Grande Sertão: Veredas
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Para quem nele nasceu e viveu e com ele se identificou, o “sertão” acaba sendo toda a confusa e tumultuosa massa do mundo sensível, caos ilimitado de que só uma parte ínfima nos é dado conhecer, precisamente a que se avista ao longo das “veredas”, tênues canais de penetração e comunicação. Assim o sinal — : — entre os dois elementos do título teria valor adversativo, estabelecendo a oposição entre a imensa realidade inabrangível e suas mínimas parcelas acessíveis, ou, noutras palavras, entre o intuível e o conhecível.
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Espantado com a própria sinceridade, tenta este justificá-la muitas vezes, e essas tentativas constituem outro leitmotiv, tão importante como as definições de “sertão”. Segundo ele mesmo afirma, narra a vida para no fim consultar o interlocutor: “Quero armar o ponto dum fato, para depois lhe pedir um conselho.” Esse conselho, porém, não chega a ser pedido. Riobaldo pretende também relatar o passado para que o forasteiro o explique: “Conto ao senhor é o que eu sei e que o senhor não sabe; mas principal quero contar é o que eu não sei se sei, e que pode ser que o senhor saiba.”
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Desejando reconstituir o seu passado, ele está movido pelo anelo confuso de reafirmar a unidade do seu eu, de sentir que efetivamente desempenhou algum papel ativo nas vicissitudes da própria existência.
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O seu Riobaldo, esse Fausto sertanejo, ente inculto mas dotado de imaginação e poesia, ao passar revista aos acontecimentos de sua vida aventurosa, enfrenta seguidamente todas as contingências do ser — o amor, a alegria, a ambição, a insatisfação, a solidão, a dor, o medo, a morte — e relata-as com a surpresa, a reação fresca de quem as experimentasse pela primeira vez no mundo, reinventando as explicações dos filósofos numa formulação pitoresca e ingênua.
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Eh, o senhor já viu, por ver, a feiura de ódio franzido, carantonho, nas faces duma cobra cascavel?
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Quase todo mais grave criminoso feroz, sempre é muito bom marido, bom filho, bom pai, e é bom amigo-de-seus-amigos!
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Me agradou que perto da casa dele tinha um açudinho, entre as palmeiras, com traíras, pra-almas de enormes, desenormes, ao real, que receberam fama; o Aleixo dava de comer a elas, em horas justas, elas se acostumaram a se assim das locas, para papar, semelhavam ser peixes ensinados. Um dia, só por graça rústica, ele matou um velhinho que por lá passou, desvalido rogando esmola. O senhor não duvide — tem gente, neste aborrecido mundo, que matam só para ver alguém fazer careta...
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Quando, então, sararam. Mas os olhos deles vermelhavam altos, numa inflama de sapiranga à rebelde; e susseguinte — o que não sei é se foram todos duma vez, ou um logo e logo outro e outro — eles restaram cegos. Cegos, sem remissão dum favinho de luz dessa nossa! O senhor imagine: uma escadinha — três meninos e uma menina — todos cegados. Sem remediável. O Aleixo não perdeu o juízo; mas mudou: ah, demudou completo — agora vive da banda de Deus, suando para ser bom e caridoso em todas suas horas da noite e do dia.
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Não é que eu esteja analfabeto. Soletrei, anos e meio, meante cartilha, memória e palmatória. Tive mestre, Mestre Lucas, no Curralinho, decorei gramática, as operações, regra-de-três, até geografia e estudo pátrio. Em folhas grandes de papel, com capricho tracei bonitos mapas. Ah, não é por falar: mas, desde do começo, me achavam sofismado de ladino. E que eu merecia de ir para cursar latim, em Aula Régia — que também diziam. Tempo saudoso! Inda hoje, apreceio um bom livro, despaçado.
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Eu gosto muito de moral. Raciocinar, exortar os outros para o bom caminho, aconselhar a justo.
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Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa.
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Por que o Governo não cuida?! Ah, eu sei que não é possível. Não me assente o senhor por beócio. Uma coisa é pôr ideias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantas misérias... Tanta gente — dá susto se saber — e nenhum se sossega: todos nascendo, crescendo, se casando, querendo colocação de emprego, comida, saúde, riqueza, ser importante, querendo chuva e negócios bons... De sorte que carece de se escolher: ou a gente se tece de viver no safado comum, ou cuida só de religião só. Eu podia ser: padre sacerdote, se não chefe de jagunços; para outras coisas ...more
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Hem? Hem? O que mais penso, testo e explico: todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. No geral. Isso é que é a salvação-da-alma... Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue. Rezo cristão, católico, embrenho a certo; e aceito as preces de compadre meu Quelemém, doutrina dele, de Cardéque. Mas, quando posso, vou no Mindubim, onde um Matias é crente, ...more
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Joca Ramiro — grande homem príncipe! — era político. Zé-Bebelo quis ser político, mas teve e não teve sorte: raposa que demorou.
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Só o Hermógenes foi que nasceu formado tigre, e assassim.
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Sertão. O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado! E bala é um pedacinhozinho de metal...
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O senhor sabe: o perigo que é viver... Mas só do modo, desses, por feio instrumento, foi que a jagunçada se findou. Senhor pensa que Antônio Dó ou Olivino Oliviano iam ficar bonzinhos por pura soletração de si, ou por rogo dos infelizes, ou por sempre ouvir sermão de padre? Te acho! Nos visos...
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Conforme pensei em Diadorim. Só pensava era nele.
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Eu queria morrer pensando em meu amigo Diadorim, mano-oh-mão, que estava na Serra do Pau-d’Arco, quase na divisa baiana, com nossa outra metade dos sô-candelários... Com meu amigo Diadorim me abraçava, sentimento meu ia-voava reto para ele...
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“Me dá saudade é de pegar um soldado, e tal, pra uma boa esfola, com faca cega... Mas, primeiro, castrar...”
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Gente vê nação desses, para lá fundo dos gerais de Goiás, adonde tem vagarosos grandes rios, de água sempre tão clara aprazível, correndo em deita de cristal roseado...
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Geração minha, verdadeira, ainda não eram assim. Ah, vai vir um tempo, em que não se usa mais matar gente... Eu, já estou velho.
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Queremos é trabalhar, propor sossego. De mim, pessoa, vivo para minha mulher, que tudo modo-melhor merece, e para a devoção. Bem-querer de minha mulher foi que me auxiliou, rezas dela, graças. Amor vem de amor. Digo. Em Diadorim, penso também — mas Diadorim é a minha neblina...
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Mesmo que os vaqueiros duvidam de vir no comércio vestidos de roupa inteira de couro, acham que traje de gibão é feio e capiau.
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Quem me ensinou a apreciar essas as belezas sem dono foi Diadorim...
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Quando o senhor sonhar, sonhe com aquilo. Cheiro de campos com flores, forte, em abril: a ciganinha, roxa, e a nhiíca e a escova, amarelinhas...
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Diz-se que o Governo está mandando abrir boa estrada rodageira, de Pirapora a Paracatú, por aí...
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Semelha com as serras do Estrondo e do Roncador — donde dão retumbos, vez em quando.
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antes de se deitar, ajoelhava e rezava o terço.
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Eu estava todo o tempo quase com Diadorim. Diadorim e eu, nós dois. A gente dava passeios. Com assim, a gente se diferenciava dos outros — porque jagunço não é muito de conversa continuada nem de amizades estreitas: a bem eles se misturam e desmisturam, de acaso, mas cada um é feito um por si.
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Diadorim acendeu um foguinho, eu fui buscar sabugos. Mariposas passavam muitas, por entre as nossas caras, e besouros graúdos esbarravam. Puxava uma brisbrisa.
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Que se hoje fosse. Diadorim me pôs o rastro dele para sempre em todas essas quisquilhas da natureza. Sei como sei.
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Eu não tinha coragem de mudar para mais perto. Só de mim era que Diadorim às vezes parecia ter um espevito de desconfiança; de mim, que era o amigo! Mas, essa ocasião, ele estava ali, mais vindo, a meia-mão de mim. E eu — mal de não me consentir em nenhum afirmar das docemente coisas que são feias — eu me esquecia de tudo, num espairecer de contentamento, deixava de pensar. Mas sucedia uma duvidação, ranço de desgosto: eu versava aquilo em redondos e quadrados. Só que coração meu podia mais.
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chupante. — “Tá que, mas eu quero que esse dia chegue!” — Diadorim dizia. — “Não posso ter alegria nenhuma, nem minha mera vida mesma, enquanto aqueles dois monstros não forem bem acabados...” E ele suspirava de ódio, como se fosse por amor; mas, no mais, não se alterava. De tão grande, o dele não podia mais ter aumento: parava sendo um ódio sossegado. Ódio com paciência; o senhor sabe?
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E, aquilo forte que ele sentia, ia se pegando em mim — mas não como ódio, mais em mim virando tristeza. Enquanto os dois monstros vivessem, simples Diadorim tanto não vivia. Até que viesse a poder vingar o histórico de seu pai, ele tresvariava.
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Durante que estávamos assim fora de marcha em rota, tempo de descanso, em que eu mais amizade queria, Diadorim só falava nos extremos do assu...
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Não respondi. Não adiantava. Diadorim queria o fim. Para isso a gente estava indo. Com o comando de Medeiro Vaz, dali depois daquele carecido repouso, a gente revirava caminho, ia em cima dos outros — deles! — procurando combate. Munição não faltava. Nós estávamos em sessenta homens — mas todos cabras dos melhores. Chefe nosso, Medeiro Vaz, nunca perdia guerreiro. Medeiro Vaz era homem sobre o sisudo, nos usos formado, não gastava as palavras.
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Diadorim, não, ele não largava o fogo de gelo daquela ideia; e nunca se cismava.
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“Gente! Não se acha até que ele é sempre um, em mesmo?” — perguntei a Diadorim.
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Digo: outro mês, outro longe — na Aroeirinha fizemos paragem. Ao que, num portal, vi uma mulher moça, vestida de vermelho, se ria. — “Ô moço da barba feita...” — ela falou. Na frente da boca, ela quando ria tinha os todos dentes, mostrava em fio. Tão bonita, só. Eu apeei e amarrei o animal num pau da cerca. Pelo dentro, minhas pernas doíam, por tanto que desses três dias a gente se sustava de custoso varar: circunstância de trinta léguas. Diadorim não estava perto, para me reprovar. De repente, passaram, aos galopes e gritos, uns companheiros, que tocavam um boi preto que iam sangrar e carnear ...more
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E a Ana Duzuza me disse, vendendo forte segredo, que Medeiro Vaz ia experimentar passar de banda a banda o liso do Sussuarão.
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Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais em baixo, bem diverso do em que primeiro se pensou. Viver nem não é muito perigoso?
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Redisse a Diadorim o que eu tinha surripiado: que o projeto de Medeiro Vaz só era o de conduzir a gente para o Liso do Sussuarão — a dentro, adiante, até ao fim. — “E certo é. É certo” — Diadorim respondeu, me afrontando com a surpresa de que ele já sabia daquilo e a mim não tinha antecipado nem miúda palavra.
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E veja: eu vinha tanto tempo me relutando, contra o querer gostar de Diadorim mais do que, a claro, de um amigo se pertence gostar; e, agora aquela hora, eu não apurava vergonha de se me entender um ciúme amargoso. Sendo sabendo que Medeiro Vaz depunha em Diadorim uma confiança muito ma...
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Mas Medeiro Vaz era homem de outras idades, andava por este mundo com mão leal, não variava nunca, não fraquejava. Eu sabia que ele, a bem dizer, só guardava memória de um amigo: Joca Ramiro. Joca Ramiro tinha sido a admiração grave da vida dele: Deus no Céu e Joca Ramiro na outra banda do Rio. Tudo o justo. Mas ciú...
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Pra por lá do Sussuarão, já em tantos terrenos da Bahia, um dos dois Judas possuía sua maior fazenda, com os muitos gados, lavouras, e lá morava sua família dele legítima de raça — mulher e filhos.
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— “Riobaldo, escuta, pois então: Joca Ramiro era o meu pai...” — ele disse — não sei se estava pálido muito, e depois foi que se avermelhou. Devido o que, abaixou o rosto, para mais perto de mim.
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E corri lembrança em Joca Ramiro: porte luzido, passo ligeiro, as botas russianas, a risada, os bigodes, o olhar bom e mandante, a testa muita, o topete de cabelos anelados, pretos, brilhando. Como que brilhava ele todo. Porque Joca Ramiro era mesmo assim sobre os homens, ele tinha uma luz, rei da natureza.
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Pois, não existe! E, se não existe, como é que se pode se contratar pacto com ele?
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Até podendo ser, de alguém algum dia ouvir e entender assim: quem-sabe, a gente criatura ainda é tão ruim, tão, que Deus só pode às vezes manobrar com os homens é mandando por intermédio do diá?
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