Os dias mais estranhos - 07. Andreia

Faltava um quarto para as nove quando cheguei ao sítio combinado, à entrada da estação de comboios de Cascais. Tinha chegado cedo e aproveitei para beber um café na estação.Conforme prometido vinha um pouco mais bem vestido que o usual, com uns sapatos em vez de os ténis do costume e com um “blazer” e uma camisa. Só as obrigatórias calças de ganga restavam. A Mónica não tinha dito que era “Black Tie”, por isso não me esforcei muito. No entanto, neste momento, estava um pouco preocupado com a minha indumentária.As dúvidas desfizeram-se quando ela chegou. Apresentou-me de imediato o Francisco que trazia uma indumentária bastante parecida com a minha.-Então você é que é o criador do logótipo…-Pode-se dizer que sim.-Gostei do que vi.-Sim, a Mónica já me tinha dito…-Sempre vai desenhar um para mim?-Vou tentar.-É justo. Mas vai ver que se vai dar bem.-Espero que sim…O Francisco era obviamente mais velho que a Mónica. Era um homem já nos cinquentas. No entanto parecia pleno de vitalidade. Era um daqueles homens que nos demonstram quem são primeira vista. Daqueles homens que sobem a vida a pulso e que não aceitam um não como resposta. Tinha um passado obviamente simples, como estava espelhado nos modos rudes como falava, mas tentava agora ganhar um estatuto que não tinha à força do dinheiro. Apesar disso parecia ser um tipo simpático. Isto, claro, desde que não estivéssemos atravessados no seu caminho. O que era o meu caso.Insistiram para que eu deixasse o meu carro ali e que seguisse no carro deles, pois ainda tínhamos que ir buscar a amiga da Mónica a casa. Durante o caminho trocaram poucas palavras entre os dois, e eu não dei atenção ao pouco que disseram.Paramos frente à entrada de um prédio. A Mónica tirou o telemóvel da sua bolsa e marcou um número.-Tou, linda… desce… estamos aqui à tua espera.Após um curto tempo de espera a luz do prédio acendeu-se e a amiga da Mónica apareceu. A Mónica tinha razão. Não seria um sacrifício para mim.Parecia saída directamente das páginas de um livro de Milo Manara. E como um amigo meu costuma dizer, se o mundo fosse desenhado por Manara seria, de certeza, muito mais agradável. Alta e esbelta, com um andar quase felino. Loira, com o cabelo a descer em cascatas onduladas até à cintura. Um rosto de traço fino onde sobressaiam uns lábios carnudos e uns olhos de um azul claro límpido. Se tivesse que usar apenas um adjectivo para a descrever seria sem duvida “Sexy”.Não deixei de me perguntar, enquanto ela se encaminhava para o carro, porque precisaria uma mulher assim que lhe arranjassem companhia para uma saída num Sábado à noite. Não encontrei uma resposta.Ela entrou no carro e após ter cumprimentado o Francisco e a Mónica foi-me prontamente apresentada. Andreia era o seu nome.Após alguns minutos de conversa de circunstância, sobretudo por parte dos meus acompanhantes, visto eu ter-me mantido quase sempre calado enquanto serpenteávamos através do trânsito de Cascais, chegamos ao nosso destino.A galeria era um edifício de dois andares com toda a fachada completamente envidraçada. De lá de dentro emanava uma luz que parecia em tons de um dourado escuro, e via-se perfeitamente formas estranhas espalhadas pelos dois pisos. Conforme entramos veio-me aos ouvidos um jazz elegante que de alguma forma enquadrava o resto do ambiente. A noite foi sendo pontuada por conversas de circunstância com estranhos que fui conhecendo. Tornou-se claro que, embora por princípio estivesse ali para escoltar a Andreia, a verdade é que o Francisco desapareceu de vista assim que entramos, sendo a Andreia a escoltar a Mónica. Isto deixou-me praticamente só no meio daquela pequena multidão que contrariava a ideia de uma festa só para uns quantos amigos.As pessoas ali presentes estavam divididas claramente em três grupos. Em primeiro, os que lá estavam porque ali pertenciam. Estavam dentro do meio e aquilo era o seu ambiente natural. Depois vinham os que vieram a acompanhar alguém, mas que se sentiam deslocados. E finalmente dos que apareceram só para se mostrar num sitio “in”.Eu pertencia claramente ao segundo. Devia ser no entanto a única pessoa na sala que tinha consciência plena disso. Como tal fui-me divertindo durante a noite com os pequenos jogos inconscientes entre os intervenientes.Quando finalmente me fartei de tal actividade dirigi-me para o terraço do primeiro andar e dei comigo sozinho. Estava uma noite fria e os vestidos de noite que a maiorias das mulheres usava só se davam bem com o calor.Fiquei a observar a rua plena de movimento quando a Mónica e a Andreia se juntaram a mim.-Tens andado divertido? – Perguntou a Mónica.-Não deve estar muito, aqui fora sozinho, ao frio… - retorquiu a Andreia.-Não, não e verdade – Disse a Mónica. – Se bem o conheço tem estado bem divertido com tudo isto. Olha para o ar dele, com um ar de gozo, mas ao mesmo tempo pensativo.-Achas?... – Perguntei eu.-Só te vi esse ar uma vez… - respondeu ela - …quando observavas a natureza humana. Verdad?-Verdad. Observadora.-Sempre. Uma mulher é sempre uma boa observadora.-Tem de ser. – Disse Andreia – Para saber o que vai na cabeça das pessoas.-Na dos homens – respondi-lhe – quando tu passas, não é preciso ser bom observador para adivinhar.-Atrevidote, o rapaz. – Disse a Andreia para a Mónica fazendo um aceno de cabeça na minha direcção.-É. – Respondeu a Mónica – Tá saído da casca. Anda para dentro. – Disse voltando-se para mim.-Para te ser franco não me apetece muito…-Mas vem. O Francisco perguntou por ti. Agora é que a tua diversão vai começar.Encolhi os ombros e suspirei. Elas entreolharam-se e riram da minha atitude.-Prontos, tá bêm. Ê vou. – E fui.Levaram-me até ao Francisco. Este ao ver-me fez-me uma festa como se eu tivesse andado na tropa com ele e não me visse já há mais de vinte anos, deu-me uma palmada nas costas e enfiou-me um copo de whisky na mão.-Pessoal, este é o Pedro, o tal puto de que eu vos falei que desenhou o logótipo para aquela brincadeira da Mónica.Não pude deixar de notar a condescendência. Não para comigo, mas com aquilo que a Mónica queria fazer. Olhei para ela e notei que, por debaixo da fachada, ela tinha acusado o toque.O Francisco passou uma cópia do logótipo pelo “pessoal”, que andava todo mais ou menos na sua faixa etária, e eles foram comentando, uns com os outros e comigo, o trabalho quer do ponto de vista artístico, quer da sua qualidade. Alguns deles pediram-me o meu número de telefone dizendo que talvez tivessem trabalho para mim.Passei o resto da noite no meio de conversas desinteressantes acerca do meu suposto talento. Era um sábado e eu, muito sinceramente, estava a acha-lo muito aborrecido, ao ponto de estar com saudades da minha consola de jogos. O único ponto alto da noite foi ter conhecido a Andreia. Mas isso também não adiantava muito à minha felicidade.Finalmente deslumbrei uma aberta e escapei-me de novo para a varanda. Mil vezes o frio aos chatos.Sentei-me numa mesa que ali havia e onde havia um chapéu-de-sol aberto. Pelo menos assim não me caía em cima a humidade da noite. Estava já farto de tanta gente, de tantas perguntas inconsequentes e de tantas conversas banais. Perguntava-me a mim mesmo porque deixara o carro tão longe. De facto, ao aceitar vir com a Mónica e o Francisco tornara descortês o facto de me querer ir embora. Teria que saber esperar.Aproveitei para reflectir acerca do que o Francisco tinha dito sobre as ideias da Mónica. Ele, aos poucos, tornava-se transparente. Não partilhava nem respeitava os interesses dela. E não se pode amar quem não se respeita. Ela não passava de mais uma das coisas que o dinheiro lhe tinha trazido. Ela abria-lhe portas a ambientes como este onde nos encontrávamos. Se não fosse por ela, teria ele sido convidado? Tinha sérias dúvidas. Ela era para ele uma mulher objecto, que lhe dava estatuto e servia, de certeza, para fazer inveja aos amigos. Ela era um símbolo de afirmação pessoal.De alguma maneira senti que a Mónica sabia de tudo isto e isso entristeceu-me. Seria ela uma pessoa diferente do que eu pensava? Continuava a achar que não. Havia por detrás destes lugares definidos nesta relação um jogo de interesses. O interesse dele era óbvio. E o interesse dela? Seria tão simples assim?A noite foi-se continuando a arrastar de forma solitária. Só voltei a entrar, e meramente de fugida, para reabastecer o meu copo. Eram já duas da manhã quando alguém pareceu dar pela minha falta. Fui desperto dos meus pensamentos pela chegada da Andreia.-Posso? – Perguntou pondo a mão sobre uma cadeira ao meu lado.-Claro…Sentou-se.-Tão só?-Mais vale só…-Num sítio cheio de gente tão interessante?-Sim, mas esses estão todos ocupados. E como os chatos os superam em número…Ela riu.-Tens razão. Tá a ser uma seca. Só a Mónica para me arrastar para um sítio destes.-A ti e a mim. Falando em Mónica, que é feito dela?-O Francisco roubou-ma. Estão lá dentro a falar com a dona da galeria, e como isto é de certeza mais estranho ao Francisco do que a ti e a mim…Sorri. As minhas suspeitas confirmavam-se com aquela frase. -E tu, – perguntou-me – com é que foste arrastado para aqui?-Foi por causa daquela história do logótipo. A Mónica disse que o Francisco me queria conhecer, que queria que eu fizesse um trabalho para ele e blá, blá, blá. Mas sinceramente não estava à espera disto.-É. Logo num sábado à noite. Aposto que deixaste alguém chateado por vires para aqui.-Quem é que eu deixaria chateado?-Sei lá… – disse fazendo-se subitamente desentendida – …a tua mãe, ou uma namorada, por exemplo.-Já vivo sozinho à uns tempos e não tenho namorada.-Porquê?O súbito interesse dela despertou-me a curiosidade. Procurei uma resposta que não fosse rebuscada ou óbvia. Conhecia esta mulher à apenas umas horas e mal tínhamos trocado uma palavra até agora. Não estava propriamente na disposição de lhe abrir os segredos da minha vida.-Prefiro assim. – Acabei por dizer.Ela recostou-se na cadeira e olhou para mim durante algum tempo, como se procurasse ler-me os pensamentos. O olhar dela começava a incomodar-me e a deixar-me inquieto. De repente quebrou o silêncio.-Posso fazer-te uma pergunta?-Já fizeste…-A sério, posso?...-Faz.-És gay?Desta vez fui eu que fiquei a olhar para ela.-Mas que raio de pergunta é essa? Se eu sou gay? Achas? A que propósito é que isso vem?-É que cada vez que conheço um homem interessante ou é comprometido, ou é gay…Ora aí estava uma novidade. -Devo depreender então que me consideras interessante?-Há piores… – disse com um encolher de ombros.-Mas também há melhores.-Há de tudo por aí…Matutei, enquanto um trago de whisky me queimava a garganta, em todas as implicações que a nossa conversa poderia ter. Decidi não dar importância ao que tinha sido dito. Antes que a conversa pudesse continuar apareceu a Mónica.-Eu sabia que vos ia encontrar aqui. Vim interromper alguma coisa?-Não, nada. – Respondemos quase em coro.-Pois… – respondeu a Mónica levantando o sobrolho. – Vamos indo meninos? -Aleluia! – Respondi eu com um suspiro de alívio.
Juntámo-nos ao Francisco, e, após umas quantas despedidas, dirigimo-nos para o carro. Pelo caminho ninguém falou e os únicos ruídos vinham do barulho monótono do motor e da música que saia baixinho do rádio. Foram-me pôr ao carro primeiro e seguiram os três. Dirigi-me rapidamente para casa pensando numa boa noite de sono, mas estranhamente foi-me difícil adormecer. E enquanto não dormi fui repensando aquela noite.
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Published on October 27, 2015 09:54
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