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Os homens matavam-se uns aos outros e mutilavam seus corpos em nome de virtudes abstratas, então Joyce decidiu escrever um “épico do corpo”, materialista, com um relato minucioso das suas funções e frustrações.
Você não acha a busca por heroísmo uma baita vulgaridade? […] Tenho certeza, no entanto, de que toda a estrutura do heroísmo é, e sempre foi, uma baita mentira e de que não há substituto para a paixão individual como força motriz de tudo.
O Ulysses é o resultado dessa carta e de seus sentimentos. É um protesto contra os sórdidos códigos do militarismo cavalheiresco e contra o triste machismo da conquista sexual.
“Como é que as pessoas podem mirar uma arma na cara da outra? As armas às vezes disparam. Coitadinhos”.
Cúchulainn, o guerreiro épico que defendera até a morte o norte da Irlanda contra tudo e todos.
Um tema central dessas fábulas era a habilidade de Cúchulainn em combates gloriosos e sua capacidade de fazer com que a violência parecesse redentora.
Joyce acreditava que o maior dever de um escritor era insultar, mais do que bajular, a vaidade nacional.
terminara Um retrato do artista quando jovem com a promessa de forjar “a consciência incriada de minha raça”. Essas palavras solenes sugerem que Joyce via a si mesmo como um patriota nacional, e não um nacionalista, com algo mais interessante do que os códigos cúchulainnoides de Pearse e Yeats para ensinar a seus concidadãos.
Joyce criticava o mito do irlandês guerreiro e, sobretudo por meio de seu protagonista Bloom, pintava seus conterrâneos como um povo quieto, sofredor, mas astuto, muito similar em mentalidade aos judeus.
Desde sua juventude, ele se sentiu mais atraído pela humanidade calorosa de Ulisses. O herói épico não queria ir a Troia, recordava Joyce, porque considerava que a guerra não passava de um pretexto empregado pelos mercadores gregos em sua busca por novos mercados. A analogia com a Europa contemporânea mergulhada na carnificina para garantir lucros aos barões da indústria do aço não se perderia naquele que se autointitulava um “artista socialista”.
Radek estaria talvez num terreno mais firme se censurasse o livro com base no fato de que poucos personagens cumprem uma jornada de trabalho.
A necessidade humana de criar mitos é profundamente enraizada, uma vez que os mitos são projeções simbólicas dos valores culturais e morais de uma determinada sociedade, figurações de seu estado psíquico.
O resultado foi seu famoso diagrama, publicado por Stuart Gilbert com a colaboração do autor em James Joyce’s Ulysses (1930). Ele mapeia os dezoito episódios, delineando para cada um deles sua determinada arte, cor, símbolo, técnica e órgão do corpo. No início de cada capítulo há um título retirado de um episódio ou personagem da Odisseia (ver “Esquema do Ulysses” na página 92).
Talvez não tenha sido uma boa ideia. Durante muito tempo, a crítica do Ulysses tornou-se pouco mais que um jogo literário de detetive.
Depois disso, o momento hilário no pub de Barney Kiernan, quando Bloom brande seu charuto sobre o cidadão chauvinista, ficava incompleto sem o conhecimento adicional de que se trata de uma paródia da cena homérica em que Ulisses usa um galho de oliveira incandescente para cegar o Ciclope.
Joyce gosta de apontar que Helena, cuja beleza fora a causa da guerra de Troia, já devia estar sem viço e enrugada quando a guerra terminou. Seu impulso era sempre o de rebaixar as afirmações mais grandiosas até a dimensão humana, domesticar o épico.
Odisseia é, no entanto, uma celebração do militarismo, que Joyce considerava suspeito, quer o encontrasse numa lenda antiga ou nos espólios do exército britânico.
O charuto brandido por Bloom acaba sendo mais digno que ridículo, uma crítica às forças que podem levar até mesmo um pacifista como Ulisses a ferir. Para Joyce, a violência é apenas outra forma de pretensão odiosa, porque nada justifica um combate sangrento, nem terras, nem mares, nem mulheres.
— Uma mulher trouxe o pecado ao mundo. Por uma mulher que não valia um merréis de mel coado, Helena, a esposa fujona de Menelau, por dez anos os gregos guerrearam contra Troia. Uma mulher infiel trouxe os primeiros estrangeiros aqui às nossas praias, a esposa de MacMurrough e seu amásio O’Rourke, príncipe de Breffni. Uma mulher também derrubou Parnell […].
Para Eliot, o método do Ulysses tinha “a importância de uma descoberta científica”, e assim ele teve a ousadia de declarar que “em vez de um método narrativo, agora nós podemos usar um método mítico”.
Joyce sugere que o heroísmo real, tal como a verdadeira santidade, nunca é consciente de si mesmo.
Ao incorporar à sua estrutura autocrítica um sentido de sua possível obsolescência num mundo pós-letrado, o Ulysses é ao mesmo tempo a consumação e a badalada fúnebre da era da imprensa.
Joyce foi um dos primeiros artistas modernos a perceber que estilo era menos a marca da personalidade de um escritor do que um reflexo da prática linguística aprovada em um determinado período histórico. O que parecia um estilo pessoal num escritor era em geral nada mais que a descoberta de uma nova convenção, tal como quando Hemingway descobriu que era mais eficaz descrever ações numa linguagem de telegrama do que em lentos circunlóquios vitorianos.
O fundamento básico do Ulysses está posto quando a verdade da maternidade se apresenta para desacreditar o mito da paternidade. Os pais inadequados do mundo de Joyce são expoentes de uma bravata embriagada e de uma falsa masculinidade que Stephen evita em favor de uma estratégia mais feminina de silêncio e ardil.
O que se testemunha aqui é a instituição conhecida na Irlanda como “casamento silencioso”, quando duas pessoas conseguem partilhar uma casa, mas não uma vida.
“tolerância mútua”,
Bloom demonstra uma capacidade rara e admirável de ver o mundo com olhos e mente alheios e de imaginar, por exemplo, como o vinho ou os cigarros teriam um sabor mais acentuado para um cego. É isso, bem como qualquer coisa, que Lenehan saúda como o toque de artista em Bloom.
Ele parece ter um desejo subconsciente de ser dominado.
O comportamento de sua esposa no café da manhã é um tanto quanto imperioso; e ele é descrito pelos homens em luto do Cemitério Glasneviv como um ninguém que se casou com a Madame Marion Tweedy, a bela soprano. Em sua imaginação ele tem fantasias com senhoras aristocráticas e mulheres cavalares que se pavoneiam, bebem e montam “que nem homem”.
pois mais tarde veremos que Bloom gosta de acariciar as nádegas de Molly e fingir que são melões — um prazer que depois pensará em ofertar a Stephen.
Ellemire Zolla,
Para Bloom, a androginia não é uma opção (que poderia curar o sentimento de que cada sexo é uma aberração aos olhos do outro), mas um donné.
Assim sucede que a cena da maior abjeção de Bloom em “Circe” — na qual ele voyeuristicamente se imagina guiando Boylan até o leito de sua própria esposa
dissolve-se num momento de estranha redenção, quando Stephen começa a entrever o fim de sua busca.
“Christus ou Bloom é seu nome ou no final das contas qualquer outro […]” — uma expressão semelhante à fala de Molly ao aceitá-lo (“tanto faz ele quanto outro”)
Porém Bloom dá testemunho ao fato de que a androginia (que é intrafísica) não é bissexualidade (que é interpessoal).
“Todas as mulheres acabam sendo como as suas mães. Eis sua tragédia. Não é o caso de nenhum homem. Eis sua tragédia”.
O aparente sexismo da primeira metade do gracejo é brilhantemente anulado pela aguda inteligência feminista da conclusão.
Tal como na arte e na vida de Joyce, também na de Shaw a revolta do filho nunca é a rebelião-clichê contra um pai tirânico, mas uma revolta mais complexa contra a recusa ou incapacidade de um pai inútil para oferecer qualquer orientação.
Wilde, que ensinou que todos devem formar uma concepção estilizada de si próprios, ou seja, “conceber a si próprio” no sentido literal da expressão.
O prodígio, demandava não tanto o assassinato do pai, mas sua conversão numa versão revisada do filho (Stephen, no Ulysses, como era de esperar insiste que seu pai tem “minha voz”).
Joyce também buscou reproduzir um Shakespeare celta, e no Ulysses fez Stephen reinterpretar todas as obras como uma narrativa em desenvolvimento sobre o exílio e a perda.
Friedrich Engels havia lastimado que o objeto da política britânica fosse fazer com que os irlandeses se sentissem estrangeiros em sua própria pátria, mas ele subestimara sua capacidade de colonizar a cultura que os colonizava.
Em segundo lugar, o sonho nacionalista de um retorno absoluto à fonte mítica gaélica era — como já demonstramos — praticamente impossível. O nacionalismo que Joyce ataca em todo o Ulysses é em grande parte uma cópia de seu pai inglês, ainda que uma cópia cunhada em ocasionais frases gaélicas.
“cristalizar o nacionalismo numa tradição; é verdade que gloriosa e heroica, mas ainda assim apenas uma tradição”. Essa precaução era compreensível, já que o passado heroico adorado pelos nacionalistas era só uma concessão do poder imperial britânico.
O escritor romântico diz: há uma Irlanda essencial que se deve servir, e uma mente irlandesa definitiva que se deve descrever. O modernista retorque: não há uma Irlanda apenas, mas um campo de forças sujeito a renegociações constantes; nem há uma mente irlandesa, mas mentes irlandesas formadas por uma situação difícil que gera certas características comuns naqueles que são pegos dentro dela. Aquele diz: “esta é Rosie O’Grady — ame-a”; mas este repete o conselho de Stephen Dedalus em Um retrato: “Quero ver Rosie
Chrysostomos.