Ouros

Image for post

Acorda. Escova os dentes encarando alguém inchado. Não se lembra da origem daquela cicatriz na sobrancelha. Foi na infância, né? Uma pedrada do moleque da Casa 3. Ouviu dizer que ele morreu há pouco tempo. O tempo cobra caro no corpo da gente. Cospe a espuma. Se lembra que a espuma dos sabonetes e detergentes era desnecessária; era mais um agente psicológico para que sentíssemos a limpeza. Pensa se o mesmo se dá com a pasta de dente e lembra que as propagandas mostram as pessoas cobrindo as escovas de dente com pasta, sendo que apenas um tiquinho é necessário. Lembra também que um marqueteiro, um dos caras de produção industrial do meio do século vinte, aumentou em não sei quantos porcentos a demanda de pasta apenas aumentando o diâmetro da boca do tubo em um milímetro.

Vai pro quarto ainda pelado e pingando do banho e do auto-amor diário e veste o uniforme: jeans e camisa social. Lembra que o jeans foi feito para os mineiros no oeste estadunidense. Era para durar anos. O dele estava com a bainha puída e achava bonita. Pagou mais caro por isso, claro. Olhou para a gravata e pro costume (terno, calça social) e lembra que faz anos que não se veste “socialmente”. Desde a pandemia de 2020, acha. Ainda mantém na arara do quarto para se lembrar que não é um peão. Non ducor, duco.

Namorada chama no celular. Agendam o encontro para o dia seguinte. Ele reclama da rede da casa dela, ela reclama dele. Ele pensa em comprar algo para ela. Talvez faça um jantar. Lembra dos tempos em que suas habilidades culinárias eram seu principal agente de sedução. Hoje, servem apenas para evitar que seu medo de ficar só e sua tendência autodestrutiva afaste mais uma pessoa maravilhosa da sua vida. É válido.

Vai para sua estação de trabalho. O computador acorda — nunca se desliga um computador — e ele já conecta no ambiente de trabalho. Os e-mails numa tela, os monitores de resultado noutra, a sala de chat na terceira, pornografia e notícias na quarta. Três horas de produção improdutiva depois, é hora de comer algo. Pede frutas, queijos e um animal sintético grelhado. Ou um vegetal que faça as vezes do animal sintético. Tanto faz. Lembra de quando trabalhou num mercado e disse que as compras online seriam a “próxima coqueluche”. Todos riam. Os custos logísticos, a distribuição, o tamanho da perna do Cláudio do quarto andar, tudo era motivo para não fazerem. Falou que era só deixarem de ser preguiçosos e começarem a trabalhar que a coisa vira. Foi demitido. Faz parte.

Olha para ver o que vai ser reciclado, o que irá para a compostagem e o que irá destruir o mundo agora mesmo. Separa, reduz, recicla. Bobagem. Verões de 55.º no Rio de Janeiro, Islândia sem geleiras e seca generalizada no Centro-Oeste já são os sinais. Tínhamos que ter parado antes. Antes das gravatas. Antes de canalizarmos os rios que dão nomes às ruas que moramos. Antes de decidirmos que números e as palavras valeriam mais que as pessoas e as coisas ao nosso entorno. Antes de pararmos de enxergar os deuses nas coisas e respeitá-las.

Liga para a amiga e diz que a namorada não virá hoje. Ela pode pernoitar lá. Senta na poltrona e liga a TV. Programa um filme desnecessário com pessoas de armadura e poderes fantásticos. Não assiste. Olha para os livros empilhados nas estantes e pensa em quanto gastou ali. Sorriu.

Image for post#estacaoblogagem #ouros
 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on November 17, 2020 08:37
No comments have been added yet.


A casa do Zander

Zander Catta Preta
Pensamentos esparsos de uma mente desconexa
Follow Zander Catta Preta's blog with rss.