Grande Sertão: Veredas
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Abracei Diadorim, como as asas de todos os pássaros. Pelo nome de seu pai, Joca Ramiro, eu agora matava e morria, se bem.
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Órfão de conhecença e de papéis legais, é o que a gente vê mais, nestes sertões.
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eu acho na memória, foi o ódio, que eu tive de um homem chamado Gramacêdo... Gente melhor do lugar eram todos dessa família Guedes, Jidião Guedes; quando saíram de lá, nos trouxeram junto, minha mãe e eu. Ficamos existindo em território baixío da Sirga, da outra banda, ali onde o de-Janeiro vai no São Francisco, o senhor sabe. Eu estava com uns treze ou quatorze anos...
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Quando moço, de antepassados de posses, ele recebera grande fazenda. Podia gerir e ficar estadonho. Mas vieram as guerras e os desmandos de jagunços — tudo era morte e roubo, e desrespeito carnal das mulheres casadas e donzelas, foi impossível qualquer sossego, desde em quando aquele imundo de loucura subiu as serras e se espraiou nos gerais. Então Medeiro Vaz, ao fim de forte pensar, reconheceu o dever dele: largou tudo, se desfez do que abarcava, em terras e gados, se livrou leve como que quisesse voltar a seu só nascimento.
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com cachos d’armas, reuniu chusma de gente corajada, rapaziagem dos campos, e saíu por esse rumo em roda, para impor a justiça.
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Quando conheceu Joca Ramiro, então achou outra esperança maior: para ele, Joca Ramiro era único homem, par-de-frança, capaz de tomar conta deste sertão nosso, mandando por lei, de sobregovêrno.
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Mas Medeiro Vaz era duma raça de homem que o senhor mais não vê; eu ainda vi. Ele tinha conspeito tão forte, que perto dele até o doutor, o padre e o rico, se compunham. Podia abençoar ou amaldiçoar, e homem mais moço, por valente que fosse, de beijar a mão dele não se vexava.
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O que ninguém ainda não tinha feito, a gente se sentia no poder fazer.
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Os bogós de couro foram enchidos nas nascentes da lagoa, e enqueridos nas costas dos burrinhos. Também tínhamos trazido jumentos, só modo para carregar. Os cavalos ainda pastavam um pouco, do capim-grama, que tapava os pés deles. Se dizia muita alegria. Cada um pegava também sua cabaça d’água, e na capanga o diário de se valer com o que comer — paçoca. Medeiro Vaz, depois de não dizer nada, deu ordem de seguida.
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Seis novilhos gordos a gente repontava, serviam para se carnear em rota.
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Mas o terreno aumentava de soltado. E as árvores iam se abaixando menorzinhas, arregaçavam saia no chão. De vir lá, só algum tatú, por mel e mangaba. Depois, se acabavam as mangabaranas e mangabeirinhas. Ali onde o campo larguêia. Os urubús em vasto espaceavam. Se acabou o capinzal de capim-redondo e paspalho, e paus espinhosos, que mesmo as môitas daquele de prateados feixes, capins assins. Acabava o grameal, naquelas paragens pardas. Aquilo, vindo aos poucos, dava um peso extrato, o mundo se envelhecendo, no descampante. Acabou o sapé brabo do chapadão. A gente olhava para trás. Daí, o sol ...more
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E fogo começou a entrar, com o ar, nos pobres peitos da gente.
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— “...O Hermógenes tem pauta... Ele se quis com o Capiroto...”
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O pacto! Se diz — o senhor sabe. Bobeia. Ao que a pessoa vai, em meia-noite, a uma encruzilhada, e chama fortemente o Cujo — e espera. Se sendo, há-de que vem um pé-de-vento, sem razão, e arre se comparece uma porca com ninhada de pintos, se não for uma galinha puxando barrigada de leitões. Tudo errado, remedante, sem completação... O senhor imaginalmente percebe? O crespo — a gente se retém — então dá um cheiro de breu queimado. E o dito — o Côxo — toma espécie, se forma! Carece de se conservar coragem. Se assina o pacto. Se assina com sangue de pessoa. O pagar é a alma. Muito mais depois. O ...more
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A gente progredia dumas poucas braças, e calcava o reafundo do areião — areia que escapulia, sem firmeza, puxando os cascos dos cavalos para trás.
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Medo, meu medo. Aguentei.
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Mas, no extremo de adormecer, ainda intrují duas coisas, em cruz: que Medeiro Vaz estava insensato? — e que o Hermógenes era pactário!
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Dia da gente desexistir é um certo decreto — por isso que ainda hoje o senhor aqui me vê. Ah, e os poços não se achavam...
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“Daqui, deste mesmo de lugar, mais não vou! Só desarrastado vencido...” — mas falei.
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Vi: os olhos dele marejados. Mor que depois eu soube — que, a ideia de se atravessar o Liso do Sussuarão, ele Diadorim era que a Medeiro Vaz tinha aconselhado.
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Jagunço é isso. Jagunço não se escabrêia com perda nem derrota — quase que tudo para ele é o igual.
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Pra ele a vida já está assentada: comer, beber, apreciar mulher, brigar, e o fim final. E todo o mundo não presume assim?
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Confiança — o senhor sabe — não se tira das coisas feitas ou perfeitas: ela rodeia é o quente da pessoa.
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Por que foi que não se fez combate, depois naqueles meses todos? A verdade digo ao senhor: os soldados do Governo perseguiam a gente. Major Oliveira, Tenente Ramiz e Capitão Melo Franco — esses não davam espaço. E Medeiro Vaz pensava era um pensamento: a gente mamparreasse de com eles não guerrear, não se esperdiçar — porque as nossas armas guardavam um destino só, de dever. Escapulíamos, esquipávamos.
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E, pelo prazer de tomar parte no conforto de religião, acompanhamos esses até à Vila da Pedra-de-Amolar.
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Às vezes eu penso: seria o caso de pessoas de fé e posição se reunirem, em algum apropriado lugar, no meio dos gerais, para se viver só em altas rezas, fortíssimas, louvando a Deus e pedindo glória do perdão do mundo. Todos vinham comparecendo, lá se levantava enorme igreja, não havia mais crimes, nem ambição, e todo sofrimento se espraiava em Deus, dado logo, até à hora de cada uma morte cantar. Raciocinei isso com compadre meu Quelemém, e ele duvidou com a cabeça: — “Riobaldo, a colheita é comum, mas o capinar é sozinho...” — ciente me respondeu.
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A estrela-d’alva sai às três horas, madrugada boa gelada.
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Refiro ao senhor: um outro doutor, doutor rapaz, que explorava as pedras turmalinas no vale do Arassuaí, discorreu me dizendo que a vida da gente encarna e reencarna, por progresso próprio, mas que Deus não há. Estremeço. Como não ter Deus?! Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar — é todos contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois, no fim dá certo. Mas, se não tem ...more
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Como no recesso do mato, ali intrim, toda luz verdeja. Mas a água, mesma, azul, dum azul que haja — que roxo logo mudava.
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Medeiro Vaz — o Rei dos Gerais...
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Um está sempre no escuro, só no último derradeiro é que clareiam a sala. Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia. Mesmo fui muito tôlo!
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Hoje em dia, não me queixo de nenhuma coisa. Não tiro sombras dos buracos. Mas, também, não há jeito de me baixar em remorso. Sim, que só duma coisa. E dessa, mesma, o que tenho é medo. Enquanto se tem medo, eu acho até que o bom remorso não se pode criar, não é possível. Minha vida não deixa benfeitorias. Mas me confessei com sete padres, acertei sete absolvições. No meio da noite eu acordo e pelejo para rezar. Posso. Constante eu puder, meu suor não esfria! O senhor me releve tanto dizer.
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No me despedir, tive precisão de dizer a ele baixinho: — “Por teu pai vou, amigo, mano-oh-mano. Vingar Joca Ramiro...” A fraqueza minha, adulatória. Mas ele respondeu: — “Viagem boa, Riobaldo. E boa-sorte...”
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João Goanhá, por valentão e verdadeiro, nem carecia de estadear orgulho. Pessoa muito leal e briosa.
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Mas eu podia rever proveito, caçar de voltar dali para a casa-grande de Selorico Mendes, exigir meu estado devido, na Fazenda São Gregório. Temeriam!
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Hê, hê, com toda a confusão de política e brigas, por aí, e ele não somava com nenhuma coisa: viajava sensato, e ia desempenhando seu negócio dele no sertão — que era o de trazer e vender de tudo para os fazendeiros: arados, enxadas, debulhadora, facão de aço, ferramentas rógers e roscofes, latas de formicida, arsênico e creolinas; e até papa-vento, desses moinhos-de-vento de sungar água, com torre, ele tomava empreitada de armar.
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Aquele queria saber tudo, dispor de tudo, poder tudo, tudo alterar. Não esbarrava quieto.
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Tudo parava, por átimo. Todos esperando com suspensão. Senhor conheceu por de-dentro um bando em-pé de jagunços — quando um perigo poja? — sabe os quantos lobos? Mas, eh, não, o pior é que é a calma, uma sisudez das escuras. Não que matem, uns aos outros, ver; mas, a pique de coisinha, o senhor pode entornar seu respeito, sobrar desmoralizado para sempre, neste vale de lágrimas. Tudo rosna.
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Em jagunço com jagunço, o poder seco da pessoa é que vale...
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Sobre mais disse, sem importância, sem noção; pois Marcelino Pampa possuía talentos minguados. Somente pensei que ele estava pondo um peso no lombo, por sacrifício. Ao que, em melhores tempos, aprazia bem capitanear; mas, agora aquela ocasião, a gente por baixos, e essas misérias, qualquer um não havia de desgostar de responsabilidade?
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Comandante é preciso, para aliviar os aflitos, para salvar a ideia da gente de perturbações desconformes.
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Pelo que ouvimos: um galope, o chegar, o riscar, o desapêio, o xaxaxo de alpercatas.
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“Pois assim, amigo, por que é que não combinamos nosso destino? Juntos estamos, juntos vamos.” — “Amizade e combinação, aceito, mano velho. Já, ajuntar, não. Só obro o que muito mando; nasci assim. Só sei ser chefe.” Sobre curto, Marcelino Pampa cobrou de si suas contas. Repuxou testa, demorou dentro dum momento. Circulou os olhos em nós todos, seus companheiros, seus brabos. Nada não se disse. Mas ele entendeu o que cada vontade pedia. Depressa deu, o consumado: — “E chefe será. Baixamos nossas armas, esperamos vossas ordens...” Com coragem falou, como olhou para a gente outra vez. — ...more
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Chamou Marcelino Pampa, a ele fez donativo grave: — “Este animal é vosso, Marcelino, merecido. Porque eu ainda estou para ver outro com igual siso e caráter!” Apertou a mão dele, num toques. Marcelino Pampa dobrou de ar, perturbado. Desse fato em diante, era capaz de se morrer, por Zé Bebelo.
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Daí, levou a eito, vendo, examinando, disquirindo. Aprendeu os nomes, de um em um, e em que lugar nascido, resumo da vida, quantos combates, e que gostos tinha, qualquer ofício de habilidade.
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Repartiu os homens em quatro pelotões — três drongos de quinze, e um de vinte — em cada um ao menos um bom rastreador.
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Para capitanear os drongos, escolheu: Marcelino Pampa, João Concliz, e o Fafafa. Pessoalmente, ficou com o maior, o de vinte — nesse figuravam os cinco urucuianos, e eu, Diadorim, Sesfrêdo, o Quipes, Joaquim Beijú, Coscorão, Dimas Dôido, o Acauã, Mão-de-Lixa, Marruaz, o Crédo, Marimbondo, Rasga-em-Baixo, Jiribibe e Jõe Bexiguento, dito Alparcatas.
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Assuntos principais, Zé Bebelo fazia lição, e deduzia ordens. — “Trabucar duro, para dormir bem!” — publicava. Gostadamente: — “Morrendo eu, depois vocês descansam...” — e ria: — “Mas eu não morro...” Sujeito muito lógico, o senhor sabe: cega qualquer nó. E — engraçado dizer — a gente apreciava aquilo. Dava uma esperança forte.
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Somente: — “Arre, temos nenhum tempo, gente! Capricha...” Sempre, no fim, por animar, levantava demais o braço: — “Ainda quero passar, a cavalos, levando vocês, em grandes cidades! Aqui o que me faz falta é uma bandeira, e tambor e cornetas, metais mais... Mas hei-de! Ah, que vamos em Carinhanha e Montes Claros, ali, no haja vinho... Arranchar no mercado da Diamantina... Eh, vamos no Paracatú-do-Príncipe!...” Que boca, que o apito: apitava.
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Bem eu conhecia Zé Bebelo, de outros currais! Bem eu desejasse ter nascido como ele...