Do 3º
I
Sim, vou-te contar a minha história.
Não há realmente nenhum motivo em especial para o fazer, mas para te ser franco, apetece-me. Acho que alguém precisa de saber o meu ponto de vista, e porque não tu?
Não é que te considere especial, ou diferente dos outros. Não, és igual a eles todos. És só mais uma formiguinha atarefada a cumprir com zelo a sua tarefa sem questionar nada, mais um Zombie que anda de um lado para o outro a pensar que toma decisões, quando na verdade apenas estás a seguir os condicionalismos que o mundo te impõe. Por que cargas de agua havia de ter por ti uma consideração diferente da que tenho pelos outros todos? Não mereces mais nem menos. És igual.
Então porque contar-te a história?
Porque estás aí. E não sei, para te ser franco se estarão aí muitos mais. Olho para a minha ampulheta e já não vejo muitos grãos de areia na parte de cima, por isso, és um fruto do mero acaso. Calhaste a estar aí…
Mas para perceberes a história, tens que saber um pouco acerca de mim. Afinal é a minha
história. E para me perceberes temos de recuar no tempo.
II
Lembro-me claramente daquele dia, um dia em que a chuva miudinha caia de um céu pintado em tons de cinzento-escuro. Lembro-me porque foi o último dia em que realmente senti algo. À medida que o caixão que continha os restos mortais da minha mãe descia à terra e era colocado ao lado de um outro que continha os do meu pai, lembrava-me dele e de como ele dizia “Um homem não chora…”, e apesar do que sentia por dentro, uma vontade enorme de me mandar para cima daqueles caixões e ficar ali, do pânico e do medo do que viria a seguir, da solidão que me invadia, aquelas palavras ressoaram em mim, como um ultimo recado, e as lágrimas secaram nos meus olhos e quis, com toda a força do meu ser, deixar de lado todos aqueles sentimentos. E consegui. Tinha sete anos e foi a última vez que chorei.
Não olhes assim para mim, estou apenas a relatar um facto como qualquer outro. Não espero simpatia ou qualquer outro sentimento da tua parte.
Fui viver com uma tia que tinha já três filhos e eu acabei por ser mais um encargo para ela. Percebi, mesmo antes de entrar à porta de casa que nunca teria nada de meu, verdadeiramente meu, a não ser os meus pensamentos. E resolvi não falar, não dizer nada, também porque não sentia e não havia nada para dizer. Na minha cabeça limitava-me a existir.
Claro que isto levou a uma serie de situações. Os meus primos, cujo mais novo era pouco mais velho do que eu, implicavam comigo e descobriram que podiam fazer fosse o que fosse que eu não diria nada, uma vez que não falava. Claro que abusaram da situação. Maltratavam- me, gozavam-me, na rua nem queriam ser vistos ao pé de mim e fizeram coisas com um requinte de crueldade que apenas uma criança é capaz. Ainda assim não liguei nem quebrei o meu silêncio.
Havia conforto no meu silêncio, como se por não falar houvesse algo exclusivamente meu, os meus pensamentos. O facto de não os partilhar dava-lhes uma força enorme em mim.
Foi também por esta altura que descobri os livros que lia avidamente. A minha tia ia todas
as semanas à biblioteca municipal buscar livros para mim. Acho que chegou a uma altura em que nem os escolhia, já só se esforçava por trazer algo que eu não tivesse lido. Ganhou este hábito quando um psiquiatra, um dos muitos que me viu e consultou, notou esse meu interesse e disse que deveria ser encorajado.
À custa de tanto ler, as minhas notas escolares eram altíssimas, mas tinha problemas com os professores, isto já para não falar dos colegas. Mas a verdade é que tudo isto me permitiu criar o meu espaço onde eu era intocável. Era um espaço que não era físico e como tal releguei todos os espaços físicos para segundo plano.
Claro que aos poucos comecei a aperceber-me de que esta “não integração” da minha parte se poderia tornar ainda mais grave no futuro, e na minha cabeça começou a surgir a ideia de criar a minha mascara, a minha fachada, e aos poucos construí-o como uma personagem de um dos livros que lia. Demorei o meu tempo, fui metódico, vi todos os ângulos da personalidade que deveria ter, e, quando me senti pronto quebrei o meu silêncio, para surpresa de toda a gente.
Na verdade não o quebrei. Eu continuava em silêncio e hoje, agora enquanto falo contigo, é a primeira vez que o quebro. Mas o facto de a minha fachada falar permitiu-me começar a ter menos problemas e não ter palermas e tentar dar nomes técnicos a coisas que não conseguiam e não conseguem entender. Só por isso valeu a pena criar a minha fachada.
A minha fachada não era brilhante, apenas se pautava pela mediania. As notas escolares desceram para níveis aceitáveis, procurando não desapontar mas não deslumbrar. As relações e as conversas que eram tidas eram as que se esperava ter. Não havia uma única demonstração de brilhantismo ou de estupidez absoluta.
E assim, aos poucos, acabei por me diluir na maré, deixar de ser uma preocupação, deixar de ser notado. Apenas tinha de me certificar que teria sempre a reacção certa no momento certo. Tinha de me rir quando contavam uma piada, mostrar choque num evento ou notícia traumática, mostrar fúria e revolta quando havia algo contra mim…
…mas a verdade é que nada disto foi alguma vez sentido. Na verdade acho que o único verdadeiro sentimento que tive alguma vez foi desprezo por tudo o que me rodeava, mas se calhar nem isso. No fundo acho que não passava de indiferença…
III
Acho que no meio da minha indiferença ao que me rodeava a única coisa que conseguia sentir mesmo era prazer. Havia algo em mim que se deleitava ao olhar para os outros e ver a ideia que tinham da minha mascara. Dava-me um gozo enorme este jogo em que por vezes me aproximava demais de revelar algo verdadeiramente meu para depois ver a dúvida nas pessoas.
Mas as pessoas que lidavam comigo acabavam sempre por descartar a hipótese de eu ser mais do que aparentava. Afinal, num mundo de aparências, conta o que se parece ser e não o que se é.
Viam-me como um inadaptado pelo simples facto de eu não procurar estabelecer relações próximas. Toda a gente procurava alguém, menos eu. Aos vinte e cinco tive a minha primeira experiência sexual. Não me agradou nem compreendi o porquê de tanta fleuma à volta do assunto. A televisão, a publicidade, a moda, todos respiravam sexo. Era o verdadeiro motor do mundo. Era tão importante que a própria abstinência era vista como um sacrifício, sendo por isso imposta em algumas religiões. E o fundo era algo de tão primário, animal…
Além de não me agradar o acto em si, a proximidade do contacto físico com alguém causou-me repulsa. É algo de aberrante.
Foi essa a única parte que não consegui mascarar na realidade, tal foi a repulsa que senti. Nunca mais procurei chegar-me a alguém nem permiti que alguém chegasse perto de mim. Isso, sem dúvida, contribuiu para me rotularem como um inadaptado.
Mas fora isso levava uma vida normal.
IV
A minha mascara de normalidade requeria que eu tivesse um trabalho. Como tal arranjei um que me permitia manter-me perdido nos meus pensamentos. Arquivava fichas. Não era tarefa onde eu tivesse que me esforçar muito, bastava colocá-las metodicamente no lugar, letra após letra. Também tinha a vantagem de não ter que falar com muita gente. Chegavam com as fichas, depositavam-nas e eu agarrava nelas e arquivava. Simples e sem complicações.
Quando chegava à minha hora saia e tinha o martírio dos transportes, por norma apinhados de pessoas, de cheiros, de conversas inconsequentes e ridículas. Por muitas coisas que ouvia perguntava-me se não conseguiria ter conversas mais inteligentes com um papagaio bem ensinado.
Após uma hora deste martírio chegava a casa, tirava qualquer coisa do frigorífico para aquecer no microondas, sentava-me e enterrava-me nos livros e revistas que comprava de forma quase compulsiva. Era esta a minha vida e sabia-me bem estar assim. A minha casa era a minha ilha onde a mascara podia cair e eu era eu próprio. E foi assim durante anos. Até há um ano atrás.
Sabes, era uma noite de inverno como qualquer outra. Eu estava deitado mas sem sono. Chovia copiosamente e ouvia as gotas que caiam dos beirados, mais grossas que as outras, a embater no chão de uma forma ritmada.
Sempre me reconfortara este ruído. Era calmante. O suficiente até para me fazer deslizar para o sono, coisa que raramente acontecia. Nesse dia foi diferente. Estava deitado no escuro, perdido nas poliritmias que vinham do som da chuva que caia. Chamou-me mesmo à atenção o ritmo, as diferentes cadências, a aparente desconexão…
…mas que sentia como apenas aparente. De alguma forma havia sentido. Havia padrões. Cadências. Percebi que podia perfeitamente escrever as gotas numa pauta musical e faria sentido.
Levantei-me, fui buscar um gravador e fiquei no maior silêncio possível a gravar a chuva.
Quando a chuva parou, ao fim de uns minutos, rebobinei a cassete e ouvi. Estavam lá os padrões. As cadências. Os ritmos. Liguei o computador, carreguei um software de música e comecei a editar uma pauta com todos aqueles ritmos. Era já perto da hora de sair de casa quando acabei de escrever a pauta. Olhei. Fruto do acaso ou não, a minha frente estava um padrão reconhecível, cíclico, que quase parecia…
…intencional. Sim, parecia intencional.
Fiz o software tocar o que estava escrito e o computador devolveu-me uma interpretação da própria chuva. Ouvir o padrão ao mesmo tempo que o visualizava apenas reforçou a sensação. Imprimi as pautas e sai de casa. Levei-as comigo. Estava fascinado pelos padrões escritos.
Durante o caminho para o trabalho não tirei os olhos delas. Tinha de haver relações. Tentava imaginar uma formula resolvente, qualquer coisa que desse sentido.
Cheguei ao trabalho e liguei o computador. Tentei calcular formulas que pudessem resumir a poliritmia escrita para encontrar algo mais que lá estivesse. Passei o dia em tentativas, negligenciando mesmo o trabalho. Já ia a meio da tarde quando qualquer coisa assim apareceu no monitor:
ldfgliaggaejeufemoidujruaswnhx8cheias9sjhwaisndyhqueksndhchora93jhrestáoskdnsógsh dnporhsvdbentreesdaba6jsgdmultidãoqáhsja2mndcprocura0wiendayshgdluzenshdahsjduremi ssão3oafsdarensjdse9oskfáabxcgdiz2ksndlhegsbdmclkjdfhzdljhrstbvljahgsehfçSEBF
Mais uma vez procurei sentido e só então comecei a descortinar palavras no meio da confusão.
“Em ruas cheias a que chora está só por entre a multidão a procura de luz a remissão dar se a diz-lhe”
Mas embora houvesse palavras, o significado continuava omisso.
V
Percebo que não me entendas. Não consegues perceber bem esta história da minha mascara, de eu me esconder. Mas diz-me, serei eu assim tão diferente de ti?
Pensa bem…
…ao fim ao cabo eu tenho o meu “eu” bem definido e delineado. E criei deliberadamente uma mascara para o esconder, porque sei que o mundo ia olhar para mim como olhas agora. Com esse misto de piedade e não entendimento, como se eu fosse algo à parte.
Mas…
…e tu?
Tu acordas de manhã e pões uma mascara mesmo antes de sair da cama, sais de casa e pões outra para que fiquem alheios a ti e para ficares alheio ao mundo. Chegas ao trabalho e pões outra, aliás, várias, consoante a pessoa a quem te diriges. Sais do trabalho e usas outra vez a de manhã até chegares a casa. Depois, se tiveres filhos usas uma para eles e outra para a tua cara-metade. Sais à noite e usas outra. Sais para casa de familiares e usas outra…
…são tantas as que usas que acho que te perdes no meio delas e que algumas se te colam
à pele. Saberás tu quem és, na realidade? És uma soma de tudo isso, ou não serás nada disso?
Sabes o que eu acho? Acho que tens medo de olhar para ti, para dentro de ti e descobrires que afinal não és assim tão diferente de mim.
Eu pelo menos sou mais simples, mais honesto, e não tenho medo de me encarar, por isso tira esse olhar da tua face, olha para mim e revê-te. Olha para os teus pensamentos enquanto olhas à volta para a multidão e pensas “Mas que raio faço eu aqui…?”, “Que raio faz toda esta gente aqui…?”
Não te desprezas às vezes por seres apenas mais um dente da engrenagem? Não pensas às vezes o quanto seria interessante seres antes uma pedra para encravar a engrenagem subtilmente? Não o fazes por vezes porque o dia te corre mal e acabas por lixar o juízo a alguém igual a ti?
Quem és tu afinal para me criticar?
Tira esse olhar da tua face. Eu já te desprezo o suficiente. Não tens que te esforçar mais. Mas não me leves a peito. Eu desprezo toda a gente da mesma maneira, por isso…
Assim estamos melhor. Onde é que eu ia?
Sim, vou-te contar a minha história.
Não há realmente nenhum motivo em especial para o fazer, mas para te ser franco, apetece-me. Acho que alguém precisa de saber o meu ponto de vista, e porque não tu?
Não é que te considere especial, ou diferente dos outros. Não, és igual a eles todos. És só mais uma formiguinha atarefada a cumprir com zelo a sua tarefa sem questionar nada, mais um Zombie que anda de um lado para o outro a pensar que toma decisões, quando na verdade apenas estás a seguir os condicionalismos que o mundo te impõe. Por que cargas de agua havia de ter por ti uma consideração diferente da que tenho pelos outros todos? Não mereces mais nem menos. És igual.
Então porque contar-te a história?
Porque estás aí. E não sei, para te ser franco se estarão aí muitos mais. Olho para a minha ampulheta e já não vejo muitos grãos de areia na parte de cima, por isso, és um fruto do mero acaso. Calhaste a estar aí…
Mas para perceberes a história, tens que saber um pouco acerca de mim. Afinal é a minha
história. E para me perceberes temos de recuar no tempo.
II
Lembro-me claramente daquele dia, um dia em que a chuva miudinha caia de um céu pintado em tons de cinzento-escuro. Lembro-me porque foi o último dia em que realmente senti algo. À medida que o caixão que continha os restos mortais da minha mãe descia à terra e era colocado ao lado de um outro que continha os do meu pai, lembrava-me dele e de como ele dizia “Um homem não chora…”, e apesar do que sentia por dentro, uma vontade enorme de me mandar para cima daqueles caixões e ficar ali, do pânico e do medo do que viria a seguir, da solidão que me invadia, aquelas palavras ressoaram em mim, como um ultimo recado, e as lágrimas secaram nos meus olhos e quis, com toda a força do meu ser, deixar de lado todos aqueles sentimentos. E consegui. Tinha sete anos e foi a última vez que chorei.
Não olhes assim para mim, estou apenas a relatar um facto como qualquer outro. Não espero simpatia ou qualquer outro sentimento da tua parte.
Fui viver com uma tia que tinha já três filhos e eu acabei por ser mais um encargo para ela. Percebi, mesmo antes de entrar à porta de casa que nunca teria nada de meu, verdadeiramente meu, a não ser os meus pensamentos. E resolvi não falar, não dizer nada, também porque não sentia e não havia nada para dizer. Na minha cabeça limitava-me a existir.
Claro que isto levou a uma serie de situações. Os meus primos, cujo mais novo era pouco mais velho do que eu, implicavam comigo e descobriram que podiam fazer fosse o que fosse que eu não diria nada, uma vez que não falava. Claro que abusaram da situação. Maltratavam- me, gozavam-me, na rua nem queriam ser vistos ao pé de mim e fizeram coisas com um requinte de crueldade que apenas uma criança é capaz. Ainda assim não liguei nem quebrei o meu silêncio.
Havia conforto no meu silêncio, como se por não falar houvesse algo exclusivamente meu, os meus pensamentos. O facto de não os partilhar dava-lhes uma força enorme em mim.
Foi também por esta altura que descobri os livros que lia avidamente. A minha tia ia todas
as semanas à biblioteca municipal buscar livros para mim. Acho que chegou a uma altura em que nem os escolhia, já só se esforçava por trazer algo que eu não tivesse lido. Ganhou este hábito quando um psiquiatra, um dos muitos que me viu e consultou, notou esse meu interesse e disse que deveria ser encorajado.
À custa de tanto ler, as minhas notas escolares eram altíssimas, mas tinha problemas com os professores, isto já para não falar dos colegas. Mas a verdade é que tudo isto me permitiu criar o meu espaço onde eu era intocável. Era um espaço que não era físico e como tal releguei todos os espaços físicos para segundo plano.
Claro que aos poucos comecei a aperceber-me de que esta “não integração” da minha parte se poderia tornar ainda mais grave no futuro, e na minha cabeça começou a surgir a ideia de criar a minha mascara, a minha fachada, e aos poucos construí-o como uma personagem de um dos livros que lia. Demorei o meu tempo, fui metódico, vi todos os ângulos da personalidade que deveria ter, e, quando me senti pronto quebrei o meu silêncio, para surpresa de toda a gente.
Na verdade não o quebrei. Eu continuava em silêncio e hoje, agora enquanto falo contigo, é a primeira vez que o quebro. Mas o facto de a minha fachada falar permitiu-me começar a ter menos problemas e não ter palermas e tentar dar nomes técnicos a coisas que não conseguiam e não conseguem entender. Só por isso valeu a pena criar a minha fachada.
A minha fachada não era brilhante, apenas se pautava pela mediania. As notas escolares desceram para níveis aceitáveis, procurando não desapontar mas não deslumbrar. As relações e as conversas que eram tidas eram as que se esperava ter. Não havia uma única demonstração de brilhantismo ou de estupidez absoluta.
E assim, aos poucos, acabei por me diluir na maré, deixar de ser uma preocupação, deixar de ser notado. Apenas tinha de me certificar que teria sempre a reacção certa no momento certo. Tinha de me rir quando contavam uma piada, mostrar choque num evento ou notícia traumática, mostrar fúria e revolta quando havia algo contra mim…
…mas a verdade é que nada disto foi alguma vez sentido. Na verdade acho que o único verdadeiro sentimento que tive alguma vez foi desprezo por tudo o que me rodeava, mas se calhar nem isso. No fundo acho que não passava de indiferença…
III
Acho que no meio da minha indiferença ao que me rodeava a única coisa que conseguia sentir mesmo era prazer. Havia algo em mim que se deleitava ao olhar para os outros e ver a ideia que tinham da minha mascara. Dava-me um gozo enorme este jogo em que por vezes me aproximava demais de revelar algo verdadeiramente meu para depois ver a dúvida nas pessoas.
Mas as pessoas que lidavam comigo acabavam sempre por descartar a hipótese de eu ser mais do que aparentava. Afinal, num mundo de aparências, conta o que se parece ser e não o que se é.
Viam-me como um inadaptado pelo simples facto de eu não procurar estabelecer relações próximas. Toda a gente procurava alguém, menos eu. Aos vinte e cinco tive a minha primeira experiência sexual. Não me agradou nem compreendi o porquê de tanta fleuma à volta do assunto. A televisão, a publicidade, a moda, todos respiravam sexo. Era o verdadeiro motor do mundo. Era tão importante que a própria abstinência era vista como um sacrifício, sendo por isso imposta em algumas religiões. E o fundo era algo de tão primário, animal…
Além de não me agradar o acto em si, a proximidade do contacto físico com alguém causou-me repulsa. É algo de aberrante.
Foi essa a única parte que não consegui mascarar na realidade, tal foi a repulsa que senti. Nunca mais procurei chegar-me a alguém nem permiti que alguém chegasse perto de mim. Isso, sem dúvida, contribuiu para me rotularem como um inadaptado.
Mas fora isso levava uma vida normal.
IV
A minha mascara de normalidade requeria que eu tivesse um trabalho. Como tal arranjei um que me permitia manter-me perdido nos meus pensamentos. Arquivava fichas. Não era tarefa onde eu tivesse que me esforçar muito, bastava colocá-las metodicamente no lugar, letra após letra. Também tinha a vantagem de não ter que falar com muita gente. Chegavam com as fichas, depositavam-nas e eu agarrava nelas e arquivava. Simples e sem complicações.
Quando chegava à minha hora saia e tinha o martírio dos transportes, por norma apinhados de pessoas, de cheiros, de conversas inconsequentes e ridículas. Por muitas coisas que ouvia perguntava-me se não conseguiria ter conversas mais inteligentes com um papagaio bem ensinado.
Após uma hora deste martírio chegava a casa, tirava qualquer coisa do frigorífico para aquecer no microondas, sentava-me e enterrava-me nos livros e revistas que comprava de forma quase compulsiva. Era esta a minha vida e sabia-me bem estar assim. A minha casa era a minha ilha onde a mascara podia cair e eu era eu próprio. E foi assim durante anos. Até há um ano atrás.
Sabes, era uma noite de inverno como qualquer outra. Eu estava deitado mas sem sono. Chovia copiosamente e ouvia as gotas que caiam dos beirados, mais grossas que as outras, a embater no chão de uma forma ritmada.
Sempre me reconfortara este ruído. Era calmante. O suficiente até para me fazer deslizar para o sono, coisa que raramente acontecia. Nesse dia foi diferente. Estava deitado no escuro, perdido nas poliritmias que vinham do som da chuva que caia. Chamou-me mesmo à atenção o ritmo, as diferentes cadências, a aparente desconexão…
…mas que sentia como apenas aparente. De alguma forma havia sentido. Havia padrões. Cadências. Percebi que podia perfeitamente escrever as gotas numa pauta musical e faria sentido.
Levantei-me, fui buscar um gravador e fiquei no maior silêncio possível a gravar a chuva.
Quando a chuva parou, ao fim de uns minutos, rebobinei a cassete e ouvi. Estavam lá os padrões. As cadências. Os ritmos. Liguei o computador, carreguei um software de música e comecei a editar uma pauta com todos aqueles ritmos. Era já perto da hora de sair de casa quando acabei de escrever a pauta. Olhei. Fruto do acaso ou não, a minha frente estava um padrão reconhecível, cíclico, que quase parecia…
…intencional. Sim, parecia intencional.
Fiz o software tocar o que estava escrito e o computador devolveu-me uma interpretação da própria chuva. Ouvir o padrão ao mesmo tempo que o visualizava apenas reforçou a sensação. Imprimi as pautas e sai de casa. Levei-as comigo. Estava fascinado pelos padrões escritos.
Durante o caminho para o trabalho não tirei os olhos delas. Tinha de haver relações. Tentava imaginar uma formula resolvente, qualquer coisa que desse sentido.
Cheguei ao trabalho e liguei o computador. Tentei calcular formulas que pudessem resumir a poliritmia escrita para encontrar algo mais que lá estivesse. Passei o dia em tentativas, negligenciando mesmo o trabalho. Já ia a meio da tarde quando qualquer coisa assim apareceu no monitor:
ldfgliaggaejeufemoidujruaswnhx8cheias9sjhwaisndyhqueksndhchora93jhrestáoskdnsógsh dnporhsvdbentreesdaba6jsgdmultidãoqáhsja2mndcprocura0wiendayshgdluzenshdahsjduremi ssão3oafsdarensjdse9oskfáabxcgdiz2ksndlhegsbdmclkjdfhzdljhrstbvljahgsehfçSEBF
Mais uma vez procurei sentido e só então comecei a descortinar palavras no meio da confusão.
“Em ruas cheias a que chora está só por entre a multidão a procura de luz a remissão dar se a diz-lhe”
Mas embora houvesse palavras, o significado continuava omisso.
V
Percebo que não me entendas. Não consegues perceber bem esta história da minha mascara, de eu me esconder. Mas diz-me, serei eu assim tão diferente de ti?
Pensa bem…
…ao fim ao cabo eu tenho o meu “eu” bem definido e delineado. E criei deliberadamente uma mascara para o esconder, porque sei que o mundo ia olhar para mim como olhas agora. Com esse misto de piedade e não entendimento, como se eu fosse algo à parte.
Mas…
…e tu?
Tu acordas de manhã e pões uma mascara mesmo antes de sair da cama, sais de casa e pões outra para que fiquem alheios a ti e para ficares alheio ao mundo. Chegas ao trabalho e pões outra, aliás, várias, consoante a pessoa a quem te diriges. Sais do trabalho e usas outra vez a de manhã até chegares a casa. Depois, se tiveres filhos usas uma para eles e outra para a tua cara-metade. Sais à noite e usas outra. Sais para casa de familiares e usas outra…
…são tantas as que usas que acho que te perdes no meio delas e que algumas se te colam
à pele. Saberás tu quem és, na realidade? És uma soma de tudo isso, ou não serás nada disso?
Sabes o que eu acho? Acho que tens medo de olhar para ti, para dentro de ti e descobrires que afinal não és assim tão diferente de mim.
Eu pelo menos sou mais simples, mais honesto, e não tenho medo de me encarar, por isso tira esse olhar da tua face, olha para mim e revê-te. Olha para os teus pensamentos enquanto olhas à volta para a multidão e pensas “Mas que raio faço eu aqui…?”, “Que raio faz toda esta gente aqui…?”
Não te desprezas às vezes por seres apenas mais um dente da engrenagem? Não pensas às vezes o quanto seria interessante seres antes uma pedra para encravar a engrenagem subtilmente? Não o fazes por vezes porque o dia te corre mal e acabas por lixar o juízo a alguém igual a ti?
Quem és tu afinal para me criticar?
Tira esse olhar da tua face. Eu já te desprezo o suficiente. Não tens que te esforçar mais. Mas não me leves a peito. Eu desprezo toda a gente da mesma maneira, por isso…
Assim estamos melhor. Onde é que eu ia?
Published on May 25, 2016 00:23
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