Pedro Guilherme Moreira's Blog, page 54

September 9, 2012

a beleza não cabe nos corações humanos



a beleza não cabe nos corações humanos.
quando se instala transborda
e os resíduos desse líquido contaminam os corpos e geram animais loucos ou apaixonados ou ambos, não é segredo que é incurável, e há quem a tente tratar (à beleza) ficando gelado, e há quem a tente tratar ficando apenas triste, e há quem a tente tratar fodendo tudo o que ama, e há simplesmente quem ame, admire e cuide do que lhe atravessou o peito, o que, apesar de poder ser apodado por alguns como a mais frágil e provisória das soluções, é a única possível. o portador da beleza só pode agradecer a sorte e viver com esse peso. porque a beleza, apesar de não caber nos corações humanos, não acontece a todos
nem acontece sempre.

(há os que sabem desviar rios, mas dotes raros não contam)

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Published on September 09, 2012 14:38

September 6, 2012

Sanidade

Eis o devir literário em que deixei de encontrar quem  relativizasse. Todos estão certos, demasiado certos de si. Como diz Julio Ortega, no editorial do Babelia 1.084 (El País de 1 de Setembro de 2012), "(...) a tribo do gosto encarniçado revela o desequilíbrio afectivo (...)". Podia, mas não vou, replicar processos autofágicos fascinantes. Em tempos falei no denominador comum da bondade, mas não, não pode ser, porque não é bom quem deixa de ir ao encontro dos outros, não é bom quem considera que a sua atitude deve ter um aporte estético. A bondade não tem estética. Por uma vez, e na sequência da tangente traçada a García Márquez, ele que antes da fama vai em busca dos amigos para se assegurar das próprias escolhas, e depois do "Cem anos..." - portanto, depois da fama - conta com os amigos para o esconderem do mundo que o quer devorar pelas melhores e pelas piores razões. É doloroso que isso tenha acontecido pelo acaso do bom sucesso e pelo trauma da devassa. Aterra-me essa coisa da fama, mas aterra-me muito mais a devassa, por pequena que seja, e é tão fácil ser abusado ou devassado quando se quer e age em função do bem de todos. Por uma vez, e no preciso fim-de-semana em que o supra citado Professor Julio Ortega publica um quase-ensaio intitulado "A questão do gosto", em que diz, entre outras coisas, que "(...) o gosto é o último refúgio da boa consciência. Pelo resto é-se responsável: a má informação, desigual educação, capacidade de discernimento. (...). A crise, com efeito, exige um exercício crítico que parte dos nossos hábitos: põe-nos em dúvida, despidos pela violência da maior de todas as evidências: a nossa própria irrelevância. (...)". Alcanço a clareza de que para se ser bom ouvinte tem de se alcançar uma certa passividade, tem de se abandonar  locomotivas e passar para o vagão restaurante. Já aqui falei de uma amiga que, embora nutra por mim grande consideração e me considere bem formado, me diz que não a ouço bem. "Virtualmente" não ouço bem ou, se ouço, depressa esqueço. Melhoro,  com falhas, no cara a cara. E como cara a cara sou raro, e como a falta do bom ouvinte altercêntrico é flagrante  em tudo, também na postura literária deixa de fazer sentido escrever todos os textos a partir do próprio centro. Sou filho de um director de uma fábrica de móveis, como Scott Fitzgerald, nasci no mesmo dia de Marcel Proust. Seriam excelentes motivos para ter a certeza de que a história não se repete, mas são mais do que isso: são irrelevâncias. Curiosidades. Circo. Mas é do que mais se abusa na filosofia do nada de hoje. É o mesmo Ortega que escreve "(...) Hoje sabemos que o gosto pessoal é outra prova da nossa fugacidade. A história literária é, por isso, uma economia do esquecimento: só recordamos graças ao muito que esquecemos. Daí o melancólico espectáculo do desenganado escrever: trabalham para o esquecimento, não sem inspiração, legiões de opinadores encarniçados na precariedade. Sem ironia, enfatizam o seu trânsito ao reafirmar o seu gosto como medida de autoridade, essa ninharia. Por isso, as antologias são o jornal de ontem da literatura: como os prémios, os best-sellers e a moda, anima-as o ardor do esquecimento." E não bastasse este brilho para nos calar, tinha de ressaltar há minutos, num belo livro sobre dramaturgia de Joseph Danan, o mesmo perturbante diagnóstico, que também é um urgência para a sanidade, de Maurice Blanchot em "L´Écriture du desastre" (Gallimard, 1980, p122): "Temos passar por esse saber (teórico, digo eu) e esquecê-lo. Mas o esquecimento não é secundário (...). O esquecimento é uma prática." Esqueçam-me, pois.
PG-M 2012
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Published on September 06, 2012 16:59

September 4, 2012

Carta a García

Esselencia,Gabriel,Mestre,Essência,Colega,Amigo,
Nós por cá todos bem. Melhor. Espero que esta te encontre no momento em que a voz que te acompanha ta possa ler e que tu não penses como o Borges cego, porque a ti ainda só te falta a memória e é só de vez em quando. Qualquer escritor diria agora, neste passo e instintivamente, que melhor a cegueira do que a demência. Qualquer pessoa, que nós, os escritores, principalmente o mais certos de nós, temos a mania de ver rasas ao chão por oposição ao que se inspira e escreve nas alturas. Escrevo-te de la basura para te avisar que quase ninguém ouviu o que disse o teu irmão Jaime, e nas agências noticiosas internacionais apareceu só, e verteu para todas as notícias e depois entrou em todas as cabeças e alguns corações, que tu estás demente e não escreves mais. Pero Jaime não disse isso. Jaime disse que manténs o humor e estás rijo. Mas que crê que não escreverás mais, oxalá se engane (disse também). A memória está difícil. A demência cobre-te como uma sombra cada vez maior e os períodos de lucidez destapam-te a uma luz cada vez menor. Seja, Gabriel. Que no te voy a llamar Gabo, porque sou só um amigo universal. Em rigor, se eu estivesse aí dir-te-ia que já não andavas bom quando enjeitavas o "Cem anos...", tu tomarias uma pausa caribenha, mirar-me-ias gravemente sobre os óculos com o conhaque na mão e rebentarias numa risada - digo eu, que não te conheço e mais te invento e propago. Mas tu já não és de riso fácil. Odeias o "Cem anos..." porque te trouxe a fama que te trouxe a solidão não necessária que tu comparas à de um ditador latino-americano e resolveste n'"O outono do patriarca". O poder do ditador e o o poder da fama são parecidos. Mas fica sabendo tu - tu sabes - que estive a modos de chorar quando soube a história da velhota soviética que copiou os "Cem anos..." à mão e explicou que o fazia porque, para perceber quem estava louco, se tu ou ela, o livro tinha de ser escrito de novo, palavra por palavra. Elegeste-a na "Goiaba..." como a tua melhor leitora, lembras-te? Não te lembras. Parece-te que é esta a tormenta maior? O momento em que não consegues controlar a solidão necessária e, por isso, tens de deixar de escrever? Sinceramente, e ainda que andasses há quinze anos à procura do "Cem anos...", achei uma parvoíce pegada aquela de estares a caminho de Acapulco com a Mercedes e os miúdos e, subitamente, surgindo-te a estrutura do livro na cabeça, tenhas voltado para trás para o escrever, tenhas vendido o carro para pagar as contas enquanto nada ganhavas, e depois a tua mulher tenha pedido tudo fiado durante quase um ano, incluindo a renda de casa, para ela própria deitar o manuscrito no correio ao som da oração espontânea de "queira deus que não seja um romance mau e tudo tenha valido a pena". Liberalidade minha. Quão grandes são mulheres assim? Não se medem. Escrevo-te sabendo que nunca serei o único nem o primeiro nem o último. Ia até a dizer que talvez fosse o único que não me tinha por importante por escrever uma carta a García Márquez, mas a verdade é que me sinto muito importante por ter o que te dizer, ainda que o problema de qualquer escritor seja precisamente ter sempre o que dizer e não se saber calar ou, calando-se, o fazer no momento errado. Cobardes. Somos todos uma cambada de cobardes com a mesma pose de pontífices que acusas alguns críticos de ter, os mesmo que inventam enredos tácitos para os teus livros ou para os livros de um qualquer. Não somos nada, Gabriel. Olha lá como não somos nada. Somos a emoção de um leitor, portanto nada, porque a emoção é dele e isso é tudo o que somos. Existimos enquanto um bom editor, não importa se amigo, acreditar que falharemos bem. Porque todos os livros falham, mas só alguns falham bem. Tu chegaste ao ponto em que talvez a demência te proteja as rotinas terminais - diz o Jaime que te querem matar antes do tempo, mas todo o escritor depois da escrita é terminal. Se tu estás realmente depois da escrita, estás no ponto das rotinas terminais, e as rotinas podem proteger-te o tempo de estar como queres e com quem queres. Disseram-me que os teus vizinhos mexicanos continuam a ouvir-te as risadas de sempre. Mas isto sou eu outra vez a delirar, porque Pedregal de San Ángel é uma espécie de Beverly Hills e nos bairros de luxo as casas estão demasiado sozinhas, demasiado perfeitas e tristes para que os vizinhos se ouçam. Diz o Jaime que talvez não escrevas. E depois? Depois não queres falar onde decidiste morrer? Em Barranquilha nunca. Em Aracataca não, por causa do medo dos fantasmas. Em Nova Iorque és pária, e nem a La Coupoule parisiense, que era o lugar dos teus outonos e por isso teria todo a pertinência metafórica, valeria a despedida. Talvez o México seja o teu lado de dentro. Escrevo-te para te dizer, Gabriel, que te deixes ficar sem memória mas com risadas e não ligues a esta carta ridícula. Serás brindado, espero que não em breve, como o melhor do mundo e afinal dirás, como disseste sempre, que não passas de um jornalista caribenho que a fome e a urgência de enfrentar o terror da avó Tranquilina fez escritor de vara de condão em hotéis de passe em que o teu quarto nunca era o mesmo porque as putas o tomavam primeiro e tu, quando saías bem bebido do jornal às quatro da manhã para retomar uma das quinhentas páginas em branco que sempre tiveste ao lado, não querias saber das perguntas perigosas dos franceses ou da copiosa retórica que os castelhanos espalharam no planalto andino. Querias saber da tua vida e dos teus amigos. Ou sou eu que te estou a inventar, Gabriel? Pero al menos y por todo y por todos, no te mueras. No ya. E não uses essa espécie de epitáfio que tu próprio escreveste: "La vida no es la que uno vivió, sino la que uno recuerda, y cómo la recuerda para contarla." Havemos de transcender o nosso próprio sistema desordenado se repousarmos no nada que sempre nos definiu acima de qualquer engano. Una risada. Una risada es lo que eres. Uma que permita o reencontro e a despedida de um amigo.Que esta te deixe bem Esselencia, Gabriel, Mestre, Essência, Colega, Amigo.
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Published on September 04, 2012 16:21

August 29, 2012

Nós, os tristes

Depressa. Tenho dez minutos de bateria e tenho de dizer alguma coisa de relevante. Mais do que relevante, arrebatadora. É só esperar, ela desce-me. Mas são só dez - nove - minutos de bateria. Oito agora. O sol põe-se em breve. A lua levanta-se. Mas isto está tudo banalizado. Estou na praia, à vista do mar. Mas quem se comove com a praia e com o mar quando todos enchem o livro de caras com fotografias do "estou aqui, finalmente, no paraíso"? E, tomando assim cem pessoas, digamos, trinta alegram-se, trinta odeiam, trinta desprezam, dez vomitam. Sete. Seis. A luz desce sobre mim, afinal sou escritor, a luz desce sobre mim mesmo quando estou criptopórtico. Cinco. Tenho um download a acabar em dez, rezo para que o velocidade aumente. Quatro. Afinal não é a luz. Sou eu que sou brilhante, emissor, sou eu que desço sobre os outros. Alguma coisa grande era dizer que sou deus ou assim. Sou deus ou assim. A velociade do download aumentou, o sol inclinado dá-me nas pernas, nem sequer olho para o mar, está bandeira amarela. Dois. O sistema de segurança do portátil! Pfiuuuuuuu. ( ) Hibernou, o cabrão. Liguei à corrente. Os senhores do café têm uma papel a dizer "proibido ligar à corrente", mas eu expliquei que era um caso relevante, mais do que relevante, arrebatador, pedi outro café, aliás, disse que jantava cá, "mas nós só servimos almoços", oh, então outro café, "está bem, ligue lá um bocadinho". Estou agora com o tempo todo. O pôr-do-sol nem sequer está bonito. Estou com o tempo todo e sozinho. A dona está a olhar para mim. E a enervar-me. Não vou dizer nada, já sei. Sou um zero. Não valho nada. A luz sobre mim - as lâmpadas incandescentes vão acabar, a luz tornar-se-á lenta, branca. Há sempre o efeito quente. Sou um radiador de pesoas. A bateria está outra vez nos dez por cento. Vou desligar da corrente, voltar à esplanada e começar tudo de novo. Depressa. Tenho dez minutos de bateria e tenho de dizer alguma coisa de relevante. Mais do que relevante, arrebatadora. "Estou? Querida? Eu? Estou no escritório, a acabar uma coisa. Sim, vou para casa logo a seguir. Eu também." Cinco minutos. Eu também, eu também. Três minutos. Posso ligar à corrente outra vez? O download acabou. O download acabou.

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Published on August 29, 2012 14:57

August 23, 2012

Primo


Percebi, primo, porque é que demorei mais de trinta anos a escrever-te. Trinta e três anos desde que morreste num dezembro. Tinhas onze. Eu dez. E escrevo-te agora porque já consigo entender o tempo que falta para te rever. Não me lembro que tivesse sido um dia cinzento, mas lembro-me de estar nítido à noite, uma chuva muito grossa e as coisas todas limpas, brilhantes. Os meus pais estacionaram o Simca verde à porta de uma casa amarela e disseram-me para esperar. Uma chuva muito grossa e as coisas todas limpas, brilhantes. Do carro eu via uma janela com cortinas brancas que de vez em quando se moviam. Pensava que só eu tinha o direito de estar contigo e como era injusto ser o único que não estava. Tive pena de não te ter mais nenhum natal, porque eu só te via nos natais e no dia de visita. Nos natais diziam-me sempre a mesma coisa: que apesar do teu sorriso e dos teus olhos muito grandes e negros a olhar para a luz estavas muito doente e não conseguias entender o que se passava no mundo. Eu sempre tive a certeza de que era mentira e o último natal calhou passá-lo todo contigo, não fui brincar com o resto dos primos, fiquei a tocar-te e a olhar-te para dentro dos olhos e a limpar-te a boca santa, como elas diziam. Dei-te a papa uma vez, tinhas dez e eu nove. Tinha aprendido nessa visita a tua casa em que a tua mãe, reagindo às perguntas que eu não conseguia fazer, me explicou como conseguia, como fazia, como vivia. Achei a tua mãe muito bonita. À saída, as escadas intermináveis pareceram-me breves. A esperança e o amor dão músculo aos braços e espaço à alma. Nunca apaguei os teus olhos grandes e negros e ainda acho que o teu sorriso é o meu dos melhores dias. Sempre que me lembro de ti fico com dores. E o pudor ata-me as palavras. Não posso dizer mais nada, mas tinha de te fazer existir. Nunca tinhas chegado a frase, só a nome, um diminutivo, desde essa noite em que a chuva e as coisas todas limpas, brilhantes. Quando nos revirmos tu vais terminar o abraço. O amor, quando é, é normalmente uma coisa grande. Não há amor pequeno, primo, nem histórias com fim que o tenham. 
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Published on August 23, 2012 15:54

August 19, 2012

Deserto (smoking in a blue bar)

É um bocado como agora, quando não escrevo, com a agravante de que já não fumo e isso é mau. O deserto e o desejo. O deserto de nada fazer sentido, de nada preencher, e o desejo de me poder alienar consciente. O desejo do ambiente escuro, azul, como dentro de uma nuvem à noite, a super bock de pressão a bombar nas veias e as pontas incandescentes dos cigarros que me davam a resistência para tudo, para não chorar, para não comer ou ser comido pelas mulheres nas queimas, para levar a noite ao meu limite, não ao limite dos outros. Houve noites em Coimbra, faz mais de vinte anos, em que sem ti e apesar do barulho e dos amigos no Briosa - o bar junto ao Bingo, naquela rua em frente às monumentais, lembras-te?, não sei se ainda existe - estava tudo deserto na minha cabeça (no peito nunca esteve). Não é a idade, o envelhecimento, o tempo, nada disso. Nenhuma nostalgia, porque afinal hoje tenho perto de mim tudo o que faz sentido e ao tempo passava às semanas sem ser tocado por ninguém. Uma vez foi uma camisola tua ao engano no meu saco. O máximo sofrimento. O teu cheiro vívido e fresco foi-se apagando, mas a distância, mais do que a distância, a altura, foi sempre aumentando. Não se pode ter tanta memória física na impossibilidade do corpo. Podia, como agora, pôr a rolar o melhor blues, aquelas frases americanas banais que com a batida e os acordes certos parecem dedilhadas e cantadas pelo próprio Criador, "because nothing, nothing, takes the place of you", e escrevia. Escrevia-te. Foram centenas e centenas de cartas. Agora ainda te escrevo - não cartas, sangue. Às vezes cartas, também, porque dás mais valor a uma carta escrita à mão do que a um poema, eu sei. Mas a felicidade tem um equilíbrio complicado. Longe de ti era impossível ser feliz e legítimo fazer tudo, beber, fumar, evanescer. Perto de ti ou nos portamos mal e discutimos, combatemos pela vida, ou fica um deserto e eu fico pela noite a escrever pelos outros. Pelo menos não há nada mais violento do que uma segunda-feira para gente feliz. É estúpido ter saudades de ter saudade, de estar incompleto, gordo, maltratado, esfomeado, sozinho, inseguro. De achar o Torga um Deus, enquanto terminava mais uma viagem no trólei três sem lhe conseguir dirigir a palavra. Fim de tarde em Coimbra, Outubro, chuva, começava o segundo ano de Direito e eu não era nada, tal como hoje. Está bem, ter-te, mulher, e olhar para trás e não me ter visto a encher os bolsos mas os olhos e os ouvidos a tanta gente, e os corpos que abanei, faz-me sorrir. Mas se o espelho algum dia te der importância hás-de reparar que por trás está o deserto. Este deserto. O deserto que se combate todos os dias. Por isso mais vale escrever e fumar e beber e dar à noite o nosso próprio limite. Smoking in a blue bar - é esse. O título que te daria nas faldas do Battery Park, à vista do Hudson, enquanto dedilhasse a minha guitarra e cantasse "Nothing takes the place of you".PG-M 2012fonte da foto
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Published on August 19, 2012 15:54

August 17, 2012

A sala negra (no coração da tempestade)

Gostos discutem-se. Eu digo-vos o que me toma pelos colarinhos no cinema: um filme que deixa entrar a literatura. Por isso, esta é outras daquelas noites em que se torna obrigatório para mim dizer que - mais que para os meus gostos, para as minhas vísceras - não me podem oferecer mais e melhor do que o filme hoje estreado, "Coração da Tempestade", do australiano Fred Schepisi, que ainda por cima tem uma bela filha e melhor actriz, Alexandra Schepisi (a Flora do filme). Não vamos por partes: Charlotte Rampling, uns sensuais 66 anos, magistral; Judy Davis, uns sensuais 57 anos, magistral; Geoffrey Rush, que Schepisi só quis um falso distinto no filme, muito bom; Alexandra Schepisi, a nada ínvia e profunda Flora que se cala da sua aparente frivolidade, muito boa; Maria Theodorakis, nunca tão contida como na santa Mary que compõe, magistral; Helen Morse, que tem arrebatado alguma crítica pela sua governante alemã Lotte, muito boa; John Gaden rigoroso no advogado Wyburd, mesmo Robyn Nevin tem o seu momento como Lal, e o livro, senhores, o grande livro homónimo do Nobel australiano de 1973, Patrick White, que o filme não decompõe como os piores filmes baseados em grandes romances fazem, mas que acompanha como o pulsar de um coração,  em arritmia, na boca, físico, incomodativo. Está certo que certos filmes se fazem para consumo visual, muitos deles são até muito bons, mas se juntarmos a isso a intensidade de um olhar à condição humana em que nada é confortável, está tudo cheio de zonas cinzentas cheias da luz dos desempenhos e da casa, a casa a que só no final se correm as cortinas. Eu pagava o dobro pelo bilhete de hoje, simplesmente porque o privilégio de ver o que vi e quem vi se deve pagar bem. E não há um momento de acalmia nesta tempestade, antes uma tensão permanente, um convite a olhar para o nosso próprio espelho. Se gostam de grande cinema, não liguem às cada vez mais afectadas críticas profissionais que grassam, porque cada vez há miúdos com mais autoridade na matéria e os graúdos que resistem já se acham no direito de ter tiques, esquecendo quase sempre que se trata de recomendar um filme para seres humanos, não para os pares menos humanos que os sindicam. Já sabem que eu, com uma excepção que é melhor não lembrar, só escrevo sobre filmes que considero imperdíveis no cinema. Neste não se fica imerso no ecrã de uma televisão ou de um computador. Este merece uma visita à sala negra. A física e a dos nosso fundos.
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na foto Charlotte Rampling, quando era menos sexy:)
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Published on August 17, 2012 15:54

August 16, 2012

Fotomaton

Diz que o sol um dia nos mata e morre - não, explodir não explode, não tem massa que chegue - mas enquanto isso não acontece levanto os olhos da minha mesa de escrita em frente ao mar e tiro pequenas notas em fotomaton. A esquadria leva-me o ponto proximal para as ondas noroeste-sudeste que com algum vigor enrolam no mar médio e se apressam para a praia. A maré está quase cheia e o mar quase agitado. Daqui vejo uma nesga de praia com um grupo de miúdos negros da contraluz que se diverte onde as ondas chegam, comportamento típico de bandeira amarela. Está com eles, de pé, uma avó com as mãos na ilharga e as pernas abertas fincadas na areia molhada, o ventre ligeiramente para a frente e os ombros ligeiramente para trás - a descontracção diz-me que mora perto, é de cá, ainda que das freguesias interiores, mas a deselegância e a falta de auto-estima leva-a para o grupo dos que nos desatam a serenidade da praia, tão depressa grita aos miúdos como à comadre e sempre por razões que não poderiam inquietar ou indignar um espírito leve. Ainda vejo os miúdos - épica visão dos meus próprios verões -, graças a deus já não a vejo a ela. Mesmo em frente a mim, a esta hora, a mesma contraluz que torna os miúdos negros põe diamantes no mar, o brilho da frente das vagas. O empregado arrasta as cadeiras da esplanada preparando a descompressão. Cada vez menos mesas vão sendo ocupadas, mas na que está duas à minha frente, mais perto do mar, senta-se um homem da minha idade há mais de uma hora, sem livros, sem jornal, só um café e uma água com gás na mesa, massaja as faces vezes sem conta, esfrega os olhos, inclina-se sobre o braço da cadeira, ora sobre o ombro esquerdo, ora sobre o ombro direito, mas não faz nada. Olha mais para dentro do seu círculo do que para a praia ou para o mar. Agora pegou numa mochila, está a coçar a nuca, mas continua ali, sem fazer nada. Mais para a esquerda está um velho com um chapéu de palha, camisa branca e calças de linho - também não faz nada, também se inclina sobre o ombro esquerdo, ou melhor, faz tudo, se olhar o mar for fazer tudo. Mais para a esquerda ainda uma rapariga de caracóis amarelos escreve numa folha, pára, escreve, lê, pára, escreve, lê. Na linha exacta do senhor da pedra, lá ao longe, um casal de meia idade, ele ao sol, ela à sombra, ele a ler um livro grosso e leve, ela a ler uma revista grossa e leve. Passam várias crianças em tronco nu por trás de mim para ir ao wc. Chegam pessoas para um café de final de tarde, hesitam na escolha da mesa, nunca têm a certeza se querem vento, se querem sol, se querem resguardo e sombra. Eu vou pedir outro café daqui a pouco, apesar de estar habituado a bebê-los frios e a fazê-los render uma hora, tento não passar os três por período de escrita, mas o normal são dois em três horas e três horas é o mínimo para se fazer alguma coisa - abaixo disso só em plena produção, quando está tudo definido e é só executar. Mesmo assim, menos de três horas é sempre pouco para escrever. Também deve ser assim para pintar ou para fazer música. Qualquer interrupção é faltal. Como já não fumo há seis anos (e tenho pena), excepto em texto, preciso do café para entrecortar pensamentos. Deixa ver se tenho dinheiro certo. Gosto de pagar o café para me poder levantar e ir embora quando me apetecer. Gosto de ter dinheiro certo para não esperar com a carteira na mão e passar logo à tarefa seguinte. Agradeço sempre cada serviço prestado, mas costumo irritar-me no verão, não pela demora no atendimento, mas porque os contratados sazonais não sabem de cor o que eu quero e me pedem dinheiro quando colocam o café na mesa - ainda que eu queira pagar, não gosto que me peçam o dinheiro, não gosto quando falha o tratamento desigual, quando o pobre homem que está a tentar ganhar umas coroas não se informa sobre o cliente que serve, se é um bruto de  passagem ou um que gasta destas cadeiras há anos - mesmo que nunca escreva um segundo livro no mesmo café, volto por pequenos períodos aos que já usei. O homem aqui da frente foi, finalmente, embora. O velho do chapéu de palha continua lá, mas com os ombros encolhidos. A rapariga dos caracóis amarelos mudou de cadeira, voltou a cara para o sol. Está a ler - não sei o quê, mas está a ler, pelo menos tem a cabeça inclinada como quem lê. Há um senhor gordo de t-shirt vermelha com um portátil, mas não me interessa. Há mais cinco ou seis mesas cheias, mas não me interessam. O brilho do mar está a deslocar-se para a direita, em breve perco-o e começa o pôr do sol. No passadiço passa muita gente que também não me interessa. Aliás, estou prestes a fazer como a rapariga dos caracóis amarelos, a desligar este ecrã e a murchar sobre o meu livro, a ficar dentro do meu círculo como o homem que não fazia nada, podia estar em casa ou na montanha, afinal o que distingue este momento não é o que vejo, não é o mar, não é velho do chapéu de palha que agora tem os braços caídos, não é a rapariga de caracóis amarelos que agora tem a cabeça toda ao sol amplo, que a seguir vai fechar sobre matizes de vermelho e dar o dia por terminado. É o cheiro. O cheiro da praia, o cheiro da montanha, o cheiro da casa. O horizonte ainda está claro, como fica sempre que o vento norte se levanta, mas nenhum vento resiste ao silêncio que a praia colhe pelas oito. E então tudo se cala, tudo fica laranja. O fotomaton ainda não entra nos dicionários de português, como se o que se escreve fosse mais importante do que o que se diz. Diz que o sol um dia nos mata e morre - não, explodir não explode, não tem massa que chegue - mas enquanto isso não acontece baixo os olhos das pequenas notas em fotomaton e murcho para um livro de teatro.
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Published on August 16, 2012 09:59

August 15, 2012

O absoluto, Maria


Nunca te aconteceu quereres agarrar aquele momento perfeito? Chiu, vá, não fales. É uma pergunta retórica. Vais estar calada e ouvir-me cinco minutos. Sim, tendemos todos a pensar que só acontece nas férias e então as férias acabam e entra-se naquela depressão ligeira. A neura. Mas não tem de ser assim. Vou então ensinar-te a minha visão do absoluto. Para que abrandes sempre que queiras. Sabes quando alguém cai à tua frente e se magoa a sério? Melhor: sabes quando tu cais à tua frente e te magoas a sério? É isso. O absoluto é isso. Pela maior força assoma o essencial: tens um pé partido, estás a sangrar, nada mais importa. Durante dias a família acompanha-te ao hospital, o teu marido senta-se ao teu lado durante horas. Vocês enfim falam. Os teus filhos entram à hora da visita e abraçam-te a cama onde não te podes mexer. Nem vais poder mexer durante umas semanas, meses na pior das hipóteses. A rotina adapta-se. O lixo da vida desaparece. E é o mesmo o que nos dizem os que mais nos amam e os que se estão lixando para nós: não é um caso de vida ou morte. Ninguém morreu. Ou, na outra ponta, porque é que estás assim? Já viste que era muito pior se alguém tivesse morrido?O absoluto, Maria.Aquele momento em que estás com os fones nos ouvidos a fumar e a ouvir o Sulk e o sol das seis te enche as pálpebras e tu sorris porque ainda faltam nove dias para elas te acabarem e pensas que só nesses nove dias vais poder repetir o sol das seis mais nove vezes. Oito, porque no último dia viajas às sete da manhã. Seis, porque no penúltimo tens de limpar e arrumar.O absoluto, Maria.Quando acordas subitamente a um Sábado e te preparas para uma Sexta e o olhar sereno dele e o sorriso sonolento dos miúdos te diz que não é Sexta, é Sábado, e o corpo descomprime e tu agarras-te a eles todos como se não houvesse mais dias. Descobres que mirras a cada manhã útil. Não tem de ser assim. O absoluto, Maria.A conjugação cromática de uma esquina a caminho do emprego. O cheiro de torradas e café. O colega gentil.  Se tentares viver a vida como um adágio para cordas o cabrão da janela, o que te enfia bocas como estiletes todas as manhãs, vai aparecer em câmara lenta e voz arrastada, os dias decorrem todos como se fossem o último dia da tua vida. O absoluto, Maria.Todos os dias são o último da nossa vida, Maria.Sob adágio para cordas. Lembras-te daquele do Platoon? Esse. Como se tocasse todo o dia todos os dias. Fuma, mesmo que não fumes. Finge que fumas aquele último cigarro na névoa azul do bar da nossa juventude, pode ser um charro, fuma e fixa-te na ponta incandescente. Já sabes, Maria. O absoluto, Maria.O som dos helicópteros em fade out e a voz do Charlie Sheen enquanto os violinos entram,  dizendo
"Penso agora, olhando para trás, que não combatemos o inimigo. Combatemo-nos a nós próprios. E o inimigo dentro de cada um. A guerra acabou para mim, mas estará sempre cá até ao resto dos meus dias, assim como estará Elias, lutando com Barnes pelo que Rhah chamou possessão da minha alma. Houve tempos em que me senti como a criança nascida daqueles dois pais. Mas, de qualquer modo, aqueles que entre nós sobreviveram têm a obrigação de construir outra vez, de ensinar os outros o que sabem e tentar encontrar o bem e o sentido com o que resta das nossas vidas."
Por isso, Maria, vou levar este frasco de comprimidos comigo. Melhor, vou despejá-lo já na sanita.Como é possível que não tenhas noção de que em certos minutos, muitos para os teus amigos, quase todos para os teus melhores amigos, todos para o teu marido e para os teus filhos, és e serás sempre a mais bela mulher da criação?
Como é possível que cada um de nós não veja isso de sí próprio? Que a solidão é apenas um lapso do corpo e um sobressalto do tempo? Que é a tristeza a precisar de espaço para morrer - e não cada um de nós fora do seu lugar.
Não há abismos portáteis. Mas o absoluto, Maria.
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Published on August 15, 2012 18:12

August 9, 2012

A miséria

Enquanto reteve a juventude no corpo, e mesmo algum tempo depois, o Zé do Portão violou a sua mulher Guida e esse acto reiterado tornou-se uma das rotinas sufocantes do pequeno Mário (na foto), agachado atrás do aparador de cartão da única divisão da casa, à espera de vez. Não de ser violado, sorte, mas de apanhar no focinho, como dizia o pai nos seus tempos áureos, focinho que no seu caso era uma cara clara e inocente para uns olhos claros e inocentes. Mário chorou tudo o que tinha para chorar até sair de casa. Fez um percurso honrado e não violou a sua mulher nem bateu no seu filho, e isso foi relativamente bom. Acabou por cair na mesma rotina dos homens da terra, que é chegar do trabalho e comer e sair de casa e beber cervejas no café enquanto se vê a Sport tv e se fuma falando alto ou cantando o karaoke, mas sempre moderou os seus instintos. Verdade que lhe apetecia rebentar a cara à sonsa que ainda se atrevia a criticá-lo por não ajudar em casa ou andar aos beijos com outras gajas ou jogar uns trocos no bingo ou assapar nas retas da praia. Verdade que queria esganar o puto quando ele se punha a berrar por tudo e por nada. Mas nunca o fez. Nem uma coisa nem outra. Era muito criticado pela mesma terra que ficou muda durante os anos em que apanhou do pai. A terra que consentiu as violações da mãe durante mais de trinta anos, até faltarem forças ao velho. Não, antes ainda, porque Mário, no dia do casamento, deitou a mão ao pescoço do pai e avisou-o de que dali em diante não tocava na velha. A terra deixou de ouvir choro, mas Mário não tinha a certeza se a velha tinha chegado ao consentimento lúgubre ou se faziam outras coisas porque lhes faltavam as forças para a violência. Verdade seja dita: Zé do Portão nunca usou objectos para agredir mulher ou filho. Era sempre com o punho redondo que a mão sapuda formava. Mário era criticado pela terra por gritar com o pai em plena rua, descompusturas violentas que envergonhavam a terra do seu próprio silêncio e Mário usava para não ter de matar o velho ou bater na sua própria mulher.
O velho era gordo quando era novo. Ficou magro, arraçado do que era. A mãe sempre tivera um vincado atraso mental. Agora a vida do velho é arrastar-se com as muletas, às vezes com a mulher no encalço a dar os passos pequeninos do atraso mental e a olhar no vazio. Não falam um com o outro. À semana ela mal sai de casa. O velho sai, mas anda com dificuldade e a arrastar os pés os dez metros que separam o portão vermelho do café. E foi isto que ficou a vida deles. O velho sai de manhã e fica calado no café, sem falar com ninguém. Ao Sábado, rigorosamente, passam os dois o princípio da tarde ao portão a ver os carros passar. Nunca falam um com o outro. Ao Domingo saem depois do almoço e andam cento e cinquenta metros até ao próximo cruzamento da terra e passam lá a tarde, de pé, a ver os carros passar. O Mário chega do trabalho e come e sai de casa e bebe cervejas no café enquanto se vê a Sport tv e se fuma falando alto ou cantando o karaoke. O Mário grita ao velho e toda a gente o critica na terra. Mas o Mário não faz caso, e tudo se sana depois de ele oferecer pancada. Às vezes é o Mário que apanha no focinho.  Focinho que no seu caso era uma cara clara e inocente para uns olhos claros e inocentes. E o Mário, se tivesse noção da sua miséria, era capaz de apostar que mais de metade das pessoas da rua tinha a vida que ele tinha. São as pessoas que dominam o mundo com o seu olhar pardo de desafio e dor. E um sangue espesso e escuro.
PG-M 2012sobre factos sem ficção, por uma vezfonte da foto
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Published on August 09, 2012 09:58