António Bizarro's Blog, page 23

April 12, 2016

Kindergarten

          Naquele tempo, o tempo era maior, demorava mais a passar. Não havia a urgência da banalidade, apenas a gravidade severa das brincadeiras.
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Published on April 12, 2016 14:32

April 10, 2016

Excerto do conto 'Ergástulo'


     David Larsen acordou numa cela de prisão, sem memória de ter sido para lá escoltado por polícias nem de ser sentenciado por um juiz num tribunal. Reconheceu a roupa que trazia vestida como sua, apenas deu por falta do cinto e dos atacadores das botas. A cela tinha quatro metros por dois, e estava equipada com um catre, no qual tinha acordado, uma sanita, um lavatório, uma pequena secretária e uma cadeira. Não havia janelas. Pelo tipo de alvenaria usada na construção, deduziu que a prisão seria uma adega reconvertida. Através das grades da porta, viu que o resto da divisão se estendia por mais dez metros, culminando numa escadaria de madeira que dava acesso a uma porta de aspecto robusto, também ela de madeira. Eram dez e meia da manhã. Fora-lhe permitido ficar com o relógio. Revistou-se a si próprio e expôs o conteúdo dos bolsos sobre a secretária. A carteira, contendo todos os documentos, cartões de crédito e dinheiro, um maço de tabaco com dezasseis cigarros, um isqueiro, as chaves de casa, um pacote de lenços de papel e outro de pastilhas, e duas lamelas de comprimidos, uma de anti-depressivos, a outra de ansiolíticos. Acendeu um cigarro, as mãos a tremerem-lhe, soprando o fumo para cima, na direcção da lâmpada que pendia do tecto, derramando uma luz mortiça. Andou às voltas pela divisão, deitando a cinza na sanita, e quando acabou de fumar, puxou o autoclismo. Agarrou-se às grades, testando a sua resistência com abanões cada vez mais enérgicos. Gritou que o tirassem dali, sem ter a certeza de que seria ouvido por alguém ou que o seu pedido desesperado fosse atendido. Continuou a gritar até ficar rouco e a voz morrer-lhe na garganta, estrangulada pelo choro e pelo cansaço. Derrotado e esgotado, encostou-se às grades e deixou-se deslizar até ficar sentado, os braços apoiados nos joelhos e a cabeça tombada para a frente. Adormeceu, teve um pesadelo familiar, recorrente, que lhe fazia companhia durante todas as noites nos últimos dois anos.
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Published on April 10, 2016 06:41

April 7, 2016

Urbis et Orbis

          Saint Paul é o centro do meu mundo ficcional, uma cidade-Estado algures a meio caminho entre a Europa e as Américas, e essa é a razão principal pela qual os personagens que nela vivem têm nomes anglo-saxónicos, eslavos, escandinavos, germânicos e latinos. A nomenclatura por mim utilizada tem também a ver com o facto de estar habituado a nomes estranhos: a minha avó materna era de ascendência italiana e chamava-se Rosa Del Favore; o meu padrinho de baptismo (nascido em Alexandria, Egipto, filho de pai jugosavo e mãe italiana), chama-se Frank Kovac, e o meu ex-cunhado (macedónio de origem turca), dá pelo nome de Ismail Mustafa. Apesar de ter nascido no Brasil, tenho um nome até bastante normal; escapei por um triz de me chamar Steve, e devo isso à circunstância feliz de a minha mãe gostar do compositor e músico Tom Jobim (née António Carlos). A divisa de Saint Paul (Sancto Paulo spatium est urbis et orbis idem), foi decalcada da expressão latina cunhada por Ovídio, Romanae spatium est urbis et orbis idem, o que, livremente traduzido, quer dizer que o mundo e a cidade de Roma partiham o mesmo espaço. Estudei latim na escola, mas via-me grego com as declinações, pelo que é bem possível que a minha adaptação contenha algum erro, o qual, se vier a ser apontado por alguém mais conhecedor do que eu, será justificado por mim como um arroubo de liberdade artística.
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Published on April 07, 2016 12:12

March 28, 2016

Excerto do conto 'Johanna e os Demónios'

     Eram pessoas madrugadoras, como as do campo costumam ser. Por volta das dez da noite, a casa estava silenciosa e a aldeia adormecida. Os gatos andavam pelos telhados, e é verdade que à noite todos são pardos, pequenas sombras fugidias e ágeis, máquinas de busca e destruição. O pai de Johanna foi acordado pela voz da filha, que lhe lembrava a voz da falecida, e pensou que tivesse sido um sonho. Deixou-se ficar no escuro a olhar para o nada, à espera que o sono voltasse. Uma vez mais, ouviu a voz de Johanna, e então levantou-se. Atravessou o corredor e dirigiu-se para o quarto da filha. Nenhum dos irmãos parecia ter acordado com o barulho. Pela porta entreaberta, ouviu a filha a falar.      – Nach mir die Flut, nach mir die Glute… Die Maschinen werden steigen…      Empurrou a porta e viu-a sentada na cama. A pouca luz que entrava pela janela permitiu-lhe ver que a filha tinha uma mancha escura na camisa de noite, na parte que lhe cobria a entrada do corpo. Johanna olhou para lá do pai, como se este fosse transparente.      – Ich blute – murmurou tristemente.      Ele sabia o que era aquilo. Significava que a filha era agora uma mulher e que, em breve, lhe poderia dar um neto. O que ele não compreendia eram as suas palavras. Sentiu um pavor atroz, pavor de que Johanna fosse a nova morada do demo. Encostou a porta cuidadosamente e vestiu-se.
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Published on March 28, 2016 15:02

March 26, 2016

António Bizarro - 'Opus I: Dark Room' (Industry Records)

Disponível para audição e download gratuito: 
https://soundcloud.com/antoniobizarro/opus-i-dark-room







 

CDIR001 ©
Industry Records
  
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Published on March 26, 2016 04:03

March 24, 2016

Farblos

Texto extraído do livro Fragmentos – Tony Dornbusch, o terceiro volume da Biblioteca de Saint Paul, uma colecção coordenada por Clarice MacLaren para as Edições Redshift.

“O meu pecado é saber demasiado acerca de nada. Por vezes, tenho enormes dificuldades em ver através do que é claro, como se o meu cérebro, confrontado com a ausência de cor, preenchesse esse vazio com cores imaginárias. Outras vezes, porém, tenho uma visão cristalina de coisas revestidas da mais espessa opacidade ou da escuridão mais densa. Apercebo-me, não raras vezes, que é também assim que me projecto no mundo. Certas emoções e reacções que deixo transparecer involuntariamente, e que me embaraçam pela sua evidência, passam totalmente despercebidas aos olhos dos outros. Mas também já me sucedeu deparar-me com pessoas que, com um único olhar, conseguem sondar os recantos mais profundos e sombrios da minha alma. Através de um murmúrio ininteligível e lacónico da minha parte, descortinam os próprios fundamentos da minha personalidade por entre as brumas e a névoa. Nesses momentos, sinto-me nu, quase como se fosse transparente.”
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Published on March 24, 2016 17:54

March 17, 2016

O Instituto


          "Que Saint Paul cresceu à sombra do Instituto MacLaren, todos nós sabemos. E que as contribuições desta veneranda instituição à nossa cidade são mais do que muitas, também não duvidamos nem questionamos. A cidade e o Instituto são tão indissociáveis um do outro quanto Arkham o é da Miskatonic University. Existem rumores, sempre existiram, de coisas estranhas e bizarras a acontecerem, ou a terem origem, no Instituto. Dou tanto crédito a tais rumores, como dou às inumeráveis teorias da conspiração baseadas em extrapolações falaciosas e provas forjadas por charlatães que traficam pseudociência na televisão por cabo. Não obstante, peço-vos que acreditem que os factos que irei narrar a seguir correspondem à verdade, e a nada mais do que a verdade. A verdade, dir-me-ão, de um cliché ambulante, um escritor alcoólico (ex-alcoólico, corrijo eu), sobejamente conhecido por criar ficções e inventar citações falsas tiradas de livros imaginários escritos por personagens saídos da sua mente ébria. Pois que seja. Aceitem-na como quiserem aceitá-la (...)"
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Published on March 17, 2016 09:33

March 10, 2016

Fear of State and Industry




CDIR002 ©Industry Records
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Published on March 10, 2016 10:11

March 9, 2016

Excerto do conto 'O Longo Caminho de Regresso'


          Vestiu o casaco, trancou o carro e iniciou a caminhada, com uma mão no bolso, a outra a segurar o cigarro. Ainda tinha frio. Eram dez e meia da noite, e White Chapel estava a dormir ou aninhada no sofá a ver a telenovela ou o futebol. Daqui e dali, vindo das lojas dos animais, ouvia-se o som de badalos e um ou outro balido. Ao longe, dois ou mais cães latiam em coro. Avançou pela rua central, cruzando-se com gatos, sapos e morcegos, descrevendo ziguezagues de modo a evitar as bostas de vaca e as caganitas de ovelha. As gentes da aldeia eram gentes madrugadoras e deitavam-se cedo, mas sabia que o pai estava acordado e, de acordo com o que ele lhe contara ao telefone, à mesa da cozinha, ouvindo rádio e a fazer palavras cruzadas. A casa número 66 estava mais degradada do que aquela de que se lembrava. Viu-se diante do pequeno portão gradeado, por trás do qual se subia um lance de escadas para se aceder à varanda em forma de cotovelo que rodeava a casa, conduzindo à porta da cozinha. Costumava trepar por cima do portão quando era criança. Depois de se certificar de que não estava a ser observado, assim, vestido de preto, a entrar furtivamente numa casa, pôs à prova a sua agilidade. Não era igual à que tinha aos dez anos, mas agora tinha a vantagem de ter mais sessenta centímetros do que então. A porta da frente quase nunca era utilizada. Que se lembrasse, só se abria na Páscoa, para receber o padre que ia pela aldeia abençoando as casas e aliviando as carteiras dos aldeões em nome do Senhor. A luz emanada da janela da cozinha esbarrava numa muralha de escuridão que escondia o piso inferior onde estavam as lojas dos animais e o lagar. Do rádio, escorria uma balada xaroposa que ofendia os seus ouvidos de melómano. Respirou fundo, tentando parar os tremores, e bateu à porta. Ouviu o arrastar de uma cadeira, e, por detrás da cortina, surgiu o rosto do pai. Quando abriu a porta, a sua expressão revelava uma mistura de surpresa e incerteza.          – Tony? És tu, rapaz?
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Published on March 09, 2016 14:19

Spectrum Disorder





CDIR002 ©
Industry Records
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Published on March 09, 2016 14:08