Os dias mais estranhos - 08. Beijo (ósculo, chocho)

Na semana seguinte estive quase sempre fechado na minha sala. Com os prazos a apertar no meu trabalho nem sequer parava no café para o pequeno-almoço. Preferia entrar mais cedo e despachar trabalho.Para complicar, o ambiente com as minhas colegas estava a tornar-se cada vez mais pesado. Se por um lado isso me dificultava algumas coisas, no geral até me facilitava a vida visto que não estava constantemente a ser interrompido com problemas da treta. Mas pondo esse pormenor de lado, o ambiente era chato e eu detestava estar a trabalhar em sítios assim.Uma das consequências da minha reclusão era não ver a Mónica desde Sábado. Sentia falta das nossas conversas de café, mas outros valores se elevavam no meu horizonte. Andava de tal forma apertado com prazos que levava o trabalho para casa, coisa que eu nunca gostei de fazer. Na quinta-feira comecei por fim a ver a luz no fundo do túnel sendo que o meu esforço deu frutos.Era já final da tarde quando me bateram à porta da sala. Mandei entrar distraidamente.-Noc, noc!Virei-me reconhecendo a voz e cumprimentei-a.-Oi Mónica. Olá, desaparecido. Julgava que estivesses de férias, ou assim. Só hoje é que soube que cá estavas. Que andas a fazer?Sem palavras limitei-me a mostrar-lhe as carradas de papel que se empilhavam em cima da minha secretária.-Há, compreendo…-É, não tenho tido tempo nem para me coçar… Mas o que é que te trás aos meus humildes aposentos?-Vim ver se me andavas a evitar, ou assim…-Nada disso, não sejas tola.-Pois mas agora já vi os teus motivos.-Palavras para quê?-Olha, venho cá convidar-te para um jantar em minha casa no Sábado.-Deixa-me adivinhar, uma coisita íntima para umas cem ou duzentas pessoas?-Não, é um pouco mais intimo que isso.-Olha, adorava, mas não vai dar.-A Andreia vai lá estar…-E isso era suposto fazer-me mudar de ideias?-Não faz?-Sinceramente, não.-Não gostaste da Andreia!-Claro que gostei. É simpática, divertida…-…boa com o milho…Olhei para ela e ri-me. De alguma forma aquela expressão vulgar perdia toda a vulgaridade quando dita por ela. Ganhava até algum charme e requinte.-É verdade, mas acho que vi um pouco além disso.-Pois acredita que a maior parte dos homens não vê. Quando estão sozinhos com ela ficam todos babadinhos.-Isso deve ser chato para ela. Deve ter que andar com uma montanha de lenços de papel atrás! – Ela riu à gargalhada com o meu comentário.-Óh, pá. Só tu para me fazeres perder assim a compostura.-De qualquer maneira, eu não sou a “maior parte dos homens”.-Pois, aparentemente não. Vá lá, anda lá. – Disse com um ar de miúda a querer fazer birrinha. – Se vieres sempre me salvas da seca…-Em primeiro lugar já tenho outros compromissos. Em segundo lugar não precisas de mim. Tens lá a Andreia.-Irra! És mesmo difícil.-É, irredutível, como os Gauleses.-Tou a ver. Tens p’rai alguma “sirigaita” à tua espera.-Não, não há “sirigaita” nenhuma. Mas já assumi compromissos portanto…-…portanto já percebi que não vais mesmo, não é?-É.-O.K. Eu rendo-me. -Ainda bem. Já tava a ficar cansado.-Nota-se. Só mais uma coisa e eu desamparo-te a loja.-Sendo que a coisa é…?-A Andreia pediu-me o teu telemóvel. Posso dar? Ela ia pedir-to no Sábado, mas uma vez que não vais…-Bem, não convêm dares-lhe o meu telemóvel porque me faz falta. Mas podes dar o número.-Estúpido! – Disse com um ar trocista.-Mas para que é que ela quer o meu numero? - Perguntei eu olhando para ela de lado e levantando o sobrolho.-Acho que ela tem uns problemas no computador dela e precisava de ajuda. Só me lembrei de ti…-Por um mero acaso não estarás armada em Santa Mónica casamenteira, ou coisa assim?-Porquê? – Perguntou ela com o ar mais cândido e inocente que se possa imaginar.-É que se é esse o caso devo já prevenir-te que não vou muito à bola com loiras, a não ser geladas e dentro de uma garrafa.Ela lançou-me um olhar ao mesmo tempo inocente e pervertidamente sensual, capaz de fazer corar um morto e retorquiu – Preferes as morenas, é?Encarei o seu olhar com uma confiança que ela não esperava e que acho que a assustou e depois disse num tom doce e sensual – Prefiro as ruivas…Ela lançou-me um olhar capaz de furar uma chapa de aço inox.-Bhaaa! Vocês os homens são todos iguais. Preferem, preferem, mas depois tudo o que vem à rede é peixe.-Curioso que fales nisso, uma vez que já não lanço as redes à uns tempos.-Deves estar à espera que te salte um peixe para dentro do barco por auto-recriação. Ou preferes carne?-Tenho é andado numa dieta vegetariana.-Pois, pois! Enfim, já vi que esta conversa não chega a lado nenhum.-Pois não! Dois teimosos a teimarem um com o outro…-Bem, vou-me embora.-Tá bem, vai. Se não nos virmos, tem um bom fim-de-semana.Ao chegar à porta segurou a maçaneta e voltou-se para mim lançando-me novamente um olhar capaz de seduzir uma pedra.-De certeza que não te consigo convencer?-De certeza. E não olhes assim para mim.-Assim como?-Como estás a olhar.Ela limitou-se a sorrir, mas não desviou o olhar. Quanto a mim devia estar visivelmente perturbado, e isso neste momento divertia-a. Eu sabia que ela estava a jogar comigo, a tentar seduzir-me para eu mudar de ideias. Olhei directamente para os olhos dela tentando desmascarar o seu “bluff”, mas ela não desviou os olhos dos meus. O ar entre nós parecia carregado de electricidade.-Porquê? – Acabou por me perguntar.Naquele momento senti-me arrastado no tempo para trás, até ao momento em que vira os seus olhos pela primeira vez. De novo o meu coração pareceu falhar uma batida.-Porque me perturbas!-E…?-…e ainda me levas a fazer alguma coisa que eu não devo.-Como por exemplo…?Não pensei. Levantei-me e dirigi-me a ela. Ela não se mexeu, como se quisesse ver até onde é que eu queria chegar e o que iria fazer. Sem desviar os meus olhos dos dela pus-lhe uma mão na face. Ela perdeu o sorriso. Desviou o olhar por breves instantes. Parei. Ela voltou a trazer os seus olhos ao encontro dos meus. Naquele momento o mundo parou à minha volta e a única coisa que restou foi a imagem da face dela, serena e suave. A sensação em mim era indescritível.Aproximei-me mais um pouco e senti a sua respiração a acelerar. Não era suposto isto acontecer. Era completamente despropositado e ambos o sabíamos. Nenhum dos dois se atreveu a recuar.Bem de dentro de mim um desejo reprimido impeliu-me em frente. Beijei-lhesuavemente os lábios e o mundo, que já estava parado, pura e simplesmente desapareceu. O tempo parou. Naquele instante, para mim, a finalidade do universo era permitir que aquele momento existisse. Aquela eternidade não durou mais do que dois ou três segundos. Depois recuei ligeiramente. Os nossos olhares em momento algum se perderam.Após alguns segundos ambos cedemos. As nossas bocas colaram-se, os nossos olhos fecharam-se e envolvemo-nos num beijo carregado de paixão. Perdi por completo a noção do tempo e do espaço.Quando paramos voltamos a ficar hipnotizados com o olhar um do outro. Os segundos passaram em silêncio. As palavras tinham-se tornado supérfluas e desnecessárias.-Tenho de ir… – disse ela finalmente quebrando o olhar. Respirei fundo. Depois afastei-me.-vai…
Ela abriu a porta e saiu.
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Published on October 28, 2015 01:23
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