Pedro Guilherme Moreira's Blog, page 3

March 6, 2018

Em Sara é sempre verão

O escritor chega à Escola Sá de Miranda, em Braga, toma um café e pede uma garrafa de água. Sara é apenas uma aluna. Não sabe que o escritor é trapalhão e apaixonado, ou melhor, é trapalhão porque é apaixonado. Pelo pequeno detalhe da banalidade e também pelo extraordinário. Que não consegue ter um discurso sistematizado, mas viaja pelo planeta todo, melhor dito, pelos mundos todos, em grandes elipses, apenas para contar uma história simples, que, por causa dessa viagem, nunca é simples.Sara não sabe que o escritor nunca receberá um prémio de oratória.O auditório está agora cheio com as três turmas e os professores e o PowerPoint pronto a arrancar. Mas o escritor não o arranca. Vai-se perdendo a contar porque é que tem  por ídolo Jim Carrey, explica que Jim Carrey é um génio vivo e não pode reduzir-se ao Ace Ventura ou à Máscara. Mais tarde o jovem brasileiro Guilherme, que também é apenas um aluno, mostrará que ser apenas um aluno, hoje, é ser mais do que foram todos os alunos que hoje são crescidos, e fala do documentário sobre as filmagens do Man on the Moon e sobre a forma como o Jim Carrey fica aprisionado dentro do Andy Kaufman que representa ao ponto de se pegar à pancada com outros actores.
O escritor invocará um artigo do El País do último fim-de-semana, para explicar porque é que, do seu ponto de vista, esta é a mais extraordinária geração de sempre: é que 90% de toda a informação alguma vez produzida pela humanidade o foi nos último 5 anos. Precisamos mesmo de uma geração extraordinária para nos salvar do que isto pode encerrar. São eles, os que são apenas alunos, a Sara e o Guilherme. O Guilherme fala também do JKF e o escritor recomenda-lhe uma série de cujo nome não se lembra. Afinal era fácil: o título da série é a data de morte de JFK no formato americano: 11.22.63. Com o James Franco, sim. Brilhante. Por isto mesmo, por este jorro de informação a fluir a cada segundo, a sabedoria já não é o que era ou talvez os sábios tenham de ser outra coisa. Não basta, hoje, o domínio dos clássicos. Na informação que flui vertiginosamente perdem-se muitos génios e muitas coisas geniais. Somos tantos que não nos ouvimos.
Excepto Sara, e em Sara é sempre verão. A Sara ouve, escuta.O escritor perde-se frequentemente. Não é Alzheimer. Ainda não, pelo menos. Já se disse: é paixão. Um dos alunos vai escrever no livro do escritor que ele se devia lembrar de tomar Memofante, passe-se a publicidade. Se o escritor lhe pudesse responder, dir-lhe-ia que não era essa a questão, mas que, se fosse, o Memofante, passe-se a publicidade, fosse demasiado caro.
o escritor perde-se frequentemente, mas Sara está lá para o apanhar. Está atenta e preocupada, mas, pior do que isso,  melhor do que isso, melhor do que tudo, atreve-se a oferecer-se como ponte quando o escritor diz que estar ali, perante eles, é o privilégio de uma vida, é intenso e agradável, mas de nada serve se eles não lerem uma só linha, dele ou de outro escritor qualquer.
Diz-lhes que é capaz de recomendar o livro adequado a cada aluno e que raramente se engana, o pateta. Diz-lhes que há sempre um livro que os pode deitar abaixo da cadeira, da cama, do banco, seja lá onde os alunos e os crescidos praticam o desporto social do passa-o-dedo-no-ecrã.
O problema, diz também, é que, depois dos dias de sessões escolares, não há comunicação, não há partilha de identidades, ou seja, não está ninguém do outro lado, ainda que o escritor esteja sempre ali. Como na história de imaturidade própria que o cómico de stand up  Jeff Dye conta no Jimmy Fallon e que todos podem ver aqui.
Depois da melhor conversa da vida dele com uma pessoa muito mais nova, sobre o filme A Bug's Life (eu ter-me-ia rido até às lágrimas recordando a cena da mosca a fritar: "a luz, a luz, a luz"), à saída do avião quer trocar contactos, mas não pode. Não pode porque a pessoa muito mais nova não tem telemóvel, email, facebook, instagram, nada.
Então perdem-se para sempre.Então perdemo-nos para sempre.
É por isso que o momento em que Sara se oferece para ser a voluntária (e que impedirá que isso aconteça), como já fez a Inês no Bonança, a  Viviana, a Ana Rita e a Diana em Oliveira do Douro, a Abigail no Olival, o Tiago em Vilar de Andorinho, a Débora e a Mia em Fornos, as Ineses na Xico e mais três ou quatro alunos em 117 escolas em 7 anos, não é um momento banal nem o cumprimento de uma obrigação, como a Sara, humilde, quer fazer crer.
Serão, no máximo, dez alunos em 117 escolas. Portanto, 10 alunos em cerca de 15.000 (quinze mil, sim, a uma  média de cem por escola - e muitas vezes são mais e raramente são menos) que viram sessões com o escritor nos últimos 7 anos; 7 anos em que, recorde-se, foi produzida mais de 90% de toda a informação alguma vez produzida pela raça humana.
Dizia Lobo Antunes numa Escritaria, em Penafiel, não faz muito tempo, que a amizade, por ser um tipo de amor, também pode acontecer á primeira vista.
Em Sara é sempre verão e Sara é sempre ponte. Sempre que quiser.Faz parte, pois, dos extraordinários e nós, os tais crescidos, devemos muito a estas pessoas raras.
Talvez tudo do que andamos para aqui a fazer na literatura -
- disse o escritor.
@pedroguilhermemoreira (instagram) e @pguilhermemoreira nos outros lados todos2018Foto propriedade da própria homenageada, sob consentimento,mas sem conhecimento de que isto ia ser escritor
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Published on March 06, 2018 12:01

March 5, 2018

o atraso da primavera

2018. Final de Fevereiro. As magnólias estão atrasadas. Tenho tanta pena quando tenho de dar esta notícia. De que, como as magnólias, a primavera, a que elas pertencem já despidas, também se vai atrasar. Gosto quando leio a primavera logo no início de Fevereiro, pelas árvores de inverno, pelos cheiros a forçar a nota, pela inquietude dos pássaros, pelo mar no leve desespero de serenar. Nada disso se passa este ano. Só no final de Abril teremos essa libertação dos corpos, antes das chuvas mornas, que este ano virão em Maio. Mas tenham alento. O Verão voltará a encostar ao Natal, e pode ser que este ano a providência nos poupe. As Magnólias já estão abertas nos lugares luminosos, mas as de sombra só agora começam, timidamente, o seu caminho de flor de inverno, que tantas vezes já está nas nossas mãos em Dezembro. Até algumas roseiras de todos os meses estão desfasadas e se demoram. Mas eu gosto é de Magnólias, desta coragem pré-histórica de não mostrar nada quando os corpos ainda estão quentes e secos e cheios de luz, e de só aparecerem para nos confortar quando estamos fartos de chuva e cinza.
@pguilhermemoreira 2018fonte da foto
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Published on March 05, 2018 13:05

Federer


Publicado a 16-02-2018:Aí está. Federer voltará a ser número 1 na próxima segunda-feira. É algo de notável, e não é por ele fazer 37 anos em 2018. É pela descrença e pela superação. Há dois anos, Federer já estava sentado no Olimpo e os especialistas toleravam o atrevimento do velhote entre courts e lesões. Tinha secado os majors, era só uma questão de tempo até ser apenas história. Exaltavam quase todos os dias o ensaio de David Foster Wallace. Ou seja, Federer era literatura, era mito, era o melhor de sempre, não era preciso mais nada. O ano passado ganhou a Austrália e Wimbledon. Este ano voltou a ganhar a Austrália e chorou. Ser o melhor de sempre e quererem que saias e encostes as botas depressinha também deve ser duro. E agora aí está, o melhor de sempre de volta ao número 1. E o brilhante e imperdível ensaio que David Foster Wallace (DFW) publicou em 2006 no New York Times, dois anos antes de se enforcar, sob o título "Roger Federer as religious experience" está aí para ser lido, em tradução do Vasco Teles de Menezes - ensaio com título alterado para "Federer: carne e não só" -, entre as páginas 409 e 435 do volume de ensaios de DFW que a Quetzal publicou em 2013 sob o título "uma coisa supostamente divertida que nunca mais vou fazer". E Federer é, simultaneamente, o melhor tenista e um dos melhores desportistas de sempre, um deus no Olimpo E o número 1. E diz que só pára quando a mulher lhe disser que chega.
@pguilhermemoreira 2018
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Published on March 05, 2018 12:44

December 30, 2017

os monstros entre nós

Estou no bar vermelho do hotel. Não tirei a camisola preta, porque me disfarça o peso.
A televisão está a dar jogos da NBA nos ladrilhos de vidro da janela. As cores das equipas e do recinto de jogo misturam-se no vidro com as bolas dos candeeiros de rua, que são brancas e amarelas. Não que tenha mal ser um tipo grande, mas chateia-me que o atribuam à falta de amor próprio. Eu gosto de ser grande. Sempre quis escrever como um pintor. Sentar-me no chão da estação de São Bento e descrever o que me apetecesse. Mesmo que não estivesse lá. Eu sou bom rapaz. Sou também inábil. Sei exercer a hipocrisia da misericórdia. Não sei praticar a que me daria vantagens. Não sei viver, mas vivo. No hotel onde fechei a primeira versão de três livros, sempre no dia 26 de Dezembro, sou, este ano, apenas leitor. Também me sinto advogado, o que me perturba. Peço o segundo café e o primeiro copo de água. Não quero dizer mal das mulheres. Não têm culpa de escrever crónicas ridículas sobre a filha do Figo. Mas, na verdade, elas aqui são, em média, mais velhas do que nos outros hotéis e já não seduzem. Tenho pena. Gosto da classe da sedução em qualquer idade. Há algo de distinto nas copeiras e nas camareiras. As recepcionistas são inalcançáveis. Lá fora, há seis meses, foi tudo consumido pelo fogo. Desta vez, até a água. Hoje chove torrencialmente. Maria esconde os olhos de quarenta e sete anos de humilhação à voz de um homem cobarde e frágil. Nunca teve medo dele, sentia-se protegida como num coro de ópera. Não tinha voz própria, tinha a voz média de um colectivo. Costumava cantar o Heilig Heilig do Schubert no auditório da junta e sempre pelo Natal. Maria chorava sempre, a música parecia maior do que ela e até do que o mundo. Não se podia queixar. Então o coro deslumbrava e ele bebia e entrava-lhe na alma. Ameaçava furá-la toda e às vezes acertava-lhe com coisas. Quarenta e sete anos depois fez queixa dele à polícia. Saiu de casa. Ele ligava e dizia que tinha saudades de ouvir a voz dela. Ela pedia para ele deixar de ligar. Quiseram pôr-lhe a pulseira e ele reagiu mal. O juiz internou-o no Conde Ferreira e nessa noite ela foi lá levar-lhe roupas. Quando o homem apareceu atrás do enfermeiro, todos reconheceram um louco dentro de um olhar azul claríssimo onde, ainda assim, não entrava luz nenhuma. Deram um beijo carinhoso, ele forneceu algumas instruções para fechar isto e aquilo e, se ela quisesse, levar para a filha o bacalhau que ele tinha destinado à ceia de natal. O homem ia passar a ceia de Natal perigosamente sozinho. Havia de ligar a Maria e a filha, com pena, convidaria o pai para a ceia. O homem chegaria para a furar. Mas nada disto acontecerá porque Maria está agora a entregar-lhe roupas para três meses de internamento. Maria regressa a casa da filha a chorar. O homem que foi o seu a vida toda estava internado, finalmente. Toda a vida o pedira, e agora chorava. Maria usa um silêncio cheio de culpa entre os lábios grossos, mas não tem culpa nenhuma. Arranja as couves. Estende a roupa no estendal. Põe o bacalhau de molho. Amanhã vai à casa que abandonou buscar mais coisas para o agressor. Quem disse que dois mais dois são quatro? Clara, uma jovem mãe, cinco casas adeante, chora agarrada aos filhos que o ex-marido ameaçara não lhe devolver. Beatriz, uma menina de quinze anos, foi apalpada pelo padrasto e sente-se culpada. Ele metera-se na cama dela uma noite em que a mãe fora trabalhar e ela sente-se culpada. A própria mãe acusa-a de rameira. A menina afunda-se na escola. O pai salva-a, leva-a para casa dele e faz queixa. Chamam a menina ao Ministério Público e caem em cima dela para a apanhar em contradição. Perguntam se não estará a mentir. Ela fica assustada, quer desistir de tudo, mas o crime é público. Por isso, vai ter de falar de uma noite terror várias vezes e perante várias pessoas durante os próximos anos. É dificil que o agressor, que ela amava como um pai, seja condenado. Vão chamá-la mentirosa mais vezes e ouvir testemunhas que elogiam o padrasto pela sua conduta social impoluta. Vão exigir uma bateria de exames médico-legais. Ainda assim, a protecção do pai dá-lhe conforto. Volta a tirar notas altas. Hoje é dia de Natal e até o cafezinho está fechado. Sai vapor quente do chão da praça. Estou no bar vermelho do hotel. Não tirei a camisola preta, porque me disfarça o peso. A televisão está a dar jogos da NBA nos ladrilhos de vidro da janela. As cores das equipas e do recinto de jogo misturam-se no vidro com as bolas dos candeeiros de rua, que são brancas e amarelas.
PG-M 2017foto minha
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Published on December 30, 2017 04:13

December 24, 2017

Binoche (ao Olimpo) por quem não gosta (isto é: não gostava)

Faz-me muita confusão o discurso das mulheres quando sentem que a juventude lhes começa a fugir. Está bem, nós, homens, somos, em regra, umas bestas, e esse nosso reducionismo leva-as a justificarem-se antes sequer de as vermos, aliás uma técnica que se usa e de que se abusa no humor.Ora, eu não gostava da actriz francesa Juliette Binoche antes de ela própria, agora e apenas agora, aos 53 anos, me ter tomado pelos cueiros e me ter deslumbrado no último filme estreado entre nós, "Un beau soleil intérieur", dePhilippe Garrel, que, de resto, é daqueles filmes que grita literatura por todos os lados.
Literatura enxuta, personagens densas, escrita simples e certeira, como a dos grandes.
Mas, a bem dizer, há muitos filmes com argumentos de qualidade. Não há é muitos filmes com cinquentonas que arrebatam a cena. As cenas todas. Principalmente actrizes de quem o escriba nunca gostara antes, por causa dos tiques e de alguma cedência (na qualidade) ao El Dorado americano, como aliás a outra, de que o escriba sempre gostou, Marion Cotillard.
Talvez Binoche tenha tido sorte com todas as artes internas do filme, do guarda-roupa à caracterização e à fotografia, mas a perfeição de Juliette Binoche está no registo escolhido em qualquer aporte emocional. Não desejarmos uma mulher destas pode ser a tese do filme, mas ainda me perturba mais que nós, homens e mulheres de bom gosto, não desejemos uma mulher assim.
Para mim é o papel da vida de Binoche e um dos papéis desta década. Não queria exagerar, mas sinto que vai ser uma das interpretações notáveis da história do cinema. Pena que, dá-me cá a impressão, vá ser ignorada no óscares, mas nunca se sabe. Ao menos que não o seja nos Césares. A Binoche de 53 anos mete a de 20 num bolso. Aliás, nos bolsos todos. E não é figura de estilo. É mesmo assim. Prova a todas as mulheres que o melhor está para vir, sempre.
Também gostei muito do filme, mas podia ser o pior filme do mundo. Com esta Binoche, podemos sentar-nos e desfrutar. E eu, que não gostava dela, se fosse mulher queria ser como ela. Tenho dito, pois. E olhem, boa noite de natal a todos! Obrigado pela fidelidade ao blogue!
PG-M 2017fonte da foto
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Published on December 24, 2017 12:14

December 12, 2017

Saramaguíada - booktrailer no teatro

 Prenda de Natal para leitores e amigos: o booktrailer do Saramaguíada. Desde que o grupo de teatro In Skené me surpreendeu com a encenação e representação dos primeiros dois capítulos do Saramaguíada, estava firme a decisão. A representação ser o booktrailer. Estes jovens rapazes e raparigas, alguns virtuosos, merecem. Eu sinto-me privilegiado e grato. Nessa manhã, em Gondomar, no primeiro evento público do novo livro, como noticiei aqui, a Ana Catarina Vigário e a Carolina Cardoso, as duas actrizes que neste trecho estão sentadas no palco, a Catarina à direita de quem vê, a Carolina à esquerda, decidiram oferecer-me outro momento magnífico, que não estava no programa. O ensaio geral de uma peça de Tchekov que ia à cena nessa tarde, "Os malefícios do tabaco". Observei-as esmagado na cadeira, agradecendo à providência a capacidade de estar atento e de me importar com os lugares onde pode estar a arte. Agradeço também à Joana Sousa por ter filmado e editado com grande qualidade, como podem ver aqui, a base deste booktrailer. Se quiserem ver a versão mais longa, sem legendas, vejam a ligação na descrição do vídeo no próprio Youtube. Agradeço também aos actores Tomas Cerejo, Carolina Serra e à belíssima diva Flávia Dias, que é Pilar, aqui. O meu último comentário é que é muito curioso como são os dois primeiros capítulos do livro, precisamente, os que têm perfil dramatúrgico imediato, sem qualquer reescrita. Quem teve a sensibilidade de o ver foi o In Skené e o entusiasmo destes jovens pela arte dramática devolve toda a inspiração e projecta o texto para a estrelas - o tal lugar onde Saramago não queria estar, mas onde eu - e muitos outros antes - o pus. Espero que gostem.
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Published on December 12, 2017 05:15

December 9, 2017

A (eterna) professora e o (eterno) aluno

Porque me honra profundamente, vindo da cátedra como veio, e porque me comove, por momentos e razões que não quero aqui escalpelizar, porque já passou a quinzena deste JL nas bancas (esta semana está a Ana Margarida de Carvalho na capa), publico hoje a recensão completa da Professora Agripina Vieira ao Saramaguíada. Obrigado aos que entendem que este ofício exige o máximo esforço e o máximo respeito. Como se pode ler na epígrafe de Maria Victoria Atencia no início do livro, "Porque duele, el alma duele (...). (clicando na foto, conseguem ler)  PG-M 2017foto de uma recensão da Professora Universitária Agripina Vieira no Jornal de Letras de Novembro de 2017
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Published on December 09, 2017 08:18

December 8, 2017

O fim dos falsos inocentes



"O fim da inocência" é duro. Oksana Tkach virtuosa. Joaquim Leitão mais do que competente a filmar momentos de violência, sexo e alienação que, ao contrário do que tem sido dito, não são típicos desta geração. São transgeracionais. Todos nós estivemos perante esta bifurcação. Aliás, estamos. A vida toda. E não é como pai que fico preocupado. É como próximo. Desde sempre pugnei pela queda dos tabus perante os mais novos, nessa idade de limbo em que o corpo parece adulto mas a alma ainda é menina, porque só os podemos proteger se falarmos disto. Explicar que a exposição em redes sociais não é inocente para muitos, e que há desejos negros e inconfessáveis. Às vezes, basta olharmo-nos ao espelho para perceber como somos falíveis, e o que distingue a humanidade é entender e controlar o que é animal e imoral. Não, ninguém tem direito de seguir o seu desejo nem é livre de o fazer. E mostrar isto desta forma crua, sem forçar o argumento, filmá-los em cima, deixá-los a sós connosco deixa-nos a nós desprotegidos. Já todos sabíamos, mas ver sem poder fazer nada é terrível. Vários rapazes e raparigas da idade dos retratados no filme, começando a projecção gozões e descontraídos, estavam colados às cadeiras ao intervalo. Assustados. Porque o filme é duro. É mesmo duro. Por isso imperdível. Tem sido relatado que muitos avós e pais e mães saem a meio, porque não aguentam. Isso acontece porque não estavam preparados. Mas é preciso que estejam. Que saibam que em dez seres humanos que se reúnem à volta de uma mesa, qualquer mesa, há vários (não apenas um) com instintos primários e inconfessáveis. E entre eles um ou dois que, por egoísmo, se podem tornar perigosos a qualquer momento. Não é por isso que é legítima a paranoia e o colo vigiado ou negado às crianças. Se o tabu cair e o assunto ficar em aberto, o perigo diminui. Mas se continuarmos a censurar e a esconder e a negar, os mais perigosos continuarão a atacar na sombra e os mais frágeis continuarão por proteger. Abençoado Joaquim Leitão por isto. #ofimdainocencia #pgmPG-M 2017Nota: a (belíssima) foto estava publicada no facebook do livro / filme sem identificação do autor
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Published on December 08, 2017 03:38

November 13, 2017

Jim Carrey e o princípio e o fim do mundo

Jim Carrey, Lobo Antunes, Rodrigo Amarante, Eduardo Lourenço, George Steiner, Shakespeare, Cervantes, Saramago, Robin Williams, vida e morte, panteão, palhaços, gritaria em rede social, depressão, suicídio, grande e pequena arte, existência ou inexistência da literatura, Irene, milagre seria não ver no amor essa flor perene.Tenho o privilégio de ser chamado a escolas e a comunidades de leitores para justificar o meu direito a abrir a boca na contemporaneidade, onde só uma ficção benevolente pode atribuir-nos mérito e demérito artístico. Na verdade, nenhum artista - está visto que eu vejo os escritores como artistas - ou julgador de artistas pode realmente saber se é importante ou não. Nem para o seu tempo, nem para o fim ou princípio dos tempos. Todos, claro, aspiram a isso.Um das coisas notáveis que Jim Carrey disse ao programa 60 Minutes foi: "Eu quero ser o melhor actor que alguma vez existiu, mas não tenho de ser."Porque é que eu sigo Jim Carrey, apesar de o resumo contemporâneo deste génio ser o estigma americano dos processos interpostos pela família e pelo último marido da namorada de Jim que suicidou? Forneceu-lhe drogas que a levaram ao suicídio e transmitiu-lhe três doenças venéreas? É isto que agora o define para o mundo frívolo.
Porque o Jim Carrey disse uma vez, e tem-no repetido pelos tempos, "descobri que a minha missão no mundo era inspirar os outros, ajudá-los a descobrir o melhor de si mesmos".Para mim, o ano sempre começou em Setembro, e cada Setembro repenso a minha relevância no mundo, e a dúvida anda entre regressar à caverna ou exibir-me com as vestes sociais que me podem tornar suportável.
Até aqui, o meu único foco de intervenção pública foi provar que são os outros, não eu, que importam. Que o escritor não existe por si, mas pelo leitor. Que, mesmo que não seja lido, todo o livro é um compromisso entre os algoritmos indecifráveis da arte literária antes de serem sintetizados e passados ao papel e o que fica disso para poder ser lido. Um livro não tem de ser fácil, mas tem de ter em si, pelo menos, a possibilidade de ser lido. A comoção de ter pela frente pessoas que, com mais ou menos vontade, estão ali para me escutar, é sempre enorme. Sinto uma reverência que, se não for domada e convertida, pode até ser inibitória. Em momento algum me sinto importante. Gosto até de brincar com a aparência de importância que os escritores precisam de ter para se distinguir da massa informe ou disforme dada ao prelo pelas empresas de venda de sonhos ou projectos dos que sonham ser escritores. Todas as artes, hoje, são susceptíveis de serem imitadas e de terem edições que o público não consegue, imediatamente, distinguir se é autêntico ou fruto do ego de pseudo-artistas que pagaram para ser vistos, não para ver. Pseudo-artistas que nunca ficam à escuta, única forma de apanhar a matéria suprema da arte algures no universo e, podendo ou sabendo, dar-lhe uma forma, boa ou má, de bom ou mau gosto, desta ou daquela corrente, feia ou bonita, não importa. Importa apenas que seja genuína criação, ainda que falhada.
Também aprendi com o Jim Carrey que devemos falhar bem e controladamente. Que o momento incompreensível em que eu decido cantar o Lilac Wine na apresentação de um livro e as lágrimas na garganta me darem cabo da pouca voz que ainda estava disponível não foi um fracasso total. Afinal, eu estava a chorar por dentro por uma leitora tetraplégica cujo exemplo sempre me emocionou. Se eu fosse perfeito em tudo, nunca conseguiria criar empatia com os leitores, só fãs loucos e irracionais.
O desfile de nomes ao princípio é só um exemplo dos que tenho ouvido de forma crua e acrítica, primeiro, para poder formar uma opinião ou me tornar melhor artista. Não pessoa, artista.
Esta moda no "#notme" não me comove. Sabem porquê? Porque eu sempre estive na primeira linha de protecção dos fracos ou enfraquecidos temporariamente, por condição social, religião, idade ou género. Aliás, cometo reiteradamente o erro de me aproximar dos fracos e de lhes dar protecção, mesmo sem que isso me seja pedido. Conheço bem a linha fina entre assédio e sedução. Não existe, na condição humana, um único movimento de sedução de qualidade que não pise linhas. Escrevi várias vezes sobre isso. Testei limites em ambas as profissões que tenho exercido, advogado e escritor. Percebi a hipocrisia e o poder do sexo. O poder destrutivo do egocentrismo e do egoísmo, mas também de quem o usa para prejudicar ou mesmo destruir terceiros em situações de fronteira. Hoje em dia é muito fácil e hipócrita confundir saúde com doença, no que ao sexo diz respeito. Mas, na verdade, uma pessoa de princípios nunca cede e, se acaso comete um erro, sabe imediatamente reconhecê-lo. Há puritanismos (muito) mais perigosos do que libertinagens.
Chegados aqui, nunca retirarão a Cervantes o ceptro de autor da maior obra de todos os tempos (por subjectivo que seja, já houve várias eleições nesse sentido de pares com autoridade), mesmo que ele fosse o maior criminoso de todos os tempos. Aliás, o que o tempo faz aos maiores criminosos de todos os tempos é dar-lhes um sentido e um significado histórico que serve aos vindouros para se protegerem. E como nunca retirarão o ceptro a Cervantes, também não retirarão os prémios e o brilhantismo ao Kevin Spacey nem o génio ao Salinger, apesar do pobre comportamento perante a Joyce Maynard.
Da mesma forma, transcende a minha opinião ou sentimento pessoal o jantar do Panteão. A única coisa que isso me serviu foi para perceber que prefiro uma boa dúzia de génios que jantou no Panteão há dias e que tocará este mundo realmente para a frente do que os medíocres dos políticos que responderam presente à gritaria das redes sociais. E vocês, com quem é que contam para o futuro? Com o Paddy Cosgrave ou com o António Costa, que até já lá tinha feito as suas jantas?
Jim Carrey é - por razão nenhuma quanto a ele próprio - a partir desta semana, não apenas mais um ídolo ou mais um génio que cultivo, até porque, como ele explicou na célebre entrevista em que descompõe uma repórter de passadeira vermelha na Fashion Week (repórter a quem ganhei respeito, porque se aguenta brilhantemente perante um destruidor - mas sempre genial - Jim Carrey), mais vale cultivar personalidades e conteúdos do que ícones, mas o maior génio das artes que exerce.

Vi horas a fio de performances, entrevistas, bem mais do que filmes (porque ele é bem mais genial quando é ele próprio), e regresso sempre ao Commencement Speech que vos deixo no final deste.
Se, entretando, a ligação do vídeo expirar, voltem por favor a procura-lo no youtube e, como tudo o que é muito importante, vejam-no com vagar.
No final, parecer-vos-á claro o mistério do princípio e do fim do mundo.
E restar-vos-á toda a coragem para  o que fica entre os dois.
Tenham uma boa vida.
PG-M 2017
origem da foto
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Published on November 13, 2017 13:31

October 16, 2017

caramba, a vida

É curioso como olho para este lugar, cada vez mais, como um lugar vago, com a cara da solidão, apesar de tanta gente, como se visse desfilar uma multidão parda e silenciosa e conseguisse ouvir algumas conversas de circunstância - queríamos que fosse aquele permanente almoço barulhento entre amigos, em que tudo o que dói fica suspenso - ou o jantar alaranjado com fumos de forno e um tinto denso em que nos levantamos para ir buscar um copo e ouvimos uma gargalhada a puxar outras e o ar corpulento, como o vinho, e não pode ser sempre assim, vimos por aqui bem intencionados para que alguma coisa nos mova, ou apenas para deixar imagens maiores do que nós e assim completar a ilusão do nosso tamanho, preocupa-me, preocupa-me não valer a quem ainda não aprendeu que a vida tem de ser um esforço permanente de levar o sangue ao ponto de ebulição, mesmo em plena tristeza, podes estar sereno perante uma paisagem arrebatadora, em silêncio, e profundamente triste, como aqui, de olhar vazio para o ecrã azul e branco, mas o sangue tem de passar espesso e em alta tensão, sempre, não é um programa de saúde, não é sequer um abraço, há momentos tão desventurados que queremos é que nos deixem, que não nos toquem, que não nos falem, vai a multidão parda e tu podes agarrar num braço, sair dela, sentares-te a tomar um café e uma conversa de disparates levantar a película aderente dos nossos dias e sem querer estamos a consumi-los, a comê-los como deve ser, e até o trabalho, um bom dia de tensão, pode salvar-nos da incomensurável tristeza, aflição, ansiedade, medo de falhar, estamos aqui no centro de um multidão parda e podemos, sem demagogia ou lamechice, dar o grito de várias formas, e a infinita dolência, como a infinita alienação, são duas gémeas a percorrer os corredores do hotel e o melhor que tiramos daí são vários Jack Nicholsons que espreitam a todas as portas sem querer, realmente, saber. Se formos capazes de manter o sangue em ebulição, pousar o telemóvel, desligar o pc, abrir a boca e ouvir, fazer barulho e calar, nada do que é bom é contínuo, nada do que é mau é contínuo. Está gente fosforescente a sair da multidão parda e a encher as margens, há um rumorejo que cresce, já ninguém promete cafés ou jantares, já ninguém adia para depois da morte, já todos seguiram o bom exemplo dos velórios e funerais, onde homenageamos o outro, não a nós, onde cuidamos dos que o cuidaram, não de nós, onde não nos fotografamos, onde descobrimos um tempo impossível, em vez de nos ocuparmos a afastar todos para longe, e agora eles, os fosforescentes, falam, eles falam todos uns com os outros. Que raiva, dizem. Olha, dizem. Ouve, dizem. Caramba. Caramba. Caramba, a vida.
PG-M 2017fonte da foto
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Published on October 16, 2017 12:27