Pedro Guilherme Moreira's Blog, page 16

July 20, 2015

(Volume I) Sostiene Bernardi e o Voleibol em Itália - Novelle Italiane

 I
 Não me chamo Bernardi. No entanto, metade da vila piscatória onde ora resido chama-me Bernardi. Não sabem de onde cheguei, um dia, de repente, nos idos de dois mil e tal, com uma obsessão pela geração de ouro do voleibol italiano e clamando, num sotaque trentino, que Lorenzo Bernardi era o melhor jogador de voleibol de sempre. Que finalmente a FIVB o tinha reconhecido como tal - com efeito, ser o melhor do século XX é ser o melhor de sempre. No dia em que cheguei envergava a camisola número 15 do USA Volleyball Team com Kiraly a encimar o dorsal. Ninguém no Café Central contrapôs que Kiraly tinha ganho a distinção ex-aequo com Bernardi, nem podia saber que, verdadeiramente, eu não gostava de Kiraly. Ninguém no Café Central podia ou queria saber.A metade da vila que me chama Bernardi considera-me meio louco. A outra metade não  me chama nada nem tem opinião formada. Não é rigoroso dizer, contudo que, estatisticamente, toda a vila me atestou, perante a autoridade sanitária central, como vinte e cinco por centro louco. Não obstante, foi isso que atestou o Doutor Remédios que, como é consabido, conseguiu concluir o curso de Medicina sem nunca ter feito Matemática: conclui ele e atestou que, como metade da vila considerava o indivíduo Barnardi meio louco e a outra metade não tinha opinião formada, conclui-se e atesta-se que tal indivíduo tem vinte e cinco por centro de incapacidade para o trabalho, devendo por isso ser colmatada a falta pela sociedade e ter o indivíduo direito a uma pensão que se fixa em (preencher) Euros. Estive um ano para que o bom do Doutor Remédios preenchesse o valor que me devia ser pago. Entretanto, vivi a esmola. Ontem foram-me pagos os retroactivos. A primeira coisa que o Dez-Cartas, o filósofo do Café Central, me disse depois de lhe mostrar o envelope com o dinheiro e a factura à sociedade, sabendo da minha obsessão por voleibol, é que o filho do advogado que me tratou do caso pro bono parte para Itália amanhã para jogar pela selecção nacional sub-17 de Portugal. Se guardas isso, a senhoria, que é uma ladra, vai roubar-te tudo, nomeadamente exigindo as rendas atrasadas e reparação dos buracos dos parafusos para afixação de posters emoldurados de voleibol. Depositas o valor legal na Caixa e vais ver a selecção a Itália. Foi pelo Dez-Cartas que soube que o  Doutor Remédios tinha sido remetido administrativamente para a glória de licenciado na confusão dos saneamentos da liberdade - era, pois, um lutador e um indivíduo credível. Adoptei o alvitre como brilhante: o que podia ser melhor para o desfrute da pureza do voleibol do que ir apoiar uma equipa sem adeptos que era o embrião do futuro? Um dia, disse o Dez-Cartas, arrecadarás comenda pelo estatuto de cordão umbilical destes miúdos voadores e o país, não apenas a aldeia, se encurvará deante de ti - e disse-o assim mesmo, não perante, mas deante, com pedante arcaísmo. Fomos ambos à agência de viagens do povo, cuja abriu só para nós -  a agência de viagens tinha a vidraça mais marcada pelas nossas testas do que pelo limpa-vidros, porque lá passávamos horas a estudar folhetos desbotados de viagens impossíveis.
(continua no volume II)

PG-M 2015
fonte da foto
 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on July 20, 2015 23:04

Sostiene Bernardi e o Voleibol em Itália (volume I)

 I
  Não me chamo Bernardi. No entanto, metade da vila piscatória onde ora resido chama-me Bernardi. Não sabem de onde cheguei, um dia, de repente, nos idos de dois mil e tal, com uma obsessão pela geração de ouro do voleibol italiano e clamando, num sotaque trentino, que Lorenzo Bernardi era o melhor jogador de voleibol de sempre. Que finalmente a FIVB o tinha reconhecido como tal - com efeito, ser o melhor do século XX é ser o melhor de sempre. No dia em que cheguei envergava a camisola número 15 do USA Volleyball Team com Kiraly a encimar o dorsal. Ninguém no Café Central contrapôs que Kiraly tinha ganho a distinção ex-aequo com Bernardi, nem podia saber que, verdadeiramente, eu não gostava de Kiraly. Ninguém no Café Central podia ou queria saber. A metade da vila que me chama Bernardi considera-me meio louco. A outra metade não  me chama nada nem tem opinião formada. Não é rigoroso dizer, contudo que, estatisticamente, toda a vila me atestou, perante a autoridade sanitária central, como vinte e cinco por centro louco. Não obstante, foi isso que atestou o Doutor Remédios que, como é consabido, conseguiu concluir o curso de Medicina sem nunca ter feito Matemática: conclui ele e atestou que, como metade da vila considerava o indivíduo Barnardi meio louco e a outra metade não tinha opinião formada, conclui-se e atesta-se que tal indivíduo tem vinte e cinco por centro de incapacidade para o trabalho, devendo por isso ser colmatada a falta pela sociedade e ter o indivíduo direito a uma pensão que se fixa em (preencher) Euros. Estive um ano para que o bom do Doutor Remédios preenchesse o valor que me devia ser pago. Entretanto, vivi a esmola. Ontem foram-me pagos os retroactivos. A primeira coisa que o Dez-Cartas, o filósofo do Café Central, me disse depois de lhe mostrar o envelope com o dinheiro e a factura à sociedade, sabendo da minha obsessão por voleibol, é que o filho do advogado que me tratou do caso pro bono parte para Itália amanhã para jogar pela selecção nacional sub-17 de Portugal. Se guardas isso, a senhoria, que é uma ladra, vai roubar-te tudo, nomeadamente exigindo as rendas atrasadas e reparação dos buracos dos parafusos para afixação de posters emoldurados de voleibol. Depositas o valor legal na Caixa e vais ver a selecção a Itália. Foi pelo Dez-Cartas que soube que o  Doutor Remédios tinha sido remetido administrativamente para a glória de licenciado na confusão dos saneamentos da liberdade - era, pois, um lutador e um indivíduo credível. Adoptei o alvitre como brilhante: o que podia ser melhor para o desfrute da pureza do voleibol do que ir apoiar uma equipa sem adeptos que era o embrião do futuro? Um dia, disse o Dez-Cartas, arrecadarás comenda pelo estatuto de cordão umbilical destes miúdos voadores e o país, não apenas a aldeia, se encurvará deante de ti - e disse-o assim mesmo, não perante, mas deante, com pedante arcaísmo. Fomos ambos à agência de viagens do povo, cuja abriu só para nós -  a agência de viagens tinha a vidraça mais marcada pelas nossas testas do que pelo limpa-vidros, porque lá passávamos horas a estudar folhetos desbotados de viagens impossíveis.
(continua no volume II)

PG-M 2015
fonte da foto
 
 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on July 20, 2015 23:04

July 15, 2015

Inmaculada


tenho um acordo com Inmaculada de Córdoba
ela escreve poemas corridos como a massa originária do pão
e eu corto-lhe a prosa aparente
em versos

mas Maki cresceu e agora
coze o seu próprio alimento
e corta os seus próprios poemas

faltava só um beijo entre nós
escrito em prosa e posto
em verso

urgentemente

el beso está aqui
por la noche
de Córdoba


PG-M 2015
fonte da foto: quadro "La Chiquita Piconera" (uma cordobesa, claro), de Julio Romero de Torres
 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on July 15, 2015 09:52

July 14, 2015

Dança (glosa)

 
quando os dedos batem nos batuques
vem dançar, faz-me a alma,
como o lamentoso mar na praia
estreita-me, pele na pele,

como as árvores se inclinam ao vento
dobra-me, fica lento,
quando danças extingo-me em ti,
fica aqui, dança aqui,

tantos corpos se ajustam na pista
movimento e os meus olhos nos teus
que só tu tens o voo e o pique
e, se danças, fraquejo

posso ouvir o som dos violinos
muito antes do começo
vem e dança-me até ao delírio
dança suave, dança agora


PG-M 2015
(glosa sobre original de Pablo Beltrán Ruiz, "¿Quién será? (Sway)")
A glosa é apenas um divertimento sem as aspirações literárias de um Cohen - é para cantar e dançar :)
fonte da foto (imagem de Dean Martin e Eva Bartok no filmeTen thousand bedrooms - 1957 - Getty Images)
 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on July 14, 2015 13:55

July 8, 2015

Bondade, Maldade e Razão

 Aconteceu-me hoje num espaço de poucos minutos. É flagrante quando estamos mais afastados do ruído e concentrados na acção - seja o labor, propriamente dito, seja a locomoção dos sentimentos e das aflições dos outros. Porque, vendo bem, o mundo que nos corre na ponta dos dedos é mais ruído colectivo que nos fazem acreditar ser relevante: a moda grega, por exemplo, não ser fruto de políticos medíocres mas da pureza de um povo, ou a careca da Laura, a mulher de um líder de um país do sul da Europa, não ser coragem pessoal mas cálculo político, e o que venha aí nos próximos dias e interesse aos média e tenha o perfil certo para deixar as redes sociais aos gritos, e esquecemo-nos da mãe que matou um filho de frio e de sede a empurrar um baloiço durante uma noite inteira porque o desespero não a deixou ver ou dos olhos baços do nosso colega de trabalho que, provavelmente, logo à noite se deixará cair de uma ponte ou apenas, por mais uma noite, na cama, talvez a ponte amanhã.E o que é flagrante? A força das pessoas más e a fraqueza das boas. Vou passando os olhos, muito na diagonal, pelas redes sociais e já raramente me apetece dizer o que quer que seja. Mesmo hoje, quando o estômago se me revolvia a ler um post e me apetecia escrever alguma coisa e me perguntava: para quê, se o que me apetecia era dizer, ao autor do post, "és mesmo uma besta e, apesar de alinhares uns poemas engraçados que a turba literária resolveu elevar à condição de obras-primas em mais um movimento colectivo, as hordas na lama, és uma palerma calculista e , com as provas que me deste, má pessoa; talvez sejas bom profissional e razoável poeta, mas como opinion maker podias calar-te, porque, na essência, és uma besta;". E depois, a alguns comentadores desse post que estavam cheios de razão e até sensatez, eu teria de dizer, a um deles, "a tua opinião é lúcida, mas na verdade és um menino, um cobardolas com duas caras, egocentrado e manso", ou, a outro, "estás especialmente corajoso, hoje, quando passas pela vida mais ou menos calado e apenas te serves dos outros para o que realmente te é útil, mais, mentes e crias ficções para que os que tu decides que são teus amigos sobrelevem os outros, mas não sabes o que é o mérito; ainda assim, és um tipo com um grande cultura literária, das maiores do nosso meio, e que teria um papel decisivo se não fosse tão filho da puta". E um atrás do outro, ou uma atrás da outra. Reparo que agora é só o que tenho de gerir: avatares. Tenho aqui um artigo para escrever sobre as Correntes d'Escrita 2015, na Póvoa de Varzim, em que pretendo defender a "slow food", o alimento relevante da literatura, o que não desaparece porque o objecto do meu artigo ocorreu há meio-ano. Mas, no entretanto, sei que muitos dos que se notabilizaram são, verdadeiramente, uns crápulas, e alguns dos que foram criticados ou maltratados são, realmente, pessoas decentes. Muitas vezes os crápulas são lúcidos, inteligentes e, apesar de mal-formados, têm razão. E os bondosos são socialmente medíocres. Na verdade já me apeteceu mais premiar a bondade, em todos os quadrantes. Não tenho dificuldade em reconhecer o mérito artístico ou profissional a um crápula. Também não tenho dificuldade em descarnar a uma pessoa bondosa, em privado, a eventual falta de qualidade do que faz ou diz. Muitos crápulas são competentes, ainda que, mais cedo ou mais tarde, nos atropelem com a sua competência. E muita gente boa é incompetente e falha de razão. Mas, como eu disse em intervenções públicas recentes, um bom samaritano, quando chega a uma cidade nova, não escolhe abraçar apenas os que considera boas pessoas. Abraça todos. Importante talvez seja o mapa. Importante talvez seja sabermos quem é quem. E, ainda que não se possa dizer, publicamente, que certa pessoa é uma besta, mas tem razão, é importante termos noção da inutilidade do que temos feito colectivamente. Somos alimentados pelos média e alimentamo-los. Acriticamente, embora pareçamos cheios de opiniões. É importante dizer e denunciar que os jornais, as rádios, mas principalmente as televisões, perderam sentido do que é importante e fundador de uma sociedade e decidem todos os dias o que é importante e não: e não é a audiência, certamente. Quase sempre o que nos aparece como importante não o é. E, seja importante ou não, se funciona, é repetido à exaustão. E então tudo se esvazia, como a palavra que, de tanto se repetir, perde o sentido. A importância do mundo, hoje, vemo-la nos nichos, nos raros grandes jornalistas que ainda existem e nos repórteres que procuram o outro lado. Já a literatura não a vemos em lado nenhum: só nas universidades, a que, contudo, falta contemporaneidade. É verdade que encaixar o tempo corrente da literatura nas universidades pode estragar tudo, e eu, em alguns anos, não vi sabedoria pura, autêntica e não engajada senão lá. Mas ainda tenho esperança de que os bons professores resistam a este lamaçal colectivo onde temos de nos conformar com estes desabafos: que a valente puta, a verdadeira besta, depois de tanto disparate que fez e disse e a que nos expôs no seu mural, hoje disse uma coisa bem dita, ainda que o outro, o grande profissional e poeta que não tem salvação na lucidez porque sempre foi verdadeiramente medíocre, só escreva e fale porque lhe deram corda. Santa paciência, é o que digo, santa paciência. Ainda assim, no final, valem os que nos dão colo, e bem preciso são, mesmo que não tenham razão nenhuma. Ainda assim, o que sei eu? Não sei nada, não sou nada. Quero é colo, essa é que é essa.
PG-M 2015fonte da foto
 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on July 08, 2015 10:01

June 29, 2015

a roda dos cães expostos


chamo cão ao vizinho, chamo cão ao badalhoco que dorme na nossa entrada todos os dias excepto naqueles em que tenho insónias e venho fumar à porta e lhe prego um pontapé e ele só volta três noites depois, chamo cão ao funcionário azul da décima quarta repartição, chamo cadela à sorte, chamo cães aos voluntários da associação de protecção dos animais que se entrincheiraram num barraco encostado à via rápida porque muitos animais deixam cães-de-férias nas bermas, chamo cão ao "serra" que trouxe por burla de beira de estrada depois de passar e dizer ao meu filho, que não se calava que queria um cão, estás a ver, estúpido?, ali queriam duzentos euros por um canito, aqui pedem vinte,e a cara do miúdo, um rui da raça dos boxers anões que não deve muito à inteligência do pai,estás a ouvir o teu pai? percebeste a lição de vida? ali duzentos, aqui vinte!!!!.e a cara do miúdo já só retinha o brilho do "serra" de focinho negro e cara castanha a olhar para ele,chamo cães aos tipos que ainda não conseguiram entender a nova forma de circulação das rotundas, mesmo que eu acelere todos os dias, de manhã à ida para o trabalho e à noite à vinda, para chegar perto deles e lhes buzinar no focinho,chamo cadela à minha sogra e chamava cão ao meu sogro antes de ele quinar,chamo cães aos ministros,chamo cães aos deputados,chamo cão ao meu filho e cadela à minha mulher quando há razões para isso, e há todos os dias,ganhámos uma viagem em time-sharing mas era um problema para deixar o "serra", não achava correcto deixar o bicho sem comida, apesar da voz média do café ser de que tendo quintal os bichos desenrascam-se, afinal são animais e têm é de caçar, e a verdade é que eu tenho quintal mas não achava bem deixar o bicho sem comida, disse ao rui que íamos levar o "serra" de férias e ele todo contente, a verdade é que, como já adivinharam, o "serra" virou um rafeiro magro e feio e não cresceu, ladrava sem controlo sempre que eu não estava em casa, porque quando eu estava conhecia bem as minhas botas, então ensinei uma lição aos cães da associação e, mal meti na via rápida parei na berma junto ao barraco e atirei o "serra" para o mato, não sei porque é que a mulher criticou, eu fiz as coisas com princípios e não deixei o "serra" em qualquer lado, atirei-o para o mato junto ao barraco e gritei- agora divirtam-se, cães!e ri-me mas depois tive de me controlar porque o miúdo percebeu tudo e chorou até ao algarve, quer dizer, não até ao algarve, avisei-o na estação de serviço de salvaterra que se não se calasse apanhava, ele não se calou e em alcácer apanhou mesmo e ficou a choramingar mas isso já não me incomodava, chegámos à praia e enquanto eu discutia com a tipa do time sharing que parece que afinal não era de graça o puto já estava todo contente na poeira do estradão para a praia com o balde e a mãe, porque não tinha mais nada que fazer, a limpar-lhe o ranho e eu a gritar com a tipa, depois de chegar a acordo caminhámos os três quilómetros pelo estradão até à praia, foi um negócio do caraças,o mal,o mal é que a partir dessa noite comecei a ter pesadelos que todos os cães que o pessoal deixava nas bermas sabiam o que eu tinha feito e me cercavam a casa,aquilo incomodou-me tanto que eu já não queria voltar, mas não havia mais dinheiro,eu fui preso no inverno seguinte por causa desses pesadelos que não paravam e eu fiquei doido de dores de cabeça e falta de descanso e de umas falcatruas com as facturas da oficina, coisas que eu nunca percebi porque toda a gente fazia aquilo e não tive uma única visita da puta da minha mulher e do atrasado do meu filho,a prisão não me fez bem e eu voltei à droga e ao álcool, a gaja ganhou-me a casa e o filho em tribunal mas fodeu-se que eu não tinha mais para onde ir e escorracei o cão do badalhoco da entrada, a minha própria entrada, caralho!, para dormir lá eu e ela aprender uma lição, vocês não vão acreditar mas os cabrões dos cães da associação que recolhiam bichos das bermas também davam de comer ao cão do vagabundo que lá estava e tiveram o desplante de me vir perguntar se eu queria comida, e eu levantei-meeu sou o dono desta merda, seus fdps do c!!!!!eles olharam para mim com medo, mas acontece, tenho de confessar, que eu nunca mais me consegui levantar da minha situação, nunca mais ninguém me deu emprego com cadastro, sabem que eu cheguei a ser preso outra vez por desrespeitar uma ordem de afastamento da minha própria casa, mas quando saí voltei à minha entrada mas como estava tão fraco e já não falava nem me dirigia a eles, a  minha mulher já não meteu outra acção e deixou-me em paz, os subsídios acabaram e o pessoal do café já não me queria lá que eu não me desenrascava a tomar banho em lado nenhum, confesso que os cães da associação me chegaram a deixar sacas com comida na minha porta que os cães verdadeiros me roubavam se eu não estivesse atento, mas quem nunca me ajudou foi a cadela da mulher e o atrasado do filho,como se eu tivesse culpa,como se eu tivesse culpa,dá-se que os cães da associação sabiam de quem era o "serra" e o guardaram para o regresso do atrasado do rui, mas parece que o bicho morreu de desgosto, eu ia lá saber, claro que isso era inventado, mas o puto nunca mais me perdoou,mas quando souberem onde estou agora mesmo,quando souberem onde estou sem me conseguir mexervão perceber que o puto tem maus fígados, além de atrasado é mau como as cobras, porque já se passaram os anos daquela merda do "serra", e mesmo assim o tipo não esqueceu,um dia em que eu já não tinha forças nem para abrir os olhos o gajo, sangue do meu sangue, puxou-me para o banco de trás do carro, eu pensava que ele me ia levar ao hospital porque já nem sentia as mãos, mas o cão do rui meteu para a via rápida já passava da uma da manhã e guiou toda a noite e deixou-me aqui no fim do mundo, abandonado como um cão,eu só sei que é alcácer porque o atrasado do rui me disse, entre dentes, com uma raiva de cão, acho que até espumava de prazer, composto e controlado que até metia medo,foi em alcácer que perdi a esperança, em alcácer a perderás tujá não como nada há três noites e três dias e ninguém apareceeu acho que o cão calculou esta merda ao milímetroesta noite sonhei com o "serra" a lamber-me as feridasgrandessíssimo filho de

PG-M 2015fonte da foto
 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on June 29, 2015 09:44

June 26, 2015

da noite de são joão

vim para longe e esqueci-me do material de apoio
não tenho o apuro analítico nem o esquema
da multidão, só a fome envergonhada e o medo
do dia em que o dinheiro faltou
e pensámos todos juntos
não que os poemas não devem ser fáceis e gráficos
mas que está tudo fodido
tenho as caras radiantes da noite
de são joão, as mãos a empurrar
para um lugar maior
tenho o tempo que sobra
dos gritos

fica o corpo ofegante e o choro suspenso sou forte
sou forte sou forte outra vez um grito
outra vez o silêncio outra vez um grito
outra vez o silêncio

e quando nem eu nem tu nem a multidão
trazemos para o cubículo produtor
a memória descritiva do paraíso
da noite de são joão
e escorre dos tabiques formais uma lama
sólida que é raiva e fica a raiz do mundo
marcada a vermelho na matéria branca
dos olhos
temos esta mania

da poesia


PG-M 2015



 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on June 26, 2015 03:11

June 19, 2015

Fumus

há um tempo literário no cigarro,
mas não pode estar apagado

PG-M 2011
fonte da foto
 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on June 19, 2015 04:54

June 11, 2015

poemadasolidãomoderna


No grande open space, que nunca poderia ser traduzido por espaço aberto, os likes corações e sorrisos gráficos trocados entre ecrãs leitosos pelas portas da madrugada são agora sombras espessas que circulam entre o wc e o lugar e o lugar e a máquina de café ou então nem se movem não se olham não perguntam não se tocam não se cheiram trocam ordens pelo mensageiro interno e enviam mails e ao almoço fotografarão a própria refeição para durante a tarde comerem comentários. Ali ao lado, uma mulher chora com a cabeça garrotada, sem perceber porquê. Ninguém a ouve e se a ouve não a lê. Ninguém a vê e se a vê não a suporta. Andam todos apagados e silenciosos no open space a carregar os dedos e os torsos de lítio para não cegarem perante os amoleds. A mulher que chora suplica apenas o abraço, mas os abraços estão muito vistos para partilhar. Ainda assim uma velha companheira que ela pensava já reformada (não, nunca faltei um dia) aproxima-se e levanta o telemóvel no ar. Fotografam-se abraçadas e com sorrisos inéditos. A mulher que chorara agradece e transita para o wc a pensar que agora até os abraços são frios, como ossos empilhados. Senta-se na sanita e chora outra vez. Salvem os migrantes, lê ela no jornal gratuito. Lembra-se da fotografia de uma Beach na sanita a fotografar-se enquanto o filho pequenito mama como se tirasse um café de cápsula. Liga-se ao wifi e inscreve-se, pela primeira vez, no instagram. Pensa que a seguir terá direito ao seu café de cápsula. Sorri, mas no espelho não aparece sorriso nenhum. Já estava online. Daqui a minutos vai começar tudo de novo. No grande open space, que nunca poderia ser traduzido por espaço aberto, os likes corações e sorrisos gráficos trocados entre ecrãs leitosos a meio da manhã são agora sombras espessas.
PG-M 2015
fonte da foto
 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on June 11, 2015 15:51

AAmizade





Deixem-me lá escrever algumas sentenças sobre a amizade.

Não se pode pedir amizade. Mas pode-se aceitar amizade.

A amizade exige a aprendizagem do silêncio na presença do outro.

No outro amor o bom silêncio é uma consequência de uma espécie de paz, que alguns chamam felicidade.

Toda a amizade é desinteressada, os favores são espontâneos e não têm conta corrente.

A verdadeira amizade não exige presença, muito menos imposição física, mas o amigo real nunca adia uma pulsão de contacto e sabe ler os constrangimentos.

O amigo nunca pesa, a amizade é um objecto leve, quântico.

Os amigos nunca são numerosos, porque saber sê-lo é uma das mais raras virtudes animais. E pode-se ficar muito amigo de alguém num só dia, mais do que de muitos numa vida inteira. Precisamente por uma espécie de osmose ou leitura química dessa virtude.


PG-M 2015
fonte da foto
 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on June 11, 2015 15:36