Grande Sertão: Veredas
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Mas daí voltamos, desatravessando outra vez o Soninho, até onde estava a nossa mulada, com munição e o mais.
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De noitinha, os morcegos pegam a recobrir os bois com lencinhos pretos. Rendas pretas defunteiras.
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Guerras e batalhas? Isso é como jogo de baralho, verte, reverte. Os revoltosos depois passaram por aqui, soldados de Prestes, vinham de Goiás, reclamavam posse de todos animais de sela. Sei que deram fogo, na barra do Urucúia, em São Romão, aonde aportou um vapor do Governo, cheio de tropas da Bahia. Muitos anos adiante, um roceiro vai lavrar um pau, encontra balas cravadas. O que vale, são outras coisas. A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as ...more
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Eu sei que isto que estou dizendo é dificultoso, muito entrançado. Mas o senhor vai avante. Invejo é a instrução que o senhor tem. Eu queria decifrar as coisas que são importantes. E estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente. Queria entender do medo e da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder. O que induz a gente para más ações estranhas, é que a gente está pertinho do que é nosso, por direito, e não sabe, não sabe, não sabe!
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Antes conto as coisas que formaram passado para mim com mais pertença. Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas — e só essas poucas veredas, veredazinhas. O que muito lhe agradeço é a sua fineza de atenção.
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Se deu há tanto, faz tanto, imagine: eu devia de estar com uns quatorze anos, se. Tínhamos vindo para aqui — circunstância de cinco léguas — minha mãe e eu.
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Pois tinha sido que eu acabava de sarar duma doença, e minha mãe feito promessa para eu cumprir quando ficasse bom: eu carecia de tirar esmola, até perfazer um tanto — metade para se pagar uma missa, em alguma igreja, metade para se pôr dentro duma cabaça bem tapada e breada, que se jogava no São Francisco, a fim de ir, Bahia abaixo, até esbarrar no Santuário do Santo Senhor Bom-Jesus da Lapa, que na beira do rio tudo pode.
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Terceiro ou quarto dia, que lá fui, apareceu mais gente. Dois ou três homens de fora, comprando alqueires de arroz. Cada saco amarrado com broto de burití, a folha nova — verde e amarela pelo comprido, meio a meio. Arcavam com aqueles sacos, e passavam, nas canoas, para o outro lado do de-Janeiro. Lá era, como ainda hoje é, mata alta. Mas, por entre as árvores, se podia ver um carro-de-bois parado, os bois que mastigavam com escassa baba, indicando vinda de grandes distâncias. Daí, o senhor veja: tanto trabalho, ainda, por causa de uns metros de água mansinha, só por falta duma ponte. Ao que, ...more
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Uma estava ocupada, apipada passando as sacas de arroz, e nós escolhemos a melhor das outras, quase sem água nem lama nenhuma no fundo.
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Sertão é onde homem tem de ter a dura nuca e mão quadrada. Mas, onde é bobice a qualquer resposta, é aí que a pergunta se pergunta. Por que foi que eu conheci aquele Menino? O senhor não conheceu, compadre meu Quelemém não conheceu, milhões de milhares de pessoas não conheceram. O senhor pense outra vez, repense o bem pensado: para que foi que eu tive de atravessar o rio, defronte com o Menino? O São Francisco cabe sempre aí, capaz, passa. O Chapadão é em sobre longe, beira até Goiás, extrema. Os gerais desentendem de tempo. Sonhação — acho que eu tinha de aprender a estar alegre e triste ...more
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De herdado, fiquei com aquelas miserinhas — miséria quase inocente — que não podia fazer questão: lá larguei a outros o pote, a bacia, as esteiras, panela, chocolateira, uma caçarola bicuda e um alguidar; somente peguei minha rede, uma imagem de santo de pau, um caneco-de-asa pintado de flores, uma fivela grande com ornados, um cobertor de baeta e minha muda de roupa.
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Puseram para mim tudo em trouxa, como coube na metade dum saco. Até que um vizinho caridoso cumpriu de me levar, por causa das chuvas numa viagem durada de seis dias, para a Fazenda São Gregório, de meu padrinho Selorico Mendes, na beira da estrada boiadeira, entre o rumo do Curralinho e o do Bagre, onde as serras vão descendo. Tanto que cheguei lá, meu padrinho Selorico Mendes me aceitou com grandes bondades. Ele era rico e somítico, possuía três fazendas-de-gado. Aqui também dele foi, a maior de todas.
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Mas eu não sabia ler. Então meu padrinho teve uma decisão: me enviou para o Curralinho, para ter escola e morar em casa de um amigo dele, Nhô Marôto, cujo Gervásio Lé de Ataíde era o verdadeiro nome social.
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Lá eu não carecia de trabalhar, de forma nenhuma, porque padrinho Selorico Mendes acertava com Nhô Marôto de pagar todo fim de ano o assentamento da tença e impêndio, até de botina e roupa que eu precisasse.
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E, desde o começo do segundo ano, ele me determinou de ajudar no corrido da instrução, eu explicava aos meninos menores as letras e a tabuada.
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Aí, namorei falso, asnaz, ah essas meninas por nomes de flores. A não ser a Rosa’uarda — moça feita, mais velha do que eu, filha de negociante forte, seo Assis Wababa, dono da venda O Primeiro Barateiro da Primavera de São José — ela era estranja, turca, eles todos turcos, armazém grande, casa grande, seo Assis Wababa de tudo comerciava.
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Agora, derradeiramente, destaco: quando velho, ele penou remorso por mim; eu, velho, a curtir arrependimento por ele. Acho que nós dois éramos mesmo pertencentes.
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Depois pouco que voltei do Curralinho, definitivo, grande fato se deu, que ao senhor não escondo. Certa madrugada, os cachorros todos latiram, no São Gregório, alguém estava batendo. Era mês de maio, em má lua, o frio fiava. E, quando tão moço, eu custava muito para me levantar; não por fraca saúde, mas por preguiça mal corrigida. Assim que saí da cama e fui ver se era de se abrir, meu padrinho Selorico Mendes, com a lamparina na mão, já estava pondo para dentro da sala uns homens, que eram seis, todos de chapéu-grande e trajados de capotes e capas, arrastavam esporas. Ali entraram com uma ...more
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E o senhor sabe quem era esse? Joca Ramiro! Só de ouvir o nome, eu parei, na maior suspensão.
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Dos lados, ombreavam com ele dois jagunções; depois eu soube — que seus segundos. Um, se chamava Ricardão: corpulento e quieto, com um modo simpático de sorriso; compunha o ar de um fazendeiro abastado. O outro — Hermógenes — homem sem anjo-da-guarda.
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Um estado de cavalos. Os cavaleiros. Nenhum não tinha desapeado. E deviam de ser perto duns cem. Respirei: a gente sorvia o bafejo — o cheiro de crinas e rabos sacudidos, o pelo deles, de suor velho, semeado das poeiras do sertão. Adonde o movimento esbarrado que se sussurra duma tropa assim — feito de uma porção de barulhinhos pequenos, que nem o dum grande rio, do a-flôr. A bem dizer, aquela gente estava toda calada. Mas uma sela range de seu, tine um arreaz, estribo, e estribeira, ou o coscós, quando o animal lambe o freio e mastiga. Couro raspa em couro, os cavalos dão de orêlha ou batem ...more
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Decerto de guarda, apartado dos mais, se via um cavaleiro, inteiro. Veio vindo para cá, o cavalo dele era escuro; era um alazão de bom pisar. — “Capixúm, é eu, mais o siô Hermógenes...” — o cabeça-chata falou aviso. — “A bom, Alaripe!” — o de lá respondeu.
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Semanas seguintes, meu padrinho só falou nos jagunços. Dito que Joca Ramiro era um chefe cursado: muitos iguais não nascem assim — dono de glórias!
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Aire, me adoçou tanto, que dei para inventar, de espírito, versos naquela qualidade. Fiz muitos, montão. Eu mesmo por mim não cantava, porque nunca tive entoo de voz, e meus beiços não dão para saber assoviar.
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Mas, um dia — de tanto querer não pensar no princípio disso, acabei me esquecendo quem — me disseram que não era à-toa que minhas feições copiavam retrato de Selorico Mendes. Que ele tinha sido meu pai! Afianço que, no escutar, em roda de mim o tonto houve — o mundo todo me desproduzia, numa grande desonra. Pareceu até que, de algum encoberto jeito, eu daquilo já sabia. Assim já tinha ouvido de outros, aos pedacinhos, ditos e indiretas, que eu desouvia. Perguntar a ele, fosse? Ah, eu não podia, não. Perguntar a mais pessoa nenhuma; chegava. Não desesquentei a cabeça. Ajuntei meus trens, minhas ...more
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Ah, não. Gostasse da Rosa’uarda, mas aí nas delícias dela minha ideia não podendo se firmar — porque aumentava o desamparo de minha vergonha.
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Em casa de seo Assis Wababa, me deram trato regozijante. No que jantei, ri, conversei.
Iuri Colares
67. No Curralinho
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Mesmo dizia: — “Senhor atira bem, porque atira com espírito. Sempre o espírito é que acerta...”
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Aí me explicou: um senhor, no Palhão, na fazenda Nhanva, altas beiras do Jequitaí, para o ensino de todas as matérias estava encomendando um professor.
Iuri Colares
68. Professor de Zé Bebelo, na Fazenda Nhanva
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— “O senhor acha que eu posso?” — perguntei; para principiar qualquer tarefa, quase que eu sozinho nunca tive coragem. — “Ei, pode!” — o Mestre Lucas declarou. Já que estava acondicionando numa bruaca os livros todos — geografia, arimética, cartilha e gramática — e borracha, lápis, régua, tinteiro, tudo o que pudesse ter serventia. Aceitei. Um entusiasmo nosso me botava brioso.
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Melhor que era para logo, para o seguinte: dois camaradas do dito fazendeiro estavam ali no Curralim, esperando decisão, agora me levavam.
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Viajamos juntos quatro dias, quase trinta léguas, bom tempo beirando o Riachão e enxergando à mão esquerda os vultos da Serra-do-Cabral.
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Assim ler e escrever, e as quatro contas, ele já soubesse, consumia jornais.
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— “Vamos constar é que estou assentando os planos! Você fica sendo meu secretário.”
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O fim de tudo, que seria: romper em peito de bando e bando, acabar com eles, liquidar com os jagunços, até o último, relimpar o mundo da jagunçada braba. — “Somente que eu tiver feito, siô Baldo, estou todo: entro direito na política!” Antes me confessou essa única sina que ambicionava, de muito coração: e era de ser deputado.
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e medo, ou cada parente de medo, ele cuspia em riba e desconhecia. Contavam: ele entrava de cheio, pessoalmente, e botava paz em qualquer rutuba.
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Com tanta bobeia assim, desfrutável e escurril, e ái de quem pensasse em poitar olho de chacotas: morria vertiginoso... — “O único homem-jagunço que eu podia acatar, siô Baldo, já está falecido... Agora, temos de render este serviço à pátria — tudo é nacional!”
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Dizendo que, depois, estável que abolisse o jaguncismo, e deputado fosse, então reluzia perfeito o Norte, botando pontes, baseando fábricas, remediando a saúde de todos, preenchendo a pobreza, estreando mil escolas.
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Não faltava esse bom divertir. Zé Bebelo aprovava: — “Onde é que já se viu homem valer, se não tem à mão estadas raparigas? Ond’é?” Mesmo cachaça ele fornecia, com regra. — “Melhor, se não eles por si providenceiam, dão logo em abusos, patuleias...” — isto explicava. Demais, de tudo ali se prazia fartura confortável!
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A tal que, enfim, veio o dia de se sair, guerreiramente, por vales e montes, a gente toda.
Iuri Colares
69. Zé Bebelo sai para a guerra
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Um pelo São Lamberto, da mão direita; outro pegou o Riacho Fundo e o Córrego do Sanhar; outro se separou da gente no Só-Aqui, indo o Ribeirão da Barra; outro tomou sempre à mão esquerda, encostando ombro no São Francisco; mas nós, que vínhamos mais Zé Bebelo mesmo em capitania, rompemos, no meio, seguindo o traço do Córrego Felicidade. Passamos perto de Vila Inconfidência, viemos acampar no arraial Pedra-Branca, beira do Água-Branca.
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— “Você deve de citar mais é em meu nome, o que por meu recato não versei. E falar muito nacional...” — se me se soprou.
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O que demasia na gente é a força feia do sofrimento, própria, não é a qualidade do sofrente.
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O que ouvindo, Zé Bebelo esbarrou. — “Ah, é uma ideia que vale, ora veja! Isso a gente tem de conceber também, é o bom exemplo para se aproveitar...” — ele atinou.
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Fugi. De repente, eu vi que não podia mais, me governou um desgosto.
Iuri Colares
70. Fuga do bando de Zé Bebelo
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Meu cavalo era bom, eu tinha dinheiro na algibeira, eu estava bem armado. Virei, vagaroso.
Iuri Colares
71. Encontro com o Reinaldo, na casa de Malinácio
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Meu rumo mesmo era o do mais incerto. Viajei, vim, acho que eu não tinha vontade de chegar em nenhuma parte. Com vinte dias de remanchear, e sem as trapalhadas maiores, foi que me encostei para o Rio das Velhas, à vista da barra do Córrego Batistério. Dormi com uma mulher, que muito me agradou — o marido dela estava fora, na redondeza. Ali não dava maleita. De manhã cedo, a mulher me disse: — “Meu pai existe daqui a quarto-de-légua. Vai, lá tu almoça e janta. De noite, se meu marido não tiver voltado, eu te chamo, dando avisos.” Eu falei: — “Você acende uma fogueira naquele alto, eu enxergo, ...more
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Soflagrante, conheci. O moço, tão variado e vistoso, era, pois sabe o senhor quem, mas quem, mesmo? Era o Menino! O Menino, senhor sim, aquele do porto do de-Janeiro, daquilo que lhe contei, o que atravessou o rio comigo, numa bamba canoa, toda a vida. E ele se chegou, eu do banco me levantei. Os olhos verdes, semelhantes grandes, o lembrável das compridas pestanas, a boca melhor bonita, o nariz fino, afiladinho.
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Mas me reconheceu, visual. Os olhos nossos donos de nós dois. Sei que deve de ter sido um estabelecimento forte, porque as outras pessoas o novo notaram — isso no estado de tudo percebi. O Menino me deu a mão: e o que mão a mão diz é o curto; às vezes pode ser o mais adivinhado e conteúdo; isto também. E ele como sorriu. Digo ao senhor: até hoje para mim está sorrindo. Digo. Ele se chamava o Reinaldo.
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No passado, eu, digo e sei, sou assim: relembrando minha vida para trás, eu gosto de todos, só curtindo desprezo e desgosto é por minha mesma antiga pessoa.