Zander Catta Preta's Blog: A casa do Zander, page 3

November 17, 2020

Ouros

Image for post

Acorda. Escova os dentes encarando alguém inchado. Não se lembra da origem daquela cicatriz na sobrancelha. Foi na infância, né? Uma pedrada do moleque da Casa 3. Ouviu dizer que ele morreu há pouco tempo. O tempo cobra caro no corpo da gente. Cospe a espuma. Se lembra que a espuma dos sabonetes e detergentes era desnecessária; era mais um agente psicológico para que sentíssemos a limpeza. Pensa se o mesmo se dá com a pasta de dente e lembra que as propagandas mostram as pessoas cobrindo as escovas de dente com pasta, sendo que apenas um tiquinho é necessário. Lembra também que um marqueteiro, um dos caras de produção industrial do meio do século vinte, aumentou em não sei quantos porcentos a demanda de pasta apenas aumentando o diâmetro da boca do tubo em um milímetro.

Vai pro quarto ainda pelado e pingando do banho e do auto-amor diário e veste o uniforme: jeans e camisa social. Lembra que o jeans foi feito para os mineiros no oeste estadunidense. Era para durar anos. O dele estava com a bainha puída e achava bonita. Pagou mais caro por isso, claro. Olhou para a gravata e pro costume (terno, calça social) e lembra que faz anos que não se veste “socialmente”. Desde a pandemia de 2020, acha. Ainda mantém na arara do quarto para se lembrar que não é um peão. Non ducor, duco.

Namorada chama no celular. Agendam o encontro para o dia seguinte. Ele reclama da rede da casa dela, ela reclama dele. Ele pensa em comprar algo para ela. Talvez faça um jantar. Lembra dos tempos em que suas habilidades culinárias eram seu principal agente de sedução. Hoje, servem apenas para evitar que seu medo de ficar só e sua tendência autodestrutiva afaste mais uma pessoa maravilhosa da sua vida. É válido.

Vai para sua estação de trabalho. O computador acorda — nunca se desliga um computador — e ele já conecta no ambiente de trabalho. Os e-mails numa tela, os monitores de resultado noutra, a sala de chat na terceira, pornografia e notícias na quarta. Três horas de produção improdutiva depois, é hora de comer algo. Pede frutas, queijos e um animal sintético grelhado. Ou um vegetal que faça as vezes do animal sintético. Tanto faz. Lembra de quando trabalhou num mercado e disse que as compras online seriam a “próxima coqueluche”. Todos riam. Os custos logísticos, a distribuição, o tamanho da perna do Cláudio do quarto andar, tudo era motivo para não fazerem. Falou que era só deixarem de ser preguiçosos e começarem a trabalhar que a coisa vira. Foi demitido. Faz parte.

Olha para ver o que vai ser reciclado, o que irá para a compostagem e o que irá destruir o mundo agora mesmo. Separa, reduz, recicla. Bobagem. Verões de 55.º no Rio de Janeiro, Islândia sem geleiras e seca generalizada no Centro-Oeste já são os sinais. Tínhamos que ter parado antes. Antes das gravatas. Antes de canalizarmos os rios que dão nomes às ruas que moramos. Antes de decidirmos que números e as palavras valeriam mais que as pessoas e as coisas ao nosso entorno. Antes de pararmos de enxergar os deuses nas coisas e respeitá-las.

Liga para a amiga e diz que a namorada não virá hoje. Ela pode pernoitar lá. Senta na poltrona e liga a TV. Programa um filme desnecessário com pessoas de armadura e poderes fantásticos. Não assiste. Olha para os livros empilhados nas estantes e pensa em quanto gastou ali. Sorriu.

Image for post#estacaoblogagem #ouros
 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on November 17, 2020 08:37

November 14, 2020

Espadas

Image for post

O tema era a Verdade. Aquela, aristotélica, com V maiúsculo.

Metade do círculo era cínica, não aceitava a Verdade Absoluta. A mente não lidaria com a Verdade Verdadeira, a única, total e poderosa; a língua era uma redução, um simulacro, uma mimetização, uma interpretação do todo. O Sol não se manifestava por inteiro na palavra e nos seus signos, nem a Lua, nem os Deuses. Esses eram apenas subterfúgios para que a gente entendesse o mundo ao redor. Desenhavam-se os signos nas paredes, nos megálitos e nos corpos de sacrifício, mas esses sábios sabiam que isto era parte da coisa, nunca a coisa por inteiro. Eram abertos à mudança, à diferença e à forma que “o outro” se refere às mesmas coisas. Tudo é aspecto do Todo.

A outra metade era gnóstica. A forma era a Verdade. Ela se manifestava através da dedicação, do estudo, da entrega e da prática. E há um método, uma rota e uma tradição para se trilhar. A manifestação do todo se dava por seus símbolos e não havia distância entre a Palavra e o Ser. O que é, faz-se manifesto na sua totalidade a cada frase, a cada sentença, porque tudo é da origem do Todo, tudo é Divino e Maravilhoso. A inspiração do novo era a manifestação dos Deuses ou das Musas, ou do alinhamento do Cosmos, nunca do indivíduo ou de sua dedicação. As mudanças vinham no compasso da epifania da tribo. Eram abertos à arte, aos louvores e ao gozo. Tudo é o Todo.

Uma terceira metade era romântica. Essa morria de tuberculose antes de terminar o pensamento. Eram abertos aos fins, aos ciclos e ao amor ao destino.

Outra metade era cientificista. A Verdade precisava ser comprovada e era atingível por tentativa e erro dentro de um paradigma. Quando esse paradigma se tornava obsoleto, um novo era proposto e colocado à prova. Os egos se digladiavam e guerreavam com palavras, números e ideias. O combate era contínuo e intenso: o universo contra quem pensa; a vida é um mistério que precisa ser conhecido, desmistificado e vivenciado. A boa luta começava por entender que não se conhece o adversário e o Todo é o alvo a ser atingido. Eram abertos às críticas na aparência, mas defendiam seus saberes com a força do ego e o ódio de quem tem a alma despedaçada.

E a última metade era de pessoas que só queriam comer um pedaço do animal morto e cozido na fogueira. Eram a maior metade e olhavam com fome para as coxas e barrigas dos demais sempre que a caçada era fraca.

Gradualmente a fogueira apagava, as histórias iam esfriando na mente e o céu brilhava indiferente às metades do homem que ali sentava sozinho.

Image for post#estacaoblogagem #espadas
 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on November 14, 2020 03:36

November 7, 2020

Paus

A gente conversava sobre fúria. Sobre ódio mesmo. Ele chegava e dizia que não valia a pena odiar qualquer coisa. É muita energia, muita força para desperdiçar com mesquinharias. Daí criticava quem odiava o novo layout de uma rede social, odiava o sabor de um doce ou de uma fruta. Odiar a chuva? Bobagem, é inevitável e fundamental. Odiar o Sol? Estupidez, ele está lá indiferente ao ódio. Odiar uma viagem? Que imbecilidade, ela pode ser evitada ou apreciada, inútil odiá-la; ela já está a acontecer.

A gente conversava sobre ódio e ele ia desfiando os motivos pelos quais a gente não deveria odiar as coisas pequenas, aquelas que não são possíveis de serem mudadas ou que são apenas resumo do nosso ego; “o ódio é a redução do ego magoado”, dizia ele. E emendava no que valia a pena odiar, segundo ele. Claro que cada um podia escolher algo diferente, o ódio é pessoal, mas ele enfatizava que deveria ser algo ligado a um valor maior.

O ódio, dizia ele, era para ser motor. Motor de transformação e revolução. Revolução de voltas, de RPM, de rodar o mundo. O ódio tinha que ser uma canga para puxar em direção a uma ideia, para cavar o solo e plantar bons frutos, para carregar boas pessoas para bons lugares, para levar os bons frutos para quem precisa. O ódio precisa de uma causa.

Daí essa fúria tinha que ser bem estudadinha, bem decantada. Como nitroglicerina, deveria mover muito e rapidamente com pouco. Pouco porque foi bem trabalhada. Bem trabalhada porque não era mesquinha. Porque há causas e causas; há aquelas que movem o mundo e há aquelas que fazem o mundo continuar sendo o que é. Para essas causas, basta a frieza da indiferença.

Além disso, ódio mesquinho, das coisas impensadas, faz você colocar outras coisas na carroça. Ideias que não são suas, pessoas que você não sabe se são boas. O solo deixa de ser arado e passa a ser queimado, carcomido. Não dá mais frutos. O ódio mesquinho faz a gente se perder nos detalhes e se rasgar enquanto o rio passa e carrega as tragédias do seu lado. Te faz arrancar os olhos e os teus filhos passam a lutar entre si. Nem enterrar os teus queridos tu consegues, porque ficas a odiar o pequeno, o ínfimo, o que não foi decantado.

Ele contava e a gente pensava: “Que papo mais moralista. Quer dizer que tem um ‘certo’ e um ‘errado’ para o que queremos fazer na vida?” Ele dizia que sim. Mas não é um ‘certo’ místico ou um certo ‘moralista’. É uma certa Moral. É pensar para o todo. A Moral é exógena, afinal de contas. É o que o coletivo precisa para funcionar bem, harmonicamente. E a Moral corrente, quando deixa de atender à sociedade, precisa ser mudada, ser moldada na força do ódio. Quase que literalmente.

“Quer dizer que o ódio é uma força que deve ser usada para mudar os valores morais?” Aí ele falava, tranquilamente: “Sim. É para isso que ele serve. Odeio a exclusão, a disparidade social, a injustiça, a falta de abrigo a quem precisa, a falta de futuro, a remoção da voz, a remoção do pensamento. Esses são meus ódios. E os seus?”

A gente conversava sobre fúria e mal abria a boca. Nos entendíamos de olhos abertos, braços entrelaçados, nus e suados. E planejávamos o fim do mundo como quem arava um campo fértil.

 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on November 07, 2020 05:17

June 23, 2020

Rotina

Como decorar o corredor principal de casa.1

Alguém bate na porta três vezes e olho pelo visor. Deve ter sido impressão minha ou ando ouvido coisas. Ou ambos. Aproveito para lavar as louças ao passar pela cozinha. Quatro pratos. Quatro jogos de talheres. Quatro… não: cinco copos. O fogão continua sujo. Amanhã eu limpo. O gato passa por mim e me arranha. Preciso trocar a areia dele. Preciso comprar comida. Volto para a sala e a mesa está arrumada. Mal arrumada, claro. A casa, vazia. Apago as luzes. Cama.

2

Três batidas na porta. Leves. Como se alguém quisesse chegar junto. Abro a porta sem olhar pelo visor. Ele está do outro lado do corredor. Sentado. Encocorado e encostado na parede. Mal olha para mim, mas sabe que estou ali e que abri a porta. Vejo a pia da cozinha. Aproveito para lavar as louças. Quatro jogos de talheres. Cinco copos. O fogão sujo que será limpo amanhã. O gato passa por mim e me arranha. Preciso trocar a areia para ele. Preciso comprar comida. Há quanto tempo não troco? A sala continua vazia e a mesa, mal arrumada. Apago as luzes. Vou pra cama.

3

As batidas na porta. Três. Tem alguém ali. Abro a porta e o senhor está do outro lado. Ele me olha dessa vez. Me reconhece. Eu não. Sabe que estou ali. Pego o lixo e passo por ele. Volto para casa. Ele ainda me encara. Fecho a porta. Olho pelo visor. Ele não está mais lá.  Entro na cozinha. As louças me esperam para serem lavadas. Também os talheres. E os copos. O fogão continua sujo (é ferrugem aquilo?). O gato passa por mim e me arranha forte. Preciso trocar a areia. Cadê comida do bicho? A sala continua vazia, vazia e a mesa sem ser posta. Apago as luzes. Vou pra cama.

4

Abro a porta antes das batidas. Ele está lá. Me olha. Me encara. Fala.

— Toda memória é um fantasma.

Não reconheço a frase. Pego o lixo e coloco no depósito do corredor. Olho em volta. As paredes não me reconhecem. Nem eu a elas. Só me lembro da porta, da cozinha, dos pratos, dos talheres, dos copos, da mesa posta, do gato que arranha e que está morto, da sala vazia e da mesa abandonada. Volto pra casa. Vejo a cozinha. Os pratos, os talheres, os copos e o fogão me aguardam. O gato quer me arranhar. Ele arranhou muito, muitíssimo, mas parou. O fogão sujou com a gordura dele, com a água que transbordava. Doze meses trancados. Só havia a casa, o velho e o gato. O gato arranhou muitíssimo. Era o último deles. O velho foi o próximo. Os pratos ficavam mais difíceis de serem limpos. Os copos cada vez mais vermelhos e dificílimos de serem lavados. A mesa já abandonada. Os outros três (quem eram, minha gente? quem eram?) também. Cadê a comida? Seis meses? seis anos? quanto tempo levou? A gente não via mais a rua. A gente? Eu não via mais a rua. Só a porta, a cozinha, a cama e a sala vazia. Apago a luz. Cama.

5

Três batidas.

 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on June 23, 2020 06:03

May 12, 2020

Você não é importante (para sua empresa)

The yellow brick road

Dois casos recentes me fizeram (re)pensar um conceito que há muito tempo cozinho em banho maria no backlog da minha mente. São opiniões baseadas em observações e algum estudo factual, mas que nunca apliquei um método de controle ou de quantificação mais científico. Logo, podem arquivar esse texto como “opinião de merda” ou apenas “opinião” (é a mesma coisa).

O primeiro caso.

Uma conhecida veio conversar comigo após comunicar que iria se desligar da empresa onde trabalha em meio a pandemia. Estava fazendo processos seletivos há um tempo e finalmente chegou a um acordo numa proposta de trabalho boa e numa empresa da qual tenho opiniões diferentes que as dela (ela gosta, eu não e espero sinceramente que esteja errado e que ela seja feliz no novo trabalho).

O tópico do nosso papo foi que o ambiente em que trabalhamos não estava mais a animando a tocar o dia-a-dia. Pior: quando algo acontecia, quando os chefes a chamavam para avisar alguma coisa, ela entrava em modo de pânico (ou de “deu merda e a culpa é minha”), mesmo sem necessidade. Esse é o primeiro sinal de que está na hora de pular fora. Quando a festa toca as música que te fazem ficar down e a pessoa que você está a fim está trocando saliva com outra, melhor caçar o rumo de casa.

Mas o que me chamou a atenção nem foi a decisão dela em si. Isto pode acontecer com qualquer um (comigo, mais de uma vez), só que o discurso veio acompanhado de uma ressignificação da carreira, do projeto profissional, da visão que ela tem de mercado e de como se coloca dentro dele. Mais importante que isso, ela admite que pode estar fazendo uma besteira, uma “burrice”, mas que vale a pena correr o risco.

Hm. Sei.

O segundo caso.

Em março me apliquei para um novo projeto dentro da firma. Por uma série de motivos, gosto de inventar moda quando estou “confortável” dentro de uma empresa e esse novo desafio veio como uma luva para a minha personalidade e visão de negócio (dentro do escopo da empresa, claro). Mas isto não interessa. O fato fui aprovado e que precisava arrumar alguém que ficasse no meu lugar. Big Boss não topou que eu coordenasse os dois projetos ao mesmo tempo (ufa!).

Dei a letra pro meu superior imediato que o ideal seria pegar gente de dentro da empresa, de outras áreas, para renovar o sangue da equipe e trazer a inteligência de fluxos e funcionamentos para o time. A (des)educação em termos de pensar em produto, rotinas de projetos de Scrum e Métodos Ágeis ficariam comigo. Me ofereci para ficar uns dois meses fazendo shadowing, handover, coaching ou qualquer outra babaquice do momento que signifique treinamento. Mais importante que os métodos e os modelos de pensamento é o entendimento do produto, da função que a área desempenha para dentro e fora da empresa. Isso achata BASTANTE a curva de aprendizado. E os vícios corporativos a gente resolve na base do pescotapa. Com amor, claro.

Jogo combinado, fui conversar com a pessoa e ela me revelou que estava em dúvida. Gostou demais da proposta, mas acabara de receber outra dentro da mesma área, com a mesma chefe. Uma promoção, seria dito nos meus tempos de jovem gafanhoto, mas agora é um “desafio”. Isto fez bastante sentido. Deslealdade é algo que me enfurece sobremaneira e a pessoa não é do tipo que sacaneia o chefe por quinhentos dinheiros a mais. Não à toa que escolhi a pessoa para ficar no meu lugar (tem mais duas outras pessoas na fila, mas isso também não vem ao caso).

Dai fui falar com a chefia imediata, avisar que estava cantando a pessoa para o meu cargo e tal, e foi momento de queixo caído. A chefia me disse que já tinha conversado com ela, aberto o jogo e combinado tudo. Se a pessoa quisesse trocar de área, beleza; se quisesse continuar, idem. Falou das vantagens de virar Product Manager (financeiras, inclusive) e não vendeu o peixe dela.

Hm. Será?

As empresas cagam para você; as pessoas, não.

Algumas das empresas mais promissoras do mercado (Uber, Stone, Airbnb) anunciaram recentemente que estão demitindo de 15% a 25% do corpo de funcionários. Empresas cujo discurso de Human Capital era a da valorização do funcionário, que eram o principal asset da companhia; que seguiam a máxima da “laranja podre” é inaceitável dentro do quadro de colaboradores, que investir em material humano é o melhor investimento.

Só que na hora que o sapato aperta, descarta-se esse “melhor investimento”.

Não digo que tenha sido um processo indolor. Já passei por uma demissão em massa na Bloch Editores e me foi extremamente sofrido escolher quem ficaria e quem iria ser demitido (com a perspectiva da empresa ser fechada em dois, três meses à frente). Mas a Bloch era uma empresa que nem sequer comunicava o motivo da demissão ao funcionário: ele simplesmente não encontrava o cartão de ponto na entrada e já sabia que estava fora, passando direto no RH.

O Airbnb publicou até carta de intenções de comos e porquês das demissões, sobre o processo decisórios e das incertezas do mercado para os anos à frente (o que é uma baita coragem, pois o bicho que mais tem medo de incerteza é o tal do executivo). Ainda assim, 1.700 pessoas perderam seus postos de trabalho.

Duas das grandes empresas para quem trabalhei faziam uma “lavagem cerebral” nos funcionários. Numa delas tinha até musiquinha para cantarmos todos juntos, abraçados, na primeira hora do expediente. Mesmo discurso: você é importante, você é importante, você é o último biscoito do pacote. Claro que as duas fecharam as portas para centenas de pessoas sem pestanejar e quando a operação deixou de ser tão lucrativa (apesar de margens absurdas de “royalties” para bancar a matriz gringa deficitária não ajudarem em nada na margem final de uma delas), fecharam as portas.

Funcionário é o maior valor da empresa? Balela.

O fato é que as empresas ainda encaram os funcionários como despesa. As reclamações com a CLT, em grande parte, passam por aí. Não é um dinheiro que o funcionário deixaria de ganhar, mas que as empresas economizariam. Despesa, custo e nunca um investimento.

“Ain, Zander. Quer dizer que as empresas devem ter prejuízo só para manter o quadro de funcionários, é?” Não disse isso. Mas não disse o contrário. Num outro texto e numa outra discussão, tergiversei sobre a essência das empresas, do que elas fazem, da sua função social (e econômica, claro!) e de seus propósitos. No momento em que tudo vira dinheiro, até mesmo o discurso é medido em cifras. Na real, até acho que cortes podem ser necessários, mas sempre que se demite alguém, perde-se dinheiro na cadeia inteira. Perde-se no processo de contratação, no custo de oportunidade, na capacidade produtiva e em memória e histórico. Claro que ninguém é inamovível e às vezes é melhor cortar o tronco ao invés de deixar a árvore apodrecer, mas não é disso de que estamos falando e vendo, né?

Só que no outro lado da moeda tem os laços que fazemos nas empresas. A Stone mandou embora uma leva de funcionários que já estarão sendo seduzidos na empresa onde trabalho (acho!); Uber mandou outros, tem uma turma em São Paulo que já está de olho nos profissionais; a Oi demitiu quase todo o quadro da Oi Internet (sdds!!!) e a Claro fez nhac!, contratou quase todo mundo. Eram pessoas com experiência, já trabalhavam em grupo naturalmente, já se conheciam e tinham suas dinâmicas bem resolvidas. Se olhavam com brilho nos olhos todos os dias.

Pessoas contratam pessoas; empresas demitem pessoas.

Millenials sacaram essa dinâmica melhor que todo mundo

“Mas Zander, o que isso tem a ver com os dois casos que você apresentou?” Bom, se você não sacou o lé-com-cré e os títulos, vou ter que explicar tudo (e a culpa é minha! a culpa do entendimento da mensagem é sempre do emissor!).

Nos dois casos, as pessoas estão entendendo que não é a escada corporativa que importa, mas os laços que se montam para tecer uma rede de amparo empregatício (já que os oficiais estão se dissolvendo gradualmente). No primeiro caso, a pessoa se arrisca no meio de uma crise única nos últimos cem anos num salto de fé para uma empresa de reputação discutível (na minha humilde opinião, sempre!); e faz isso por conta de um valor incalculável: o ambiente, o clima de trabalho.

Já fui trabalhar em empresas pensando em me matar no meio do caminho. Em parte porque tinha contas (e pensões alimentícias) a pagar, mas também porque entendia que “as coisas são assim mesmo” e que “melhor procurar emprego empregado que desempregado”. Ainda penso assim, infelizmente. Não tenho o viço dos vinte e poucos anos para fazer esse salto lépido no vácuo e esperar que o universo (ou a família) me ampare. Mas a minha geração também ia ao mesmo compasso. Um ou outro é que se arremessava e arriscava algo diferente. E, mesmo assim, com muito planejamento.

No segundo caso, o valor que faz a balança ficar pendente para a pessoa é o do futuro. A aposta é do curto-médio versus médio-longo. Aceitando a minha proposta, a pessoa entra no seleto grupo de “profissionais que têm um título da moda”; no outro, é um investimento num conhecimento de especialização que é mais perene. Do alto da minha montanha de cinquenta anos, vejo mais interseções que paralelismo nas duas opções de carreira, mas entendo o dilema da pessoa.

Minha geração via a carreira como uma escada e um Battle Royale corporativo. Só pode restar um na firma, e cada um por si para pegar a gerência, a diretoria, a presidência. Falhou? tente se recolocar em outra empresa, de menor porte, mas num status melhor. Poucos saíam para se arriscar em algo novo. Empreendedorismo? Bullshit de crise dos 40.

***

As carreiras (no plural mesmo) de uma pessoa são parte componente da sua história. Nos encontros de aplicativo, uma das primeiras perguntas é: “o que você faz da vida?” Tem gente que se irrita com isso, mas é relevante demais da conta. As histórias que essas pessoas têm para contar são diretamente originadas de suas rotinas diuturnas. Há os filhos, os bichos, as viagens, os livros, os filmes, as músicas, as comidas e bebidas, claro, mas boa parte do seu dia é naquela experiência que chamamos Trabalho.

E os Millenials enxergam que a escolha desse trabalho é o importante, que é o fundamental.

Hm.

 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on May 12, 2020 21:25

February 10, 2020

Oração noturna

Com Deus me deito, com Deus me levanto, com a graça de Deus e o divino Espírito Santo.

Deito e vem vontade de escrever. A vontade que fugiu o dia inteiro. Dia que ocupei com sono, trabalho, comida; com tudo aquilo que me fazia fugir do texto. Quando escrevo, independente do dia, transbordo de mim aquilo que não é aceitável na rua, na baia, no palco das interações sociais.

Deito e vem uma vontade de escrever. A vontade que é difícil de se manifestar por conta das rotinas, das obrigações, do barulho que entorpece minha mente. São as pessoas, as informações, os entretenimentos, as notícias que eu não posso deixar de ignorar.

Deito e vem a vontade de escrever. É a mesma vontade que tenho, durante o dia, de chorar, de berrar, de matar e de morrer, principalmente. O sono distrai minha razão, meu controle, minhas drogas. Libera a vontade de “fazer arte”.

Só que durmo. Infinitamente, durmo.

Amém.

 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on February 10, 2020 08:45

A casa do Zander

Zander Catta Preta
Pensamentos esparsos de uma mente desconexa
Follow Zander Catta Preta's blog with rss.