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A santa lei de Jesus Cristo governa a nossa civilização, mas ainda não conseguiu penetrá-la; costuma-se dizer que a escravidão desapareceu por completo da civilização europeia. Grande erro! Ela continua a existir, mas oprimindo somente a mulher, e chama-se prostituição.
A curiosidade é uma guloseima. Ver é o mesmo que devorar.
Era evidente que acabava de presenciar um crime. Havia poucos instantes, na rua, a sociedade, representada por um proprietário eleitor, fora insultada e atacada por uma criatura desclassificada. Uma prostituta havia ofendido um burguês.
Teria enternecido um coração de granito, mas nada pôde fazer com um coração de madeira.
Ver uma rameira escarrar no rosto de um Maire era coisa tão monstruosa que, na mais terrível das suposições, lhe parecia um sacrilégio quase impossível.
Essa mulher aqui lançou-se sobre o Sr. Bamatabois, eleitor e proprietário daquela bela casa de três andares com sacadas, toda construída de pedra, que faz esquina com a praça. Enfim, é um homem de posses!
De certo modo, acabava de ser disputada por dois poderes opostos. Assistira, à sua frente, à luta de dois homens em cujas mãos estavam sua liberdade, sua vida, sua alma e sua filha; um deles a queria condenar às trevas; o outro a conduzia para a luz.
As irmãs, a princípio, receberam e cuidaram daquela “rameira” com visível repugnância.
Mas, sem provas, em um acesso de cólera, somente para me vingar, eu o denunciei como forçado, justamente o senhor, um homem tão respeitável, um Maire, um Magistrado!
Muitas vezes fui severo na minha vida. Com os outros. Era muito justo. Eu estava agindo corretamente. Agora, se eu não for severo comigo mesmo, tudo o que fiz de justo se tornará injusto.
A bondade que consiste em dar razão à mulher pública contra o cidadão, ao Agente de Polícia contra o Maire, àquele que está embaixo, contra o que está em cima, é o que eu chamo de bondade injusta. É por causa desse tipo de bondade que a sociedade se desorganiza. Meu Deus! É tão fácil ser bom: o difícil é ser justo.
O caso Champmathieu
tinha um tom de voz capaz, ao mesmo tempo, de converter um luterano e de encantar um salão.
Irmã Simplice
Por mais sinceros e puros que sejamos, todos teremos, por certo, empanado a nossa candura com esse risco da mentira inocente.
Mentirazinhas ou mentiras inocentes existirão realmente? Mentir é sempre um mal. Mentir pouco não é possível: quem mente, mente por completo; a mentira é a própria face do demôn...
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Fazer o poema da consciência humana, fosse embora a propósito de um só homem ou do mais miserável dos homens, seria o mesmo que fundir todas as epopeias numa epopeia superior e definitiva.
Ali, sob o aparente silêncio, há combates de gigantes como em Homero, batalhas de dragões e hidras e nuvens de fantasmas como em Milton, visões de espirais como em Dante.
Que coisa mais sombria é esse infinito que todo homem leva em si mesmo, pelo qual desesperadamente mede os desejos do seu cérebro e as ações da sua vida!
O que o Bispo desejou fazer dele, ele próprio o fez. Foi mais que uma transformação, foi uma transfiguração.
não tendo mais que dois pensamentos: esconder o próprio nome e santificar a própria vida; escapar dos homens e voltar para Deus.
Infelizmente, o que ele tinha intenção de expulsar do quarto já havia entrado, os olhos que ele queria cegar encaravam-no fixamente: era a sua consciência. A consciência, isto é, Deus.
“Onde estou? Será que não estou sonhando? Que foi que me disseram? É mesmo verdade que vi esse tal de Javert e que ele me falou desse modo? Quem é Champmathieu? Então ele se parece comigo? Será possível? Quando penso que ontem eu estava tão tranquilo e tão longe de duvidar da minha segurança! O que eu estava fazendo ontem a estas mesmas horas? O que é que realmente existe neste caso? Como se resolverá? Que fazer?”.
Não obstante o fim severo e religioso a que se propunham suas ações, tudo o que havia feito até aquele dia não era nada mais que um buraco que cavara para enterrar o próprio nome.
no dia em que seu verdadeiro nome reaparecesse, faria desaparecer ao redor dele toda aquela vida nova, e, quem sabe até, se lhe extinguiria no íntimo a nova alma.
A claridade tornou-se completa e Madeleine acabou por confessar a si mesmo que seu lugar nas galés estava vago, e que, por mais que fizesse, sempre estaria à sua espera; o roubo do pequeno Gervais o arrastaria novamente para a prisão e aquele lugar vago o atrairia enquanto não fosse preenchido; era inevitável e fatal.
Além do mais, se alguém sair prejudicado, não será absolutamente por minha culpa. São coisas da Providência. É uma prova de que ela aparentemente quer que isso aconteça! Terei eu o direito de contrariar-lhe as decisões?
Ninguém poderá impedir o pensamento de voltar a uma ideia, como não podemos impedir o mar de voltar sempre a uma praia. Para o marinheiro isso se chama maré; para o culpado isso se chama remorso. Deus agita a alma como agita o oceano.
“sua vida tinha uma finalidade.” Mas qual seria? Esconder o próprio nome? Enganar a polícia? Teria sido por uma razão tão mesquinha que fizera tudo o que fizera?
Voltava a ser ladrão, e o mais desprezível dos ladrões! Estava roubando a outro a existência, a vida, a paz, o lugar ao sol!
Não se encontram diamantes senão nas profundezas da terra; não se encontram verdades senão no mais íntimo da alma. Parecia-lhe que, após ter descido a esses abismos, de ter por muito tempo andado às apalpadelas no mais escuro dessas trevas, acabara, enfim, por encontrar um desses diamantes, uma dessas virtudes, e que a tinha em suas próprias mãos, encantando-se em admirá-la.
Parecia-lhe ver a mão que o libertara reaparecer na sombra, pronta a agarrá-lo.
Nem todos têm uma casa para vir ao mundo. Seria muito cômodo. Creio que meu pai e minha mãe andavam sempre pelas estradas; não sei mais nada. Quando eu era criança, chamavam-me de Pequeno, hoje chamam-me de Velho. Aí estão os meus nomes de batismo.
Era um desses homens desgraçados, dos que a natureza esboça como bestas e a sociedade faz terminar como grilhetas.
As galés é que fazem os grilhetas. Anotem, se quiserem, essas palavras. Antes de ser forçado, eu era um pobre camponês, muito pouco inteligente, uma espécie de idiota; a prisão modificou-me o caráter.
Mais tarde, a indulgência e a bondade me salvaram, do mesmo modo que a severidade me pôs a perder.
porque um dia se deitou em cima de um braseiro para apagar as três letras tpf,
toda aquela multidão compreendeu de repente, e com um único olhar, a simples e magnífica história de um homem que se entregava para que outro não fosse condenado em seu lugar.
Javert era um caráter completo; não admitia rugas nem nos seus deveres, nem no seu uniforme; metódico com os criminosos e intransigente com os botões da roupa.
Nenhum sentimento humano consegue ser tão horrível como a alegria. Era a expressão exata do demônio que consegue reencontrar o condenado que lhe pertencia.
O contentamento de Javert patenteava-se-lhe na atitude majestosa. A deformidade do triunfo estampou-se naquela fronte estreita. Era toda a manifestação de horror que pode dar fisionomia tão satisfeita.
Sem que pudesse claramente aperceber-se, embora com uma intuição confusa de sua necessidade e de seu sucesso, ele personificava, ele, Javert, a Justiça, a luz e a verdade em sua função celeste de destruir o mal.
Tinha atrás de si e ao seu redor, a uma profundidade infinita, a autoridade, a razão, a coisa julgada, a consciência legal, a vindita pública, todas as estrelas; protegia a ordem, fazia sair da lei o raio, vingava a sociedade, dava mão forte ao princípio absoluto; revestia-se de glória, mas sua vitória não estava isenta de desafio e de combate; de pé, altivo, brilhante, ostentava em pleno azul a bestialidade sobre-humana de um arcanjo feroz; a sombra assustadora da ação que estava cumprindo fazia visível, em suas mãos crispadas, o vago clarão da espada social; feliz e indignado, tinha sob seu
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A impiedosa alegria honesta de um fanático em plena atrocidade conserva não sei que brilho lugubremente venerável. Sem que o percebesse, Javert, em sua formidável felicidade, era digno de lástima, como todo ignorante que triunfa. Nada tão pungente e terrível como aquela figura em que se mostrava o que poderíamos chamar de lado mau da bondade.
Nenhuma ortografia humana poderia reproduzir o som com que foram pronunciadas essas palavras; não eram mais palavras humanas, eram um rugido.
A morte é a entrada na grande luz.
Em menos de duas horas, todo o bem que havia feito foi esquecido; ele não era nada mais que um forçado.
Gervais,
Quanto a nós, deixamos os historiadores à vontade; não somos mais que um espectador afastado, um simples caminhante da planície, um pesquisador inclinado sobre essa terra adubada com carne humana, talvez tomando simples aparências como realidades;
18 de junho de 1815.

