Do 2º

PRÓLOGO
Sentou-se e resolveu, numa atitude inédita até então da sua parte, desistir de tudo!

Só depois parou para pensar no que seria “tudo”. O que é que seria dele na realidade? O conjunto das suas experiências, a tralha que tinha acumulado ao longo de anos e que não servia para nada? As sensações? Os sentimentos? Os afectos?
Afinal de contas, quem seria ele?
Não estaria ele a desistir de algo que desconhecia? E que lógica tinha isso, sendo que aquilo que ele desconhecia era, afinal, ele próprio?

Meditou por momentos.

Levantou-se e dirigiu-se à varanda. Viu as árvores e as pessoas, pequeninas da altura a que as via. O mundo era estranho, visto assim do alto, cheio de criaturas minúsculas que seguem umas atrás das outras com um aparente propósito definido, numa rotina estabelecida, dia após dia. Para que é que servia afinal a nossa suposta inteligência? Seríamos algo mais do que uma quinta de formigas aos olhos de Deus?
Sentia-se desconfortável, e era a primeira vez na sua vida que sentia e pensava neste tipo de desconforto. Não era um desconforto físico, mas antes um desconforto da alma.
Acendeu um cigarro, puxou uma baforada lenta e deixou que os seus pensamentos vagueassem ao sabor dos arabescos que o fumo que expelia dos pulmões fazia no ar.

Desde há algum tempo que sentia este desconforto estranho mas só neste momento se apercebia finalmente disso. Era como se o que via da sua varanda fosse uma sinfonia cheia de melodias e contra melodias, mas, ligando tudo, houvesse apenas uma nota grave, quase inaudível que fazia tudo ressoar. O desconforto era o de saber que essa nota lá estava, mas não a conseguir distinguir, e no entanto senti-la por debaixo de todos os ruídos desta cidade que se estendia até onde o horizonte alcançava e que parecia querer continuar para além dele.
Esta súbita realização fez com que a sua vontade inicial voltasse atrás. Não desistiria, pelo menos, não para já. Havia algo para descobrir que poderia dar ainda um sentido ao que parecia não o ter.

Deixou-se ficar ali enquanto acabava o seu cigarro e o sol baixava no horizonte. Junto com a noite começava a cair uma ligeira humidade. Ele gostava.

Permaneceu em silêncio durante algum tempo enquanto o crepúsculo se extinguia e as luzes da cidade se iam acendendo. Continuava a intuir a rotina, a ordem, os mesmos movimentos, que eram, tais como os seus, repetidos dia após dia, sempre com a mesma cadência imposta por algo de externo, sempre os mesmos ciclos, mês após mês, ano após ano, era após era. Fechou os olhos e deixou que esses ritmos chegassem até si, sentindo-se pulsar junto com eles. Mas continuava a haver algo que não encaixava.
Estava aborrecido, e uma vez que não ia desistir de nada, levantou-se, vestiu uma camisa imaculadamente branca, enfiou-se dentro de um dos seus fatos feitos por medida, vestiu uma capa, porque a noite se adivinhava fria e talvez chuvosa, e enfiou-se no elevador até à cave onde o seu carro o esperava.
Meditou acerca do seu destino no elevador. Ainda não se decidira para onde ir. Só sabia que o seu apartamento lhe parecia claustrofóbico. Precisava de espaço, queria ir à procura daquilo que intuía.
Estava perdido nos seus pensamentos quando a porta do elevador se abriu. Assim que saiu sentiu o ar fresco da cave. Dirigiu-se para o seu carro. Ainda se lembrava do gozo que lhe dera comprá-lo, da sensação de quando lho entregaram à porta do concessionário. Era um carro com personalidade, um Corvette Stingray de 1982, azul meia-noite metalizado. Agora olhava para trás e via a futilidade de tudo aquilo.

Entrou no carro e tomou uma decisão. Uma vez que não havia nada, pelo menos que ele conhecesse, que se parecesse com um restaurante Português por aqui, resolveu ir ao Dan Tana's comer qualquer coisa italiana. Pelo menos teria um sabor mediterrânico, que tanta saudade lhe causava.
O ronronar quase surdo do motor do carro, enquanto ele o deixava aquecer quase lhe causou um torpor de adormecimento. Um leve toque no acelerador fez despertar a besta, e arrancou calmamente, saindo da cave do prédio directamente para uma avenida cheia de confusão. Era como se, de repente, tivesse entrado noutro mundo.
Seguiu calmamente até ao seu destino por entre ruas repletas de aparências. Estava na capital mundial das aparências. Nada aqui era perfeito, mas tudo tinha que parecê-lo. Cada mulher tinha que aparentar ser perfeita, cada homem tinha que aparentar ser charmoso. Mas era tudo tão artificial…
Chegou ao restaurante, entregou a chave do carro ao arrumador junto com uma nota de vinte dólares, e entrou.
- Good evening Mr. Cesar. – Dirigiu-se-lhe o chefe de sala do restaurante solicitamente como de costume.
- Good evening, Tony. – Devolveu ele num inglês carregado com um sotaque britânico impecável. Detestava a maneira descuidada como os americanos falavam, sem estilo e sem requinte.
- Vai desejar a sua mesa do costume?
- Sim, Tony, por favor.
- Com certeza Mr. Cesar. Siga-me, por favor.
Entregou a sua capa a um outro empregado e entrou no salão, seguindo o chefe de sala. Foi levado até uma mesa de canto onde gostava de se sentar e de onde conseguia ver quase todas as mesas.
- Tony, há algum vinho Português? – Perguntou ao mestre de sala.
- Não tenho a certeza, Mr. Cesar. Mas mando-lhe já alguém em seguida.
- Obrigado Tony.
O chefe de sala deixou-o e foi imediatamente rodeado por dois outros empregados com a ementa e a carta de vinhos. Dispensou a ementa, voltando-se para o empregado e pedindo de imediato:
- Quero Spaghetti a la Bolognese e uma salada verde, por favor. – E virando-se para o empregado com a carta de vinho repetiu a pergunta que antes tinha feito ao chefe de sala – Têm algum vinho Português?
- Não tenho de memória, mas posso averiguar.
- Agradeço que o faça.
- Com certeza. – E afastou-se rapidamente.
Ficou só na mesa e apreciou o ambiente à sua volta. Tudo ali parecia querer fazer lembrar Itália, mas de uma forma artificial e falsa, como tudo o resto naquela cidade. E o desconforto não o abandonava.
- Mr. Cesar…
- Sim? – Respondeu ao empregado que o fez emergir dos seus pensamentos.
- Temos um Cartuxa Tinto Reserva de 1995. – Disse o empregado mostrando-lhe a garrafa.
- Pode ser.
O empregado abriu a garrafa e afastou-se, deixando o vinho a respirar.
Algumas pessoas olhavam para ele, a única pessoa sozinha numa mesa, com alguma curiosidade. Ele sabia-se observado mas não dava atenção a isso. Limitava-se a olhar para a rua através da janela e a tentar sacudir as sensações que o invadiam.
Ao fim de algum tempo o empregado voltou e despejou um pouco de vinho no fundo do copo. Agarrou o copo e aproximou-o do nariz, deixando-se invadir pelo aroma suave do vinho, carregado de sugestões de frutos e aromas familiares, levando-o para um lugar que ele tinha deixado há já tanto tempo… De repente parecia que todo o seu ritmo se alterara e teve um vislumbre, e o significado da tal nota tornou-se claro, mas apenas por um instante.
A sua refeição foi finamente servida, com o requinte habitual. Queria desfrutar da sua refeição, mas nesta terra parecia que tudo sabia ao mesmo, tudo era padronizado. A intensidade que ele procurava, não a teria aqui, e a pequena sensação provocada pelo vinho já se desvanecia.
Acabou a refeição, entregou o cartão de crédito para pagar e pediu para levar a garrafa de vinho da qual tinha apenas bebido um copo.
À saída foi-lhe entregue a sua capa e o mestre de sala interpelou-o.
- Mr. Cesar, espero que tudo estivesse do seu agrado.
- Soberbo como sempre, Tony.
- Então o resto de uma boa noite.
- Para ti também, Tony, para ti também.
Saiu e tinha já o seu carro à espera. Entrou. Para onde iria agora? Decidiu que iria até ao Vanguard. Queria ritmo, queria estar rodeado de gente.
Lá chegado foi levado directamente para a área VIP, onde se sentou numa poltrona confortável. Lá em baixo uma mole humana agitava-se ao som altíssimo e ritmado que saía das colunas. A batida forte e constante marcava o ritmo dos corpos que se libertavam assim dos ritmos impostos durante o resto do tempo. Ele entendia este excesso, esta vontade de mudança, mas mesmo esta era, para a maior parte destas pessoas, ritualizada, sendo não mais do que um hábito criado semana após semana. Desceu até à pista, em busca de algo, que não sabia bem o quê. Foi atravessando através dos corpos que se agitavam com uma calma que contrastava e que chamava a atenção.
E foi só aí, no meio de uma multidão em delírios ritmados e alguns mesmo psicogénicos que se apercebeu que estava profundamente só.
Com esta realização veio a vontade de sair dali. A sua presença ali não fazia sentido.

Foi até ao cimo de Mulholland Drive, estacionou no meio de carros cuja humidade nos vidros denunciava claramente o que se passava no interior, voltou a abrir a garrafa de vinho cujo aroma invadiu de imediato o carro, tirou um cigarro de erva perfeitamente enrolado da sua cigarreira de prata e deixou que a sua alma se diluísse no horizonte longínquo enquadrada por todas aquelas filas paralelas de luzes, com o sabor e aroma de memórias que pareciam esquecidas mas que se atreviam agora a voltar com um sentido de urgência e de falta.




I
Sentiu-se ofuscado assim que passou as portas do aeroporto e mergulhou na luz. Já se tinham passado mais de trinta anos e já nem se lembrava da luz única que Lisboa tinha. Só então, banhado na luz e calor daquele dia de Agosto se apercebeu da saudade que tinha. Sentia-se em casa. Chegara.

Dirigiu-se ao primeiro táxi da fila, abriu a porta e sentou-se. Provavelmente muita coisa havia mudado em Portugal, mas os taxistas nem por isso. No rádio ouvia-se fado e, se ele não tivesse a certeza absoluta do ano que era, acharia que ainda estava no início dos anos oitenta. A camisa aberta até à barriga, o fio de prata com um crucifixo, a ampla pelagem hirsuta que saltava da camisa aberta… Se o homem tivesse um bigode, que não tinha, seria o típico estereótipo.
O condutor baixou o volume do rádio e aguardou que ele dissesse qualquer coisa, fosse o que fosse. Ele percebeu a hesitação. Estávamos no aeroporto, e ele tanto podia ser Português como Russo, Italiano, Dinamarquês… Ele pensou se devia arriscar o Português para se dirigir ao taxista. Já não o falava desde que tinha partido. Tinha feito a opção de se tentar afastar de tudo o que o agarrava aqui, e a língua era talvez o mais significativo. Claro que mais de trinta anos sem falar uma língua faz com que quase se tenha de a reaprender. Decidiu não arriscar.
– Sintra, please.
– Yes, sir. – Respondeu o taxista de imediato, arrancando.
Se à saída do aeroporto não tinha visto grandes mudanças, à excepção do próprio aeroporto, tudo o resto parecia exactamente igual e ao mesmo tempo brutalmente diferente. Era estranho o contraste entre a cidade que permanecia imutável a conviver lado a lado com fileiras de prédios novos, na alta da cidade, de gosto algo duvidoso. Lisboa esticava-se até aos seus limites e a cidade que ele deixara, ainda com quintas e com pessoas que criavam as suas galinhas e o seu porquito na sua horta ia desaparecendo para dar lugar à mesma modernidade padronizada da qual ele saíra. Portugal ganhava alguma sofisticação mas ele, curiosamente, perguntava-se se isso seria bom…
Mas depois olhou para o taxista!
“You can take the girl out of the trailer park, but you can’t take the trailer park out of the girl” pensou de si para si e sorriu. A alma lusitana estaria salva enquanto espécimes destes, genuínos, existissem.
A viagem até Sintra decorreu num relativo silêncio entre os dois, tendo como banda sonora um interminável encadeamento de fados enquanto percorriam estradas por entre selvas de betão que existiam onde antes apenas havia quintas a perder de vista.
Chegados finalmente ao destino, numa estrada em plena serra nos limites da vila, pagou, saiu e encarou o imponente portão de bronze oxidado…



II
Introduziu o código no teclado numérico e o portão, para sua surpresa, abriu com suavidade. Esperava, pelo aspecto antigo, ouvir um ranger esforçado, mas não! Abriu quase sem ruído perceptível. Entrou e o portão fechou sozinho atrás de si.
Olhou para a mansão. As fotografias que tinha visto não faziam justiça à imponência frondosa do mármore trabalhado. Toda a frente, pelo menos, fazia lembrar uma catedral manuelina em miniatura, cheia de motivos e simbolismos que não lhe interessava agora deslindar. Apenas se sentia cansado da viagem e queria descansar um pouco.
Enquanto se dirigia à porta, esta abriu-se e de dentro da casa saiu um indivíduo que, à primeira vista, quase o divertiu…
Baixo, com um fato claramente de pronto a vestir que não lhe assentava muito bem, gordo para além do razoável, uns óculos enormes com lentes que pareciam ter saído do fundo de uma garrafa de refrigerante, profusamente suado… O homem parecia ainda mais uma caricatura ao vivo do que nas fotos que tinha visto.
- Sr. César? – Perguntou.
- Sim!
- Victor Antunes. É uma honra conhecê-lo finalmente em pessoa. Cumprimentaram-se com um aperto de mão não muito firme, cumprindo uma mera formalidade.
- Espero que tenha tratado de tudo…
Está tudo conforme especificou. O carro está na garagem e já está legalizado, tem o seu escritório todo montado, amanhã apresentar-se-ão aqui a sua secretária pessoal, que eu escolhi pessoalmente conforme as indicações que me deu, e o restante staff da casa.
- Muito bem! Presumo então que hoje tenha a casa toda para mim.
- É correcto. Estará completamente só. Quer que eu lhe mostre a casa?
- Não há necessidade. Eu… – a sua falta de vocabulário fazia-se sentir – …i’ll get my bearings! Pode retirar-se.
O homem tirou um envelope do bolso e entregou-lho.
- Só hoje de manhã é que o alarme foi instalado. Estes são os códigos. As suas roupas já estão arrumadas no roupeiro do seu quarto, no segundo andar. Espero que fique agradado.
César limitou-se a assentir com a cabeça e o homenzinho retirou-se de imediato, dirigindo-se ao portão e saindo.
Sabia-lhe bem o ar puro e fresco à sua volta, por isso hesitou em entrar, mas acabou por fazê-lo.
O interior, para seu desapontamento, parecia um museu. Os móveis respiravam a antiguidade da casa e não se surpreenderia se, de repente, se materializasse à sua frente um qualquer personagem de finais do século XIX. Tudo o que via parecia ser tão antigo que estaria certamente carregado com as histórias e as recordações de alguém… Só que esse alguém não era ele!
“Well, we have to change this!” anotou ele mentalmente. Tinha-se habituado a um requinte moderno que não casava bem com o peso de séculos de história. Tinha noção do quanto todos aqueles objectos deviam ser valiosos, mas estava habituado o olhar para a frente. Aquele era um passado, sem dúvida, mas não era o seu.
Subiu lentamente as enormes e pesadas escadas de mármore com os degraus gastos pelos passos das incontáveis pessoas que por ali tinham passado, subindo depois outras de madeira que o levavam ao quarto.
O quarto era enorme, desnecessariamente enorme, com uma cama de dossel que daria facilmente para quatro pessoas. O quarto respirava à mesma antiguidade do resto da casa.
Pousou a pequena mala de mão que trazia num cadeirão, tirou o telemóvel de dentro do bolso do casaco e marcou um número.
- Sr. César, precisa de alguma coisa? – Ouviu em resposta quase de imediato de Victor.
- Para hoje não. Quero que comece, amanhã, a preparar um leilão de todo o recheio desta casa. Todo o lucro deverá ser doado a uma instituição de caridade que lhe direi depois. Mas pode começar os preparativos.
- Com certeza. Deseja mais alguma coisa?
- Não, é tudo. - E desligou.
Depois, dirigiu-se à varanda do quarto, abriu as portas, saiu, respirou fundo e deixou-se mergulhar na paisagem deslumbrante carregada de um verde inebriante…


III

Acordou sobressaltado e desorientado, sentando-se de imediato na cama. Um cheiro estranho invadia-lhe as narinas.
Só depois percebeu que era o cheiro do verde intenso do ar puro da serra de Sintra.
Localizou-se, acalmou. Olhou para o relógio no telemóvel 3:30 da manhã!
- Damn jet lag…
Levantou-se, dirigiu-se à casa de banho, tomou um duche, cuidou da barba, vestiu-se, dirigiu-se à garagem, e, uma vez que ainda não tinha comando, digitou o código que fez o mecanismo automático elevar a porta.
Já tinha saudades da sua besta devoradora de milhas e combustível, e observou o seu tom de azul reflectido pelas lâmpadas e apenas estranhou a matrícula portuguesa.
Abriu a porta, sentou-se e deu à ignição, fazendo a fera rugir. Depois retirou-o da garagem, cuja porta começou a fechar automaticamente, e apontou a frente ao portão que abriu com a suavidade que o surpreendia.
Desceu a serra com algum cuidado. Sabia perfeitamente bem que este carro não tinha sido feito para andar em percursos sinuosos, e que à mínima distracção o faria pagar caro o erro. Mas era isto que ele adorava nesta máquina, o desafio constante, o ter a noção de estar a domar o indomável.
Saiu da vila em direcção a Cascais, e apanhou a auto-estrada para Lisboa. Sabia perfeitamente que as estradas não eram tão vigiadas como as dos Estados Unidos, por isso, logo que passou as portagens, e pela primeira vez em muitos anos, soltou por completo a fera.
O carro, agradecido, rugiu como se estivesse deliciado, contido há demasiado tempo, lançou-se ao asfalto com fúria, e a paisagem, para ele tornou-se apenas uma mancha indistinta enquanto se concentrava em manter o animal colado ao asfalto.
Apenas levantou o pé ao começar a descer o Monsanto com as torres das Amoreiras à vista.


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Published on May 24, 2016 01:44
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