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Foi nessa idade que aprendi uma lição importante, que mudaria a minha vida para sempre: meninos são idiotas.
Era um jogo recém-lançado da Nevasca Studios, uma das produtoras de games mais importantes do Brasil. Eu estava perturbando meu pai para me deixar jogar fazia tempo. E agora… estava finalmente acontecendo.
Minha mãe tentou conter a risada, mas o som escapou por entre seus lábios, atraindo o olhar carrancudo do meu pai.
— Ah, meu amor. Os meninos são mesmo uns idiotas — minha mãe disse, me puxando para um abraço. — Mas não precisa chorar por isso. Você vai mostrar o seu valor, tenho certeza.
Abracei seu pescoço e dei um beijo na sua bochecha antes de sair correndo de volta para o escritório.
Era exatamente desse jeito que eu me sentia quando falava com a Ayla. Toda vez que ela me ligava no Skype, eu quase tinha um treco. Mas depois que atendia e começávamos a conversar, a sensação ruim passava. Sabe quando você está tão ansiosa e animada para uma viagem que enfrenta todos os obstáculos para chegar até lá? Ayla era o destino da viagem pela qual eu mais ansiava. O que só tornava tudo o que eu estava fazendo ainda pior. Respirei fundo, me preparando, e atendi a chamada.
Não tinha como eu saber, mas gostava de imaginar que ela só ficava tão animada assim quando falava comigo.
Ayla gargalhou, e eu me perdi um segundo, encantada com o som.
A Ayla chegou chutando essa porta que eu mantinha muito bem trancada. De início, confesso que só aceitei ajudá-la porque entendia bem o que estava passando.
Ayla dizia que, se sua mãe não a forçasse a frequentar a igreja toda semana, ela talvez até simpatizasse com o catolicismo. Por isso, ter outra religião era quase uma forma de protesto silencioso para ela. Apesar de ter começado como birra, no fim ela se encontrou no budismo.
Por isso a amizade do Leo foi tão importante naquele momento.
Mas o que eu sentia pela Ayla não era um engano. Era forte demais. Ainda mais considerando que nunca tínhamos nos encontrado. E, mesmo que nunca tivéssemos a oportunidade de nos conhecer pessoalmente, isso não invalidaria o que eu sentia.
Mas eu não podia mentir: muitas vezes preferia, sim, ficar ali falando com o Leo pelo Skype a sair de casa. Não só porque ele era a minha melhor companhia, mas também porque eu não tinha realmente muitos amigos com quem passar o tempo.
O Leo trouxe luz aos meus dias.
Estar com ele fazia eu me sentir eu mesma. E era raro eu me sentir eu mesma.
Com ele eu não pensava muito em quem eu deveria ser. Eu só era.
Sayuri também foi a única para quem contei sobre a confusão dentro de mim quando percebi que me sentia atraída por uma garota da escola nova. Foi ela quem me acalmou e disse que não tinha nada de errado em gostar de meninas.
— Mas se fosse para ser fácil, não seria um concurso, não é? — comentou, enquanto passávamos para o lado, esperando os sorvetes. — Se você fizer algo mais complexo, tem mais chances de ganhar. — Eu sei — concordei, desanimada enquanto recebíamos os pedidos. — Filha, eu tenho certeza de que você vai conseguir. — Ele passou o braço pelo meu ombro e me puxou em direção à mesa. — Minha menininha é muito capaz. E vai mostrar a eles que faz o melhor cosplay do país. — Apoiado! — exclamou tio Jorge, que só tinha ouvido a última parte, fazendo todo mundo rir. Até eu abri um meio sorriso, me rendendo.
— Acho que essa é a mágica da atuação, sabe? Porque quando eu tô interpretando um papel, não sou eu. Sou o forte e imponente Arlamian, o rei dos elfos, ou a doce e delicada Tilly, a gnoma, ou o chato do Leo. — Pelo canto do olho, pude vê-lo mostrar a língua para mim. — Quando eu entro no personagem, de verdade, eu sou aquela pessoa. Não tem espaço para a minha vergonha, a não ser que a pessoa que estou interpretando também seja envergonhada. Ainda assim é diferente. Porque cada um tem uma personalidade, um trejeito, uma característica única.
— Sei lá, às vezes eu tenho a impressão de que você gosta de atuar porque é a única forma de ser quem você quiser, sem que ninguém fique te julgando, sabe?
Não sei, pode ser besteira minha, mas às vezes eu tenho a sensação de que atuar não é só um passatempo, mas a forma que você encontrou pra se libertar.
Sei que de vez em quando não parece que a Drica e eu te damos muita força, mas eu tô achando muito incrível ver o quanto você tá se empenhando pra conhecer esse garoto…
Era a primeira vez que Drica falava qualquer coisa para apoiar a minha relação com o Leo, e confesso que até me emocionei. Pode ser que nós três tivéssemos uma amizade um pouco incomum e vivêssemos em mundos completamente diferentes. Mas apesar de tudo isso elas estavam ao meu lado quando eu mais precisava. E ainda se esforçavam para me apoiar e entender o que eu estava fazendo. Se isso não era amizade verdadeira, eu não sabia o que era.
— Raíssa Machado. É você, não é? Tem certeza? Absoluta? — perguntou Leo, perplexo, enquanto encarávamos a tela do computador.
Eu ainda estava paralisada, lendo e relendo o post do concurso, quando Leo me sacudiu, fazendo a cadeira em que eu estava sentada ranger. — Raíssa, fala alguma coisa! — ele pediu, exasperado. Eu ganhei. Ganhei mesmo. A maior produtora de games do Brasil tinha me notado. — Caralh… — Raíssa! — Leo berrou, chamando minha atenção novamente. Olhei para ele, que estava sentado em uma cadeira da sala que eu tinha arrastado para o quarto. Seu rosto estava vermelho de empolgação, e seus cachinhos pretos já tinham ficado completamente sem definição depois de tanto passar a mão para conter o nervosismo.
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— Eu ganhei o concurso! A GENTE VAI PRA NEVASCA EXPO! — berrei, virando para ela enquanto ainda pulava pelo quarto.
Quase quis gritar Chupa essa, otária!, mas, bem… era a minha mãe, e eu temia pela minha vida. E, principalmente, pela minha viagem.
e, agora, ele teria um gostinho ainda mais especial. Gostinho de vitória. — Eu ganhei o concurso da Nevasca! — berrei novamente, pelo que parecia ser a milésima vez. Meu pai arregalou os olhos e então abriu um sorriso enorme no rosto. — Mentira! — Ele entrou no quarto carregando o pote e tudo, e chegou perto de mim para me dar um beijo. Eu o abracei de lado, tentando não atrapalhar o preparo do bolo, e nós começamos a pular juntos de empolgação. Meu pai conseguia ser uma bela de uma criança às vezes. — Não acredito, filha, parabéns! Meu Deus, essa notícia é maravilhosa!
— Valeu, mãe, você é demais! — agradeci a ela, contente, porque sabia que aquilo iria amolecê-la. E ela realmente relaxou os ombros e sorriu, puxando-me para um abraço, tentando não tocar as luvas ensopadas em mim. — Você merece, filha, tô muito orgulhosa de você. Mas, olha, tenha juízo lá. É do hotel pra feira, da feira pro hotel, viu? Não quero você perambulando sozinha por aquela cidade, mesmo com o Leo. — Pode deixar, mãe, vai dar tudo certo! — Já deu — completou o Leo, com uma expressão feliz.
— Ayla, Ayla! — ela berrou, sua voz se aproximando do meu quarto a cada segundo. — Eu consegui! Você vai ter que me pagar favores pro resto da vida! — O que aconteceu? — perguntei quando ela entrou feito um furacão no meu quarto desorganizado. Então ela ergueu um pedaço de papel que escondia às costas. Um ingresso da Nevasca EXPO! Dei um pulo da cama na mesma hora, o choro cessando sem cerimônia. — Como você conseguiu isso, Say?! — Meus olhos estavam arregalados enquanto eu tirava o ingresso da mão dela, quase como se quisesse comprovar que era mesmo real. — Tenho meus contatos — respondeu com
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— Eu te levo — Sayuri disse na mesma hora. — Aproveito pra dar uma passeada. — E na volta? — Também. Abri um sorriso enorme, voltando a ficar empolgada agora que tudo parecia mesmo real. Eu ia para a Nevasca EXPO! Eu ia conhecer o Leo! — Você é um anjo, Say! — Juntei a palma das mãos, em agradecimento, e então pulei em seu pescoço. — Fico te devendo uma vida inteira de favores mesmo. — Acho bom você deixar isso bem anotadinho, porque vou cobrar — ela brincou com um sorriso no rosto, retribuindo o abraço.
Qual desculpa você vai dar agora pra não deixar que a menina vá? Aliás, até quando você vai continuar descontando nela toda a sua raiva e frustração? — perguntou de repente, e eu senti minha mãe hesitar por um instante, como se tivesse levado uma bofetada com a simples menção daquele assunto.
— Ahh, Inês. Eu acho que nós duas sabemos que o comportamento da Ayla não tem nada a ver com esse jogo. Dava para ver que Sayuri começava a perder a paciência. Eu precisava interferir. Por isso, segurei minha tia pelo braço e dei um passo à frente. Respirei fundo antes de tomar coragem para falar. — Mãe, a Sayuri tem razão. Meu “comportamento” não tem nada a ver com o jogo, mas com o que acontece nessa casa.
— É isso mesmo que você ouviu — insisti, tentando soar mais firme do que eu me sentia. Na verdade, parecia que eu ia vomitar. — Se fiquei mais reclusa, mais rebelde, e vou de mal a pior na escola, é porque não aguento mais essa guerra fria entre você e o papai.
A Sayuri pensa, e ela fez de tudo pra que eu conseguisse essa coisinha — sacudi o ingresso na direção dela — que ia me deixar mais feliz do que estive nos últimos tempos.
Sayuri e eu nos entreolhamos, e então abrimos um largo sorriso. — Acho que foi melhor do que a gente esperava, não? — Sayuri perguntou, soltando um gritinho de empolgação. Parecia que eu tinha acabado de tirar um peso gigantesco das costas. A sensação era boa até demais.
Porque eu estava feliz. Tipo, muito feliz.
Tudo o que importava era que eu tinha ganhado o concurso de cosplay. Eu seria reconhecida publicamente em um evento da programação oficial da Nevasca EXPO, no domingo, além de já ter saído na página da empresa. Receberia prêmios no jogo e estaria na maior feira de games do Brasil! Caramba, eu estava nas nuvens. Então, sim, talvez a minha bússola moral estivesse um pouquinho desajustada, mas se eu estava indo para lá era melhor não ficar me remoendo com a culpa. Isso eu deixaria para mais tarde.
— Não importa, Raíssa. O importante é que estamos aqui. Está acontecendo! — Leo exclamou, empolgado, me sacudindo pelos ombros. A gente quase começou a gritar e pular na fila, mas nos contivemos porque seria mico demais. — Bom dia — cumprimentei, sorridente, assim que chegou nossa vez. — Eu ganhei o concurso de cosplay e me informaram que a retirada dos ingressos seria aqui na bilheteria? — falei, quase em tom de pergunta. A atendente pediu nossos documentos e assim que entregou os ingressos, Leo e eu os encaramos, admirados. Era lindo. E brilhava. E tinha ilustrações dos símbolos de cada
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Eu estava com o celular em mãos, ansiosa, lendo e relendo a mensagem do Leo pela milésima vez. — Sim! Ele já tá lá. Começou agora o evento. — Olhei para Sayuri, sentindo o sorriso amarelo que estampava meu rosto. O nervosismo estava deixando meus movimentos duros, mecânicos. — Você parece tão tranquila… — zombou minha tia, rindo da cara que eu fazia. Tentei relaxar, rindo junto com ela. — Tá ansiosa? — Pro evento? Muito! — Esfreguei as mãos uma na outra para fazer o fluxo de sangue acelerar. Minha mão estava até dura, tamanha minha tensão. — Não, boba, pra conhecer o Leo. Meu estômago se
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atração que senti pela Ana Luiza, uma veterana do ensino médio, quando entrei na escola? E, alguns meses depois, pelo Pedro Paulo, meu colega de turma?
a atração que eu sentia por pessoas, independente do gênero.
Cada vez que eu tentava dizer a mim mesma que não tinha nada de errado em gostar de meninas, que eu era normal,
— Tá bom, pode deixar, mãe — brinquei, abraçando Sayuri com força. — Obrigada, tá? De verdade. Você tem sido incrível. Eu te amo muito! — Eu também te amo, chefinha. Vai se divertir agora! E juízo. Tô botando minha mão no fogo por você. Não vai fazer rebeldia.
mas para o Leo aquela viagem tinha um significado diferente. Desde que começou a entender a própria sexualidade, ele passou a falar muito em sair de Sorocaba.
o Leo era do mundo.
Por causa disso, nos últimos tempos o sonho da vida dele era passar em alguma faculdade em São Paulo e morar sozinho na capital. Ele estava no céu naquela feira, conhecendo um pouquinho que fosse da cidade, vendo tantas pessoas diferentes e sentindo um gostinho do que o esperava dali a algum tempo.
— Você sabe como a Ayla é. Super conto de fadas, gosta de filmes românticos clássicos… — comecei a explicar. — Gosta de coisas fofas, de demonstrações de carinho, de palavras afetuosas, sabe?
Sei que pode não parecer, mas ela é muito insegura. Acho que às vezes ela nem percebe o quanto se deixa em segundo plano pelos outros, sabe? Fica evitando falar sobre as coisas que incomodam ela pra não perturbar ninguém, nunca quer escolher o filme que a gente vai ver ou o livro que a gente vai trocar no mês, como se ela tivesse medo de impor sua vontade. Mas também não gosta que fiquem apontando as qualidades dela. Então qualquer gesto de carinho que você fizer, precisa ser sutil.
Por mais apaixonada que eu estivesse, não ia suportar continuar a enganá-la, principalmente agora que a mentira tinha tomado proporções ainda maiores.