António Bizarro's Blog, page 20
April 5, 2017
Urbis et Orbis - Coolboks
"Saint Paul é o centro do meu universo ficcional, uma cidade-Estado algures a meio caminho entre a Europa e as Américas (..) Situar histórias numa cidade fictícia é algo que já foi feito por vultos da literatura maiores do que eu, que sou ainda um mero vislumbre: Lovecraft tinha Arkham, Garcia Márquez Macondo e Faulkner o Condado de Yoknapatawpha."
http://www.coolbooks.pt/noticias/detalhe/?id=121387&langid=1
Published on April 05, 2017 11:20
March 25, 2017
O admirável mundo de «O motor do caos e da destruição»
"Depois de O longo caminho de regresso , publicado pela Coolbooks em 2016, António Bizarro regressa à críptica Saint Paul, à procura de O motor do caos e da destruição , já disponível na livraria virtual Wook, na Bertrand.pt e no Espaço Professor da Porto Editora."
http://www.coolbooks.pt/noticias/detalhe/ver/?id=121103&langid=1
Published on March 25, 2017 06:30
March 24, 2017
'A Espada de Deus', António Bizarro
Disponível para leitura aqui:https://www.wook.pt/wookacontece/novidades/noticia/ver/?id=120982&langid=1
Published on March 24, 2017 13:25
'O Motor do Caos e da Destruição', António Bizarro, Coolbooks
http://www.coolbooks.pt/livraria/ficha/o-motor-do-caos-e-da-destruicao?id=19030738
Uma palavra encontrada num livro antigo tem o potencial de dizimar a Humanidade, e duas facções distintas digladiam-se pela sua posse na cidade da indústria. As autoridades de Saint Paul entram em alerta total devido a uma ameaça vinda dos céus da cidade, e cabe ao inspector Lindberg travá-la. O mote «sexo, drogas e rock industrial» manifesta-se na forma de uma estranha doença que aflige Julian Kronenburg, vocalista da banda Brides of Christ. Numa Saint Paul futurista, o êxodo pendular casa-trabalho/trabalho-casa torna-se numa luta diária pela sobrevivência. A queda de um realizador de cinema no vazio arrasta consigo Felix e Melissa, os quais acabam por se unir na sua luta contra o medo e a solidão. Um escritor atravessa o mundo e os séculos, carregando um segredo terrível, e encontra a sua alma gémea em Saint Paul. A mesma tecnologia que permite repovoar a Terra após o Apocalipse Andróide serve para despoletar psicopatologias latentes, bem como o aparecimento de novos e terríveis crimes. Nas palavras do escritor G.H. Ballantine, «o tempo é o motor do caos e da destruição», e em Saint Paul o passado e o futuro colidem, transformando-se mutuamente.
Published on March 24, 2017 13:14
February 26, 2017
Acerca de 'O Motor do Caos e da Destruição'
De acordo com o Talmude, a língua do homem é como a abelha: tem mel e tem ferrão. No Livro de Provérbios, 18 versículo 21, Salomão diz que a morte e a vida estão no poder da língua. Foram esses os pontos de partida para escrever A Espada de Deus. Julian Kronenburg, além do nome que evoca o de David Cronenberg, foi baseado na figura do vocalista dos Alice In Chains, Layne Staley, cujo corpo foi descoberto a 19 de Abril de 2002, apontando-se a data da morte para o dia 5 desse mês. A formação musical de Julian foi muito semelhante à minha. O festival City Of Industry que é referido na história foi buscar o nome ao meu projecto de música electrónica, com o qual cheguei a editar cinco faixas na compilação Seek and Thistroy, da Thisco Records. No alinhamento desse festival, constam nomes de bandas inventadas por mim. Androctonus é baseada num acontecimento real que ouvi narrado por um jornalista. Em Belgrado, os jipes da ONU andavam a ser alvo de ataques de snipers. O FBI foi chamado a investigar e descobriu o autor dos disparos. Crimes Futuros é a incursão numa Saint Paul pós-apocalíptica onde a clonagem de seres humanos adquire contornos sinistros. A caça de humanos, ou neste caso, Numanos, foi directamente inspirada pela faixa Down in The Park, dos Tubeway Army, banda que tinha como vocalista Gary Numan. Réplica foi inspirada por várias histórias que versam sobre o tema do doppelgänger, nomeadamente, William Wilson de Edgar Allan Poe e O Duplo de Dostoiévski, e por ter travado conhecimento, certa vez, com uma sósia da Uma Thurman. A Solidão e o Medo das Alturas tem por base algo que aconteceu à irmã de uma amiga minha, um incidente em tudo semelhante ao que envolveu Melissa Baum e Mathias Volker. Blasco passa-se num período anterior ao Apocalipse Andróide, um acontecimento catastrófico que levará a Humanidade perto da extinção. Os Incineradores, máquinas de extermínio e esterilização, são prenúncios do que está por vir. Neste conto, somos apresentados a G.H. Ballantine, uma discreta homenagem ao escritor britânico J. G. Ballard. Escreveu Borges: “Desvario laborioso e empobrecedor é o de compor vastos livros (…) Melhor procedimento é simular que esses livros já existem e oferecer um resumo, um comentário.” O excerto do livro de G.H. Ballantine, que se apresenta em O Motor do Caos e da Destruição, começou por ser um conjunto de, à falta de termo melhor, poemas. Certa passagem de Anarquista Duval, dos Mão Morta, inspirou o título: «Dizem que semeio o caos e a destruição como o vento semeia as papoilas... Meu nome é Liberdade!» Commuters foi escrito em várias travessias de barco sobre o Tejo, do Barreiro para Lisboa e de Lisboa para o Barreiro, num tom hiperbólico e caricatural. A Sombra do Viajante, uma alusão pouco subtil a O Viajante e a sua Sombra, de Friedrich Nietzsche, narra a história de Roman Petrescu, um vampiro-escritor, ao som de Bauhaus, Joy Division e Sisters Of Mercy. Miguel Torga queixava-se que os editores eram uns vampiros, preferindo as edições de autor. Neste caso, o editor torna-se presa dos autores. Génesis carece de muitas explicações. É a história da escrita de uma história, e nada mais.António Bizarro
Published on February 26, 2017 07:44
December 18, 2016
António Bizarro - 'City of Industry Vol. I' (Industry Records)
Disponível para audição:
CDIR002 Industry Records
CDIR002 Industry Records
Published on December 18, 2016 03:36
December 10, 2016
A Queda de Allegra
“Reality is that which,when you stop believing in it, doesn't go away.”
Philip Kindred Dick
1 O Sol punha-se rapidamente. A noite caía sobre a terra adormecida, cobrindo-a como um manto de veludo negro. Allegra caminhava de forma trôpega e insegura, embrenhando-se cada vez mais no interior da densa e claustrofóbica floresta. Árvores de ramos retorcidos projectavam sombras tétricas que pareciam espreitá-la lascivamente quando o vento lhe levantava o vestido, revelando a sua pele arrepiada. Começou a sentir-se assustada. Chamou por Deus, mas Deus não lhe respondeu. Deus abandonara-a, sem explicação. Estava perdida, sentindo-se só como nunca antes se tinha sentido. Mais assustada ficou quando discerniu, por entre os troncos rugosos das árvores centenárias e lúgubres, duas luzinhas amarelas avançando vagarosamente na sua direcção. Estacou, como que paralisada, o esfíncter contraindo-se-lhe, o ar frio da noite atravessando as delicadas fibras do seu vestido, gelando-a até aos ossos. Perdeu as luzes de vista por momentos e permaneceu de respiração sustida até voltar a avistá-las. Apercebeu-se de que as duas luzes eram os olhos de um animal semelhante a um cão reflectindo o luar. Os pêlos da sua nuca eriçaram-se e sentiu urina quente a escorrer-lhe pelas pernas trémulas abaixo. Allegra nunca tinha visto nenhum lobo. O portentoso canídeo sentou-se sobre as patas traseiras e fitou-a com curiosidade, de orelhas levantadas.
2 Allegra repousava à sombra de uma árvore frondejante, embalada pelo canto dos pássaros e pelo perfume das flores silvestres. Despertou sorrindo, ao reconhecer a voz de Deus a chamar por ela. Agora que já tinha descansado, disse-lhe Deus, podia continuar a sua caminhada, havia muita gente a precisar da sua ajuda. Não havia tempo a perder. Sim, Deus tinha razão, concordou Allegra, erguendo-se com agilidade de menina. Não tinham tempo a perder.
3 Acabara de abandonar uma pequena povoação, não sem antes ter curado dois cegos, um coxo e um paralítico, quando viu um homem ainda jovem pendurado numa árvore por uma corda que tinha à volta do pescoço, a língua de fora, as pernas contorcendo-se em espasmos irregulares. Soltou um grito agudo e o ramo em que a corda estava amarrada partiu-se. O suicida estatelou-se ruidosamente no chão pejado de folhas caídas. Correu para ele e ajudou-o a tirar a corda do pescoço. Ele não parava de massajar a nuca e a garganta enquanto recuperava o fôlego. Olhou para Allegra e ficou surpreendido com o seu sorriso, a luminosidade que parecia irradiar do seu rosto. — Quem és tu? — perguntou ele, a voz trémula. — O meu nome é Allegra. Eu sei por que estás triste. Não fiques assim, eu consigo ver o teu futuro. Vais casar-te com a mulher que amas, vais ser muito feliz e viver para veres os teus netos correr e brincar. Confia em mim, Johan. — Como sabes tudo isso? — Oh, isso não importa. Sê paciente. Tudo se resolverá da melhor maneira. Adeus, Johan. — Adeus... Allegra —, balbuciou Johan, que ficou a vê-la afastar-se no seu passo calmo.
4 Allegra sentia-se feliz, entretida que estava a colher flores para fazer uma grinalda e embelezar ainda mais a sua cabeça adorável, enquanto Deus lhe contava episódios divertidos da infância de Jesus, soltando as suas gargalhadas de trovão. De súbito, Allegra parou o que estava a fazer e pediu-lhe que se calasse. Apurando os ouvidos, conseguiu distinguir uns gemidos vindos de não muito longe dali. Seguiu os ruídos pé ante pé até descobrir a sua origem. Era um homem de joelhos em tronco nu, as costas ensanguentadas, segurando nas mãos um ramo cheio de espinhos com que tinha estado a flagelar-se. Junto dele estava uma sotaina de padre, pousada negligentemente sobre a terra. Allegra fitou-o com ar de interrogação e o clérigo, ao dar pela sua presença, ergueu para ela os olhos marejados de lágrimas e disse: — Perdi a minha fé. Já não acredito em Deus. Fui tentado pelo Demo e não consegui resistir. Entreguei-me ao deboche e à devassidão... À noite, sonho com o fim do mundo... Todas as noites... Do olho direito de Allegra saiu uma pequena lágrima reluzente que se evaporou antes de tocar no chão. Ajoelhou-se a seu lado, afagando-lhe o cabelo. — O mundo não vai acabar senão daqui a muitos milhares de anos. Não tens que ter medo. Aos ouvidos do padre, a sua voz soava como música celestial, e Allegra, ao notar o alívio no seu rosto, absteve-se de lhe dizer que a espécie humana já estaria extinta há muito quando o mundo acabasse. — Tu não perdeste a fé em Deus — continuou ela — mas sim na tua própria fé. Deus é amor. Deus já te perdoou por tudo o que fizeste. Tens é que saber perdoar-te a ti mesmo. Ao acariciar-lhe as costas, o sangue desapareceu e as feridas fecharam-se. O rosto do padre iluminou-se, os olhos muito abertos de espanto e gratidão. — És um anjo? — perguntou ele, quase em êxtase. — Não — disse ela, soltando uma gargalhada. — O meu nome é Allegra. Afastou-se, despedindo-se do padre, e continuou a colher flores para a sua grinalda enquanto Deus não parava de elogiar a sua bondade.
5 — Quem és tu? — perguntou Allegra, a voz embargada. — O meu nome é Nicolai Lupovitch — disse o lobo, num tom gutural. — Sofro de licantropia, uma espécie de esquizofrenia em que os homens julgam que se transformam em lobos. Durante as noites de Lua cheia, corria pelas ruas de Saint Paul atacando pessoas, arranhando-as e mordendo-as, quase matando-as. À noite, não conseguia dormir. Era atormentado por sonhos estranhos. Sonhava com lobos. Allegra olhava para o lobo com uma expressão de desespero. Não compreendia o que ele lhe estava a dizer. — Os lobos nos meus pesadelos representavam o meu pai. Através da hipnose regressiva, descobri que ele era um alcoólico cruel e autoritário que costumava espancar-me com bastante frequência, fechando-me numa arrecadação às escuras por vezes durante dias a fio. Allegra tinha começado a chorar, sem saber porquê. Afastou-se do lobo, dando pequenos passos para trás. O lobo continuou o seu discurso, imperturbável. — A razão pela qual a minha esquizofrenia se manifestou sob a forma de uma licantropia tem a ver com o facto de a minha avó, uma mulher senil e morfinómana, me contar todas as noites, quando eu era pequeno, a sua própria versão da história da Capuchinho Vermelho. Conheces essa história? — Não — murmurou Allegra, as faces húmidas de lágrimas. — Segundo ela, a Capuchinho Vermelho era uma ninfeta lasciva cuja voluptuosidade transformava os homens em bestas lúbricas. Ela rejeitava o Lobo, e então ele ia a casa da Avó dela e violava-a antes de a devorar. A minha avó descrevia-me a cena da violação com grande profusão de pormenores gráficos, alongando-se a explicar-me a forma como o membro viril do Lobo rasgava o sexo da sexagenária. No fim, quando o Lobo se preparava para violar a Capuchinho Vermelho, o Caçador entrava em cena e matava-a a ela e não o Lobo. Com ela morta, o Lobo voltava a ser um homem. — Por que é que me estás a contar tudo isto!? — soluçou Allegra. Sentia o chão a fugir-lhe sob os pés. — Dizem-me que as minhas crises aconteciam nas noites de Lua cheia devido à sua influência sobre as marés. Que o nosso corpo é constituído por setenta e cinco por cento de água, pelo que também nós seremos influenciados por ela. Mas já estou muito melhor. Faço terapia e dizem-me que estou a fazer progressos. Em breve poderei sair daqui. — Daqui? Daqui? — gritou Allegra, puxando os cabelos, chorando em desespero. — Daqui, de onde? — Do Instituto MacLaren, de onde havia de ser? — retorquiu Nicolai Lupovitch. — Do Instituto MacLaren… Do Instituto MacLaren... Repetiu obsessivamente as palavras até perderem o seu significado. Começou tudo a voltar-lhe à memória, os abusos sexuais por parte do pai, a delinquência e o consumo de drogas na adolescência. O seu nome era Hannah e não Allegra. Viu-se a si mesma a correr nua pelas ruas de uma cidade. Caía num abismo cada vez mais negro e profundo, não parava de gritar ao mesmo tempo que esperneava e esbracejava, vozes desconhecidas ecoavam no interior da sua cabeça, nomes que ela não conhecia, Dr. Mallory, Dr.ª Lowensohn, fragmentação de personalidade, homem-lobo, licantropia, um caso clássico, estado delirante, cinquenta miligramas, está a tentar-me dizer que ela viu o esquizofrénico como um lobo?, empatia, uma manifestação específica do inconsciente colectivo, não seja ridículo, Dr. Mallory, o silêncio, a escuridão.
Published on December 10, 2016 09:46
Allegra
“Reality is that which,when you stop believing in it, doesn't go away.”
Philip Kindred Dick
1 O Sol punha-se rapidamente. A noite caía sobre a terra adormecida, cobrindo-a como um manto de veludo negro. Allegra caminhava de forma trôpega e insegura, embrenhando-se cada vez mais no interior da densa e claustrofóbica floresta. Árvores de ramos retorcidos projectavam sombras tétricas que pareciam espreitá-la lascivamente quando o vento lhe levantava o vestido, revelando a sua pele arrepiada. Começou a sentir-se assustada. Chamou por Deus, mas Deus não lhe respondeu. Deus abandonara-a, sem explicação. Estava perdida, sentindo-se só como nunca antes se tinha sentido. Mais assustada ficou quando discerniu, por entre os troncos rugosos das árvores centenárias e lúgubres, duas luzinhas amarelas avançando vagarosamente na sua direcção. Estacou, como que paralisada, o esfíncter contraindo-se-lhe, o ar frio da noite atravessando as delicadas fibras do seu vestido, gelando-a até aos ossos. Perdeu as luzes de vista por momentos e permaneceu de respiração sustida até voltar a avistá-las. Apercebeu-se de que as duas luzes eram os olhos de um animal semelhante a um cão reflectindo o luar. Os pêlos da sua nuca eriçaram-se e sentiu urina quente a escorrer-lhe pelas pernas trémulas abaixo. Allegra nunca tinha visto nenhum lobo. O portentoso canídeo sentou-se sobre as patas traseiras e fitou-a com curiosidade, de orelhas levantadas.
2 Allegra repousava à sombra de uma árvore frondejante, embalada pelo canto dos pássaros e pelo perfume das flores silvestres. Despertou sorrindo, ao reconhecer a voz de Deus a chamar por ela. Agora que já tinha descansado, disse-lhe Deus, podia continuar a sua caminhada, havia muita gente a precisar da sua ajuda. Não havia tempo a perder. Sim, Deus tinha razão, concordou Allegra, erguendo-se com agilidade de menina. Não tinham tempo a perder.
3 Acabara de abandonar uma pequena povoação, não sem antes ter curado dois cegos, um coxo e um paralítico, quando viu um homem ainda jovem pendurado numa árvore por uma corda que tinha à volta do pescoço, a língua de fora, as pernas contorcendo-se em espasmos irregulares. Soltou um grito agudo e o ramo em que a corda estava amarrada partiu-se. O suicida estatelou-se ruidosamente no chão pejado de folhas caídas. Correu para ele e ajudou-o a tirar a corda do pescoço. Ele não parava de massajar a nuca e a garganta enquanto recuperava o fôlego. Olhou para Allegra e ficou surpreendido com o seu sorriso, a luminosidade que parecia irradiar do seu rosto. — Quem és tu? — perguntou ele, a voz trémula. — O meu nome é Allegra. Eu sei por que estás triste. Não fiques assim, eu consigo ver o teu futuro. Vais casar-te com a mulher que amas, vais ser muito feliz e viver para veres os teus netos correr e brincar. Confia em mim, Johan. — Como sabes tudo isso? — Oh, isso não importa. Sê paciente. Tudo se resolverá da melhor maneira. Adeus, Johan. — Adeus... Allegra —, balbuciou Johan, que ficou a vê-la afastar-se no seu passo calmo.
4 Allegra sentia-se feliz, entretida que estava a colher flores para fazer uma grinalda e embelezar ainda mais a sua cabeça adorável, enquanto Deus lhe contava episódios divertidos da infância de Jesus, soltando as suas gargalhadas de trovão. De súbito, Allegra parou o que estava a fazer e pediu-lhe que se calasse. Apurando os ouvidos, conseguiu distinguir uns gemidos vindos de não muito longe dali. Seguiu os ruídos pé ante pé até descobrir a sua origem. Era um homem de joelhos em tronco nu, as costas ensanguentadas, segurando nas mãos um ramo cheio de espinhos com que tinha estado a flagelar-se. Junto dele estava uma sotaina de padre, pousada negligentemente sobre a terra. Allegra fitou-o com ar de interrogação e o clérigo, ao dar pela sua presença, ergueu para ela os olhos marejados de lágrimas e disse: — Perdi a minha fé. Já não acredito em Deus. Fui tentado pelo Demo e não consegui resistir. Entreguei-me ao deboche e à devassidão... À noite, sonho com o fim do mundo... Todas as noites... Do olho direito de Allegra saiu uma pequena lágrima reluzente que se evaporou antes de tocar no chão. Ajoelhou-se a seu lado, afagando-lhe o cabelo. — O mundo não vai acabar senão daqui a muitos milhares de anos. Não tens que ter medo. Aos ouvidos do padre, a sua voz soava como música celestial, e Allegra, ao notar o alívio no seu rosto, absteve-se de lhe dizer que a espécie humana já estaria extinta há muito quando o mundo acabasse. — Tu não perdeste a fé em Deus — continuou ela — mas sim na tua própria fé. Deus é amor. Deus já te perdoou por tudo o que fizeste. Tens é que saber perdoar-te a ti mesmo. Ao acariciar-lhe as costas, o sangue desapareceu e as feridas fecharam-se. O rosto do padre iluminou-se, os olhos muito abertos de espanto e gratidão. — És um anjo? — perguntou ele, quase em êxtase. — Não — disse ela, soltando uma gargalhada. — O meu nome é Allegra. Afastou-se, despedindo-se do padre, e continuou a colher flores para a sua grinalda enquanto Deus não parava de elogiar a sua bondade.
5 — Quem és tu? — perguntou Allegra, a voz embargada. — O meu nome é Nicolai Lupovitch — disse o lobo, num tom gutural. — Sofro de licantropia, uma espécie de esquizofrenia em que os homens julgam que se transformam em lobos. Durante as noites de Lua cheia, corria pelas ruas de Saint Paul atacando pessoas, arranhando-as e mordendo-as, quase matando-as. À noite, não conseguia dormir. Era atormentado por sonhos estranhos. Sonhava com lobos. Allegra olhava para o lobo com uma expressão de desespero. Não compreendia o que ele lhe estava a dizer. — Os lobos nos meus pesadelos representavam o meu pai. Através da hipnose regressiva, descobri que ele era um alcoólico cruel e autoritário que costumava espancar-me com bastante frequência, fechando-me numa arrecadação às escuras por vezes durante dias a fio. Allegra tinha começado a chorar, sem saber porquê. Afastou-se do lobo, dando pequenos passos para trás. O lobo continuou o seu discurso, imperturbável. — A razão pela qual a minha esquizofrenia se manifestou sob a forma de uma licantropia tem a ver com o facto de a minha avó, uma mulher senil e morfinómana, me contar todas as noites, quando eu era pequeno, a sua própria versão da história da Capuchinho Vermelho. Conheces essa história? — Não — murmurou Allegra, as faces húmidas de lágrimas. — Segundo ela, a Capuchinho Vermelho era uma ninfeta lasciva cuja voluptuosidade transformava os homens em bestas lúbricas. Ela rejeitava o Lobo, e então ele ia a casa da Avó dela e violava-a antes de a devorar. A minha avó descrevia-me a cena da violação com grande profusão de pormenores gráficos, alongando-se a explicar-me a forma como o membro viril do Lobo rasgava o sexo da sexagenária. No fim, quando o Lobo se preparava para violar a Capuchinho Vermelho, o Caçador entrava em cena e matava-a a ela e não o Lobo. Com ela morta, o Lobo voltava a ser um homem. — Por que é que me estás a contar tudo isto!? — soluçou Allegra. Sentia o chão a fugir-lhe sob os pés. — Dizem-me que as minhas crises aconteciam nas noites de Lua cheia devido à sua influência sobre as marés. Que o nosso corpo é constituído por setenta e cinco por cento de água, pelo que também nós seremos influenciados por ela. Mas já estou muito melhor. Faço terapia e dizem-me que estou a fazer progressos. Em breve poderei sair daqui. — Daqui? Daqui? — gritou Allegra, puxando os cabelos, chorando em desespero. — Daqui, de onde? — Do Instituto MacLaren, de onde havia de ser? — retorquiu Nicolai Lupovitch. — Do Instituto MacLaren… Do Instituto MacLaren... Repetiu obsessivamente as palavras até perderem o seu significado. Começou tudo a voltar-lhe à memória, os abusos sexuais por parte do pai, a delinquência e o consumo de drogas na adolescência. O seu nome era Hannah e não Allegra. Viu-se a si mesma a correr nua pelas ruas de uma cidade. Caía num abismo cada vez mais negro e profundo, não parava de gritar ao mesmo tempo que esperneava e esbracejava, vozes desconhecidas ecoavam no interior da sua cabeça, nomes que ela não conhecia, Dr. Mallory, Dr.ª Lowensohn, fragmentação de personalidade, homem-lobo, licantropia, um caso clássico, estado delirante, cinquenta miligramas, está a tentar-me dizer que ela viu o esquizofrénico como um lobo?, empatia, uma manifestação específica do inconsciente colectivo, não seja ridículo, Dr. Mallory, o silêncio, a escuridão.
Published on December 10, 2016 09:46
December 2, 2016
Downloads Bizarros
FRAGMENTOS - TONY DORNBUSCH (Livro)
https://drive.google.com/file/d/0BwLi3wm4X6oMREMzaHk1Nl9qQk0/view?usp=sharing
OPUS I: DARK ROOM (Álbum)
https://soundcloud.com/antoniobizarro/opus-i-dark-room
CITY OF INDUSTRY VOL. I (Álbum)
https://soundcloud.com/antoniobizarro/city-of-industry-vol-i
CITY OF INDUSTRY VOL. II (Álbum)
https://soundcloud.com/antoniobizarro/city-of-industry-vol-ii
CITY OF INDUSTRY VOL. III (Álbum)
https://soundcloud.com/antoniobizarro/city-of-industry-vol-iii
NOVOS FRAGMENTOS - TONY DORNBUSCH (Livro)
https://drive.google.com/file/d/0BwLi3wm4X6oMSGJpZW93WHhLU3M/view?usp=sharing
OPUS II: SACRED PARTS (Álbum)
https://soundcloud.com/antoniobizarro/opus-ii-sacred-parts
https://drive.google.com/file/d/0BwLi3wm4X6oMREMzaHk1Nl9qQk0/view?usp=sharing
OPUS I: DARK ROOM (Álbum)
https://soundcloud.com/antoniobizarro/opus-i-dark-room
CITY OF INDUSTRY VOL. I (Álbum)
https://soundcloud.com/antoniobizarro/city-of-industry-vol-i
CITY OF INDUSTRY VOL. II (Álbum)
https://soundcloud.com/antoniobizarro/city-of-industry-vol-ii
CITY OF INDUSTRY VOL. III (Álbum)
https://soundcloud.com/antoniobizarro/city-of-industry-vol-iii
NOVOS FRAGMENTOS - TONY DORNBUSCH (Livro)
https://drive.google.com/file/d/0BwLi3wm4X6oMSGJpZW93WHhLU3M/view?usp=sharing
OPUS II: SACRED PARTS (Álbum)
https://soundcloud.com/antoniobizarro/opus-ii-sacred-parts
Published on December 02, 2016 12:45


