Não fossem as sílabas do sábado Quotes

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Não fossem as sílabas do sábado Não fossem as sílabas do sábado by Mariana Salomão Carrara
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Não fossem as sílabas do sábado Quotes Showing 1-9 of 9
“Não puxei nunca um assunto com meu pai, nem ele. O assunto não é assim, não é uma esteira de opções passando diante de nós e basta pegar um e aqui temos, filha, você achou mais fraca essa escola nova? Não, o assunto é apenas um, ele começa na primeira vez em que nos vemos e vai crescendo junto com o nosso tempo, vai criando ramos, cada dupla tem uma árvore diferente de assunto e o meu pai não cultivava com ninguém, não comigo, nosso assunto morreu em muda, não chegou a fazer nenhum ramo, fomos correndo o nosso tempo um do lado do outro sem que nenhum galhinho nos alcançasse.”
Mariana Salomão Carrara, Não fossem as sílabas do sábado
“Mas é importante para as tragédias que elas sejam descobertas imediatamente, porque cada segundo que elas passam ocultas vira um ano a mais de luto, isso é um capricho que as desgraças têm.”
Mariana Salomão Carrara, Não fossem as sílabas do sábado
“O intervalo insuportável entre o hábito e a dor. No começo ele é frequente, chamei de instante perverso. Esbarrava numa notícia, uma obra de arte, e por um segundo vinha viva a ansiedade de comentar com o André, instinto que no segundo seguinte era fulminado pela dor que enfim chegava a tempo de tomar o seu devido lugar, mas não sem antes, desidiosa ou sádica, permitir que se instalasse em mim o instante perverso.”
Mariana Salomão Carrara, Não fossem as sílabas do sábado
“Como somos imbecis tentando aplicar a lógica patética dos vivos aos que não conseguem mais, qual a importância de um brigadeiro numa língua inteira amarga num estômago dobrado de desgosto.”
Mariana Salomão Carrara, Não fossem as sílabas do sábado
tags: luto, morte
“se ela podia entrar, se ela podia pelo menos chorar aqui onde os móveis não lhe diziam nada, e me espantei que ela também tivesse esse problema da conversa dos móveis, porque ela aqui na minha casa tinha a desenvoltura dos que não escutam as paredes as madeiras as portas, e daí me ocorreu que as casas só falam com seus moradores, feito um cachorro fiel que, ao contrário, deu-se conta de que os donos morrem muito cedo, e tão de repente.”
Mariana Salomão Carrara, Não fossem as sílabas do sábado
“Ou quem sabe não foi nada disso, fui eu que enterrei todos os amigos junto com o André sem perceber, empurrei tudo para dentro do jazigo com o cheiro molhado de flor e terra e empedrado de mármore, era preciso que não existisse mais nada do que vivia com o André porque com ele se apagou pelo menos metade de cada pessoa para mim, passaram a ser fantasmagóricos, espectros de um tempo interrompido.”
Mariana Salomão Carrara, Não fossem as sílabas do sábado
“Sexo casual. Esse namorado dela talvez seja casual. Queria tanto ser casual, deve ser uma delícia ser casual, uma suave passagem de um beija-flor na janela, jamais, nada é casual depois que se é atravessado pela tragédia, outra sintonia, mais melancólica, tudo são fardos, a água da casa dos homens casuais tem outro gosto, os detalhes dos apartamentos mal decorados objetos encaixotados fórmicas descoloridas compensados óbvios lençóis com cheiro de gente, como se pode ser casual reparando na desconcertante neutralidade dos móveis triviais, diferentes dos móveis que tinham uma pessoa deitada por cima e de repente deixaram de ter, diferentes dos móveis em cima dos quais se jantava contando sobre tentáculos exaustos do polvo gigante do Pacífico e de repente não se janta, os móveis dos homens casuais às vezes baratos às vezes muito caros mas todos despojados da contração de uma dor tão estrutural e acachapante, as fibras banais dos móveis deles, as palavras que os homens casuais dizem e que não se encaixam com o que eu aprendi serem as palavras certas de um homem, as melhores para ouvir, nas casas deles eu caminho densa pelos pisos sintéticos laminados que logo se incomodam com meu peso imenso massacrando o acabamento, a água do meu banho que engrossa em mim e atola no ralo, saio alagando os banheiros, vazando pela sala, cachoeira nas varandas, nada me é casual.”
Mariana Salomão Carrara, Não fossem as sílabas do sábado
tags: sexo
“Na minha cabeça não suicida é sempre possível convencer alguém a viver pelo menos mais umas horas para que possa ter um prazer de uma musse de chocolate com avelã, um vinho forte com gorgonzola, sempre me parece absurdo que alguém não escolha suportar só mais uns instantes a vida em troca de uma panela inteira de brigadeiro quente, um abismo entre mim e os suicidas, mesmo imersa nesse caldeirão denso de preguiças e indiferenças não compreendo o Miguel, nem a Madalena que não estava lá para deixar o cheiro do brigadeiro dominar a casa, ou de repente pães de queijo fresquinhos que escapam do forno e vão até a janela onde o Miguel vacila em desespero e uma pequena vontade de comer pães de queijo já seria alguma vontade e talvez ele concluísse que se ainda existe aquela vontade poderiam voltar a existir outras.”
Mariana Salomão Carrara, Não fossem as sílabas do sábado
“Se não quiséssemos engravidar. Se não quiséssemos engravidar e por isso tivéssemos comprado o apartamento da outra rua, de um dormitório. Se eu não gostasse da ventilação cruzada ou então se tivéssemos dinheiro para comprar aqueles apartamentos chiques de janelas de brise que não comportam a passagem de um vizinho suicida.
Se eu não estivesse grávida e por isso não tivesse saído animada do exame, pensando no quadro. Se na viagem não tivéssemos achado a loja do pôster de filme que ia se tornar o quadro. Se um dos dois não tivesse visto o filme do pôster. Se a loja do pôster não aceitasse cartão. Se não tivéssemos feito a viagem do pôster.
Se eu não tivesse apressado o André para me alcançar e levar o pôster que era finalmente um quadro. Se o porteiro Flávio tivesse puxado qualquer assunto, na saída da portaria. Ou se o porteiro Flávio não tivesse puxado o assunto que talvez tenha puxado, seu André, chegou aquela revista, Oi? A revista, o senhor quer agora? Ah, na volta pego. Se eu tivesse aguentado o quadro, feito mais força, pedido ajuda a qualquer um na rua.
Se a Madalena não tivesse escolhido aquele prédio. Se ela não tivesse conhecido o Miguel e casado com ele. Se a Madalena não existisse.”
Mariana Salomão Carrara, Não fossem as sílabas do sábado