem quinze. Apetece mais, muito mais. Apetece sair por aí fora. De qualquer forma, a aspiração ao simbolismo, tão criticada em qualquer arte mas normalmente ambiciosa e difícil de atingir - frequentemente procurada por Polansky -, faz com que neste filme tenhamos mais paradigmas do que realismo estrito.Está também assente que a Kate Winslet é para casar. A Jodie Foster tem, no meu entender, o melhor papel de muitos anos, assim como o John C. Reilly. O Christopher Waltz chegou agora às bocas do mundo, já ganhou o óscar e mais uma quantidade de prémios e merece mais - é grande e vai ficar como uma das referências da sua geração de actores, o que é notável para um austríaco, o terceiro mais famoso desde Hitler e Schwarzenegger. O filme, que ainda não foi mencionado, mas levou em português o excelente título de "O Deus da carnificina" (o título da peça original de Yasmina Reza, e o bom gosto de o traduzir fielmente) expõe-nos de forma perturbante (mas leve e cómica - somos nós que trazemos o filme no pensamento e o aprofundamos, se quisermos) a comédia e o drama dos micro-nadas dos nossos dias, dos nossos relacionamentos, do nosso papel como pais e maridos e mulheres, dos nosso vícios e dos nossos tiques, dos nossos limites. Imperdível, claro, ou não se escreveria sobre ele.
PG-M 2012fonte da foto
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Published on January 23, 2012 00:16

January 22, 2012

Nunca digas livros nunca

Há uma razão para neste blogue a regra ser não escrever sobre livros.E também há uma para que um advogado fascinado com as - e praticante das - novíssimas e criativas estratégias de Direito preventivo não ter o mínimo jeito para executar estratégias no meio literário:é que, por selvagem e supranumerária que esteja, a advocacia ainda tem uma ética e uma urbanidade. A ética é até protegida por lei. E os advogados - com as excepções que confirmam a regra -, mesmo quando se atacam, devem fazê-lo com a ética e a urbanidade que os regulam.A literatura, se teve ética e urbanidade, há muito a perdeu. Da bondade nem se fala. Claro que, em profissões onde não há regulamentação, ética ou urbanidade, espera-se dos seus melhores elementos o exercício desses valores de forma individual, dando o exemplo aos demais.O problema é que o meio literário é demasiado atractivo e charmoso para que os vaidosos se contenham. Então chega-se a um ponto em que não é possível um saudável convívio social: estar no meio literário com inteligência é estar fora dele. Os próprios escritores dizem uns aos outros: não te preocupes com isso, escreve. Escreve apenas. Afinal, o escritores já não são o topo da "cadeia alimentar". As mais das vezes são tratados como uma "liability". Uns chatos. Melgas. Há uma razão para neste blogue a regra ser não escrever sobre livros: a ética e o conflito de interesses mandaria sempre escrever generalidades. Escrever bem ou mal sobre este ou aquele, por mais que a opinião seja legítima, nunca permitiria vencer a triste (mas necessária) regra da mulher de César. Sob anonimato sim - aí está uma excelente aplicação do anonimato - caso a preparação técnica e os conhecimentos técnicos fossem vastos, mas aqui conhece-se demasiado bem a ignorância para pensar sequer que seria possível lá chegar. Finalmente, quem quer escrever a sério tem de trabalhar muito: já basta as conquistas que por cá se fazem ao tempo do Direito e estes dias têm vinte e quatro horas e um só estômago. Assim, o prazer dos livros, essa infinita gulodice, é passeado nas livrarias, em silêncio e tantas vezes em êxtase.  Não há tertúlias na selva.
PG-M 2012fonte da foto

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Published on January 22, 2012 23:48

January 21, 2012

Eliminar o terreno

Dizer que as redes sociais não são nada, é cabotino. Dizer que são tudo, perigoso. É como a vida, sim, mas não deixa de ser uma exposição forçada. É verdade que a porta da minha casa nem para os amigos está aberta: prefiro dar a vida pelos amigos indo ao encontro deles, mas deixar esta reserva como o que ela é: sagrada, onde podemos ser frágeis sem vigilância. Na vida pública, redes sociais incluídas, onde me encontro entre pessoas que venero, tenho a porta aberta a todos e conheço apenas uma parte dos meus inimigos - aquela que me prejudicou sem margem para dúvidas. Conheço poucos, e quase todos estão convictos de que eu não sei o que me fizeram. Não falo de certas personalidades vaidosas que se acham demasiado importantes para nos passar cartão: falo de gente pérfida. O meu defeito é nunca dar essa tema por encerrado e manter uma perene abertura para que a elevação compareça e tome a mesquinhez. Uma amiga veio trazer-me em privado o conforto das seguintes palavras de Sun Tzu: "A suprema arte da guerra é derrotar o inimigo sem lutar." Aplico este ensinamento todos os dias na advocacia, mas não sei como na literatura, onde não encaro como boas as artes da guerra, mesmo as sábias. Num mundo de palavras, não posso usar ou colocar mordaças a quem quer que seja. Também não me dou qualquer importância, sendo que um parágrafo desta extensão já me parece pouco avisado - é que os frustrados e ressabiados também se fartam de escrever por essa internet fora. Verdade que os sonsos pouco escrevem, os pérfidos deixam parágrafos bem urdidos e sempre para ferir e que os benevolentes nada temem. A minha arte de guerra, se quiserem, é, por ora, eliminar o terreno e eliminar-me a mim próprio como adversário. Medida sanitária fundamental para deixar tempo para as coisas importantes que tenho em mãos. Tenham uma boa semana e aceitem um antecipado e profundo agradecimento - são tantos os que, pressentindo um coração (baaah, que lamechice:) em sobressalto acorrem a serenar:). E contam comigo, ah se contam. PG-M 2012
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Published on January 21, 2012 22:48

January 20, 2012

todo o poeta é temporariamente morto


surdospoucosmuitos conhecem este e aqueleabsolutamente todos os abraços e palmadas entre o herberto e o antunes, as costas laminadase ditam, exaltam e dizem "obra definitiva"gente importante a medir livros como miúdospilascom um ardor no peito, esse arrebatamento que carece detestículose pêlosno cue porto e ponte e foz
todo o poeta é temporariamente corpotodo o poeta é temporariamente morto
PG-M 2012 (!)
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Published on January 20, 2012 16:00

liberdade a frio

Hoje tirei as sapatilhas para correr descalço por dentro da rebentação e não me soube bem:
a água do mar está gelada.
Mas, tal como a liberdade, fica a sua impagável metáfora:
nem sempre estar livre é doce ou fácil, mas é sempre melhor do que o constrangimento de estar preso ou ser de alguém ou de alguma coisa.


PG-M 2012
fonte da foto




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Published on January 20, 2012 15:48

January 16, 2012

Seriously (Globos de Ouro 2012)?

O que ressalta nos Globos de Ouro 2012 é a forma como vamos sendo desinformados de há uns anos a esta parte. Era bom que as agências noticiosas que fazem o sumário matinal tivessem tido jornalistas a ver a cerimónia, mas as mais das vezes colhem a informação pela mera consulta (na diagonal) da lista de prémios, havendo frequentes confusões entre drama e comédia, televisão e cinema. A Michelle Williams, por exemplo, com a sua brilhante prestação e vitória pelo papel em que encarna Marilyn Monroe, foi omitida em quase todos os serviços noticiosos, que esqueceram a distinção entre comédia e drama. Vai daí, se queremos mesmo estar informados, temos de ver em directo ou ler jornais estrangeiros. Eu vi em directo pela primeira vez, e posso dizer que pode ter sido a última. É uma cerimónia apressada, alcoolizada e sem emoção. Nem o "glamour" da passadeira vermelha a salva. Ouvi dizer um comentarista - que, claramente, também não tinha visto em directo - na televisão portuguesa que "é uma cerimónia mais descontraída e em que os discursos são menos controlados". Usando uma expressão de espanto tão em voga nos EUA: seriously? Os discursos são ainda mais contados e cortados. Quem me vai lendo nesta página deve saber que acompanho os óscares em directo há vinte e seis anos, vai para vinte e sete. A cerimónia de 2010 foi absolutamente fascinante, mas mesmo a de 2011, que foi das piorzitas dos últimos anos, mete estes globos no bolso. Nem é pelo excesso de categorias: ao faltarem muitas técnicas, e ainda que haja essa "dicotomia" drama/ comédia, cinema/ televisão, os globos equiparam-se aos óscares em categorias (vinte e muitas).O que desiludiu foi a sensação de "enlatado" de cervejita na mão. E, sinceramente, fora o justíssimo prémio para a Kate Winslet, por Mildred Pierce (completamente omitido nos tais resuminhos), nada de entusiasmante ressaltou. Valha-nos o São Ricky Gervais, que apareceu muito pouco desta vez. E a Sofia Vergara. Também é comum dizer que são o prenúncio dos óscares: serão, mas não porque os votantes sejam visionários: apenas porque os lobbies são fortíssimos. E já alastram para os Bafta e para os Césares. Era bom que, pelo menos, deixassem os Goya em paz, que eu ando a visionar a lista de premiados dos últimos anos e ainda me tenho surpreendido com muitos filmes. Este é o ano em que o mundo, definitivamente, se americanizou. Se franchisou em EUA. Vocês ainda acham que "L'artiste", um dos vencedores do ano, é francês? Sabiam que o título orginal é mesmo em inglês: "The Artist"? Valha-nos a melhor notícia cinematográfica da década, até ver: William Edward Crystal volta para nós e apresenta a cerimónia 84 dos óscares, a 26 de Fevereiro de 2012, no Kodak Theatre. Ainda bem que o Eddie Murphy se chateou com os tipos. Ter o Billy Crystal de volta é, só por si, dois terços da emoção deste ano. É, juntamente com Bob Hope, o apresentador de óscares do século XX que nos vem, inesperadamente, visitar ao século XXI. Está mais velho e, não tenho dúvidas, melhor do que nunca. Até lá.
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Published on January 16, 2012 23:02

January 13, 2012

Michelle Monroe

Uma das coisas que sempre evoluiu com os anos, agora décadas, de amor que tenho dedicado à mesma mulher foi Norma Jean Baker. Foi a minha mulher a primeira a desviar-me da Marilyn Monroe e a fazer-me olhar o fenómeno pelos lados, pelos cantos, pelo verso. Podemos opinar, podemos até detectar, numa só cena, a raridade do objecto que admiramos, mas para perceber do que estamos a falar temos de ver os filmes todos, se possível por ordem cronológica. E foi o que nós fizemos, como jovem casal de namorados sem muito para fazer: coleccionamos todos os filmes da Marilyn Monroe, que não são assim tantos - nem podiam ser, tal era o extremo a que ela levou todos, sem excepção, e a que a levaram a ela - e vimo-los. E vimo-los outra vez. Deixamos, claro, "Os inadaptados" - o filme maldito - para o fim. Que nos trouxe as virtudes do "método" para a eternidade. Foi o filme que deixei que me marcasse mais, vida fora, até ao "Túmulo dos Pirilampos", que até hoje não encontrou parceiro (e dificilmente encontrará). Michelle Williams, no filme "A minha semana com Marilyn", interpreta uma actriz baça, por mais que a iluminação e a fotografia lhe concedam brilho. Se é de propósito, é genial. Todos sabemos que é impossível imitar Marilyn Monroe - Angelina Jolie, pouco corajosa e, ela própria, a estrela universal de hoje, recusou o papel -, e nenhum realizador o quer: os "copycats" estão fora de moda. Na moda estão as aproximações viscerais: não vai ser fácil ultrapassar, no corpo inteiro, a Edith Piaf de Marillon Cotillard, justamente premiada com um (inesquecivel) óscar. Michelle talvez não mereça o óscar que lhe querem dar desde "Brokeback Mountain", e que ela merecia por Blue Valentine.Talvez não o mereça por este filme, embora seja notável o seu trabalho de composição, que se torna cada vez mais complexo à medida que o filme avança: Simon Curtis, um realizador de televisão por excelência, mais uma vez, deixa-nos na dúvida se fez ou não de propósito, mas eu gosto da ideia de estranheza e desconforto que nos causam as primeiras cenas de Michelle Wiliams, e da imersão a que ela nos leva à medida que o filme avança, culminando no banho nua. Michelle é uma perfeita Marilyn nua. Já o vinha sendo vestida, com a sua barriguinha, com os pneuzinhos no sítio certo, excessiva, mais do que adorável, que nunca é. É talvez porque vi (e li) tanta Marilyn, porque a passei a situar debaixo da pele e a trago como uma espécie de pin na lapela de cinéfilo, que me entreguei à experiência deste filme com um raro prazer. Será por ser homem e a Michelle ser um deleite? A minha mulher ficou algo desiludida, eu ia preparado para isso, mas o filme superou largamente as minhas expectativas. Porque é um bom filme. Imperdível para os fãs, mas imperdível, acima de tudo, para os que não o são.

PG-M 2o12fonte da foto
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Published on January 13, 2012 23:25