André Benjamim's Blog, page 25
August 3, 2014
To be or not to be - e uma cama para adormecer e não mais acordar - that is the question.
To be, or not to be - that is the question;
Whether 'tis nobler in the mind to suffer
The slings and arrows of outrageous fortune
Or to take arms against a sea of troubles
And by opposing end them. To die, to sleep -
No more - and by a sleep to say we end
The heartache and the thousand natural shocks
That flesh is heir to. 'Tis a consummation
Devoutly to be wished. To die, to sleep -
To sleep - perchance to dream. Ay, there's the rub.
For in that sleep of death what dreams may come
When we have shuffled off this mortal coil
Must give us pause. There's the respect
That makes calamity of so long life.
For who would bear the whips and scorns of time,
Th'oppressor's wrong, the proud man's contumely,
The pangs of despised love, the law's delay,
The insolence of office, and the spurns
That patient merit of th'unworthy takes,
When he himself might his quietus make
With a bare bodkin? Who would fardels bear,
To grunt and sweat under a weary life,
But that the dread of something after death,
The undiscovered country, from whose bourn
No traveller returns, puzzles the will,
And makes us rather bear those ills we have
Than fly to others that we know not of?
Thus conscience does make cowards of us all;
And thus the native hue of resolution
Is sicklied o'er with the pale cast of thought,
And enterprises of great pitch and moment
With this regard their currents turn awry,
And lose the name of action. Soft you now,
The fair Ophelia! - Nymph, in thy orisons
Be all my sins rememberd.
Hamlet , William Shakespeare. Tradução para Português, em prosa, aqui. Quase parece belo o tempo em que comprava Hamlet por 1040$00. Mas não convém cair em ilusões. O muito mau, terrível, faze-nos parecer tolerável o apenas mau; mas não o é...
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July 31, 2014
A legalidade da autoridade...
Beija Mão a Dom João VI de Portugal, no BrasilQuando a autoridade perde o seu carácter de legalidade, o ilegal não é aquele que contra ela se volta, mas sim aquele que a ela se curva.
Rubem Fonseca, em Agosto .
Neste país de curvados, bem pode a autoridade não ter carácter nenhum...
Curvas, contracurvas, curvas, contracurvas, curvas, contracurvas, curvas, contracurvas, e curvados.
O meu avô, se hoje fosse vivo, teria 119 anos (calma, não sou assim tão velho, ele tinha já 60 anos quando o meu pai nasceu); lembrei-me dele (na verdade não me lembrei dele, uma vez que nem sequer o conheci, pois morreu 6 anos antes de eu nascer) nestes últimos dias, pois "celebra-se" (celebração não deve ser com certeza o termo mais adequado) o centésimo aniversário do início da Grande Guerra (agora conhecida como I Guerra Mundial - na verdade, terá sido a segunda, e a segunda terá sido a terceira). Pode não parecer, mas tudo neste post está ligado - pelo menos na minha cabeça, que - em abono da verdade - não anda nada bem - ou, a melhor da verdade, nem é a cabeça que não anda bem, é a vida: mas no caso vai dar ao mesmo... (Vou acabar a leitura atrasada de Agosto e começar A Emparedada da Rua Nova , de Carneiro Vilela). Não o disse explicitamente atrás, mas julgo que compreendem implicitamente que o meu avô esteve na Grande Guerra. Tenho saüdades de quando a vida tinha algum sentido - e o trëma ainda não tinha sido abolido da Língua Portugueza. Orthographia, pode não ser tão fácil, mas é muito mais bonito.
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July 27, 2014
Tsundoku
Um prémio para quem adivinhar os títulos todos...Tsundoku (a nova palavra a caminho do dicionário de inglês), acto de comprar livros e não os ler, deixando-os acumular em pilhas, nas estantes, mesas, mesinhas de cabeceira, corredores, seja lá onde for. Também tenho pilhas de livros, não porque não os leia, mas porque não tenho mais espaço para eles nas minhas estantes, todas de fila dupla, preenchidas no espaço restante com livros deitados. Abençoada crise que não deixa que as minhas estantes continuem a viver acima das suas possibilidades...
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Romances Distópicos
Se fosse vivo, Aldous Huxley faria ontem 120 anos. Para celebrar a data escrevi no site homo literatus um artigo sobre distopia, romances distópicos, e 5 dos grandes autores / obras do género. Podem lê-lo aqui.
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July 24, 2014
DDT - Dono Disto Tudo - ou DDMT...
Dono Disto TudoRicardo Salgado saiu nesta quinta-feira ao final da tarde do Tribunal Central de Instrução Criminal, em Lisboa, indiciado por crimes graves: burla, abuso de confiança, falsificação e branqueamento de capitais. Com escassos minutos de diferença, a holding-estrela da família Espírito Santo, a Espírito Santo Financial Group (ESFG), informou que pedira a protecção de credores junto das autoridades luxemburguesas. Dois episódios que traduzem um virar de página, com o fim de um centro de poder considerado o mais influente da vida política, social e financeira em Portugal dos últimos 15 anos. (Notícia completa no Público).
Dono Disto Tudo, ou, em bom português, DDMT - Dono Desta Merda Toda - Não se iludam, não se iludam... Falta tombarem muitos donos (muitos merdas), e falta, principalmente, que rebolem (também!) no charco para onde nos empurram a todos... Num país de beija-mãos (e chamavam estes merdas incivilizados aos nativos indígenas do Brasil que iam ao beija-mão de Dom João VI), de lambe-botas, de beija e lambe muitas outras coisas, nada, nada, mas mesmo nada, da trampa que um dia se venha a saber, chega sequer a ser amostra da trampa toda...
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As Bundas Portuguesas, João Ubaldo Ribeiro
Já aqui deixei a crónica de João Ubaldo Ribeiro, Memória de Livros, que muito tem sido referida nos últimos tempos; deixo-vos agora a passagem de A Casa dos Budas Ditosos onde João Ubaldo Ribeiro fala das bundas portuguesas:
Em suma, os americanos eram uns merdas simpáticos, só eram bonitinhos, mas não sabiam trepar, e a maioria, quando queria dizer palavrão, dizia God e Jesus, imagine um povo que achava palavrão dizer Deus e Jesus, tudo ligado ao puritanismo deles, usar Seu santo nome em vão, essas coisas. Tanto assim que muitos empregavam eufemismos, como Geez, Golly gee e outras besteiras do mesmo jaez, imagine novamente um povo que precisava de eufemismos para exclamar o nome de Deus ou de Jesus.
João Ubaldo Ribeiro, em A Casa dos Budas Ditosos (pp. 42-44), Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 1999.
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July 23, 2014
Futebol, Sigmund Freud, Psicanálise...
[O pai adora futebol ( "Para se ser um bom chefe de família tem que se ser do Benfica, Dra!). O miúdo nem por isso, prefere dançar ("Mas isso eu não digo ao meu pai, que ele chama-me logo de maricas!"). O pai perguntou-lhe se queria jogar futebol ("Queres, não queres? Vais ser um grande ponta de lança, o pai também era!"). O menino não tem coragem de dizer que não ("Ele não foi obrigado, Dra, que eu bem lhe perguntei uma mão cheia de vezes, ele é que quis"). O menino finge que tem prazer em jogar, assiste aos jogos com um entusiasmo fingido para ter aqueles momentos de "homens", nas tardes no sofá entre pai e filho ("Ele nunca está em casa, está sempre a trabalhar, só estamos os dois quando ele vem para casa e vemos a bola juntos!"). Escuta o pai com uma falsa atenção a ensinar-lhe o que é um fora-de-jogo mas não decorou o que é ("Eu gosto é de dançar mas o meu pai diz que a dança é para as meninas"). A mãe não se mete ("Ah, isso da bola é lá entre eles, eu não interfiro..."). O pai preocupado que o menino, de cada vez que é para o levar ao treino, fica doente, dá-lhe vómitos, náuseas, doente mesmo ("Será dos nervos, Dra? Será que ele leva o futebol tão a sério que fica doente com a pressão? Olhe que ele faz-se um grande ponta de lança, Dra, podemos ter aqui o próximo Ronaldo."). O filho confidencia, à parte, que finge estar doente de cada vez que tem que fazer o sacrifício de ir aos treinos ("Se eu lhe disser que não quero ele zanga-se, assim fica aflito a pensar que eu estou doente e não teima para me levar.").O pai só quer resolver os sonhos que a sua infância não lhe permitiu.O filho? Só quer dançar. ]
Pólo Norte, em Freud é capaz de ter um bocadinho de razão, no blog Quadripolaridades.
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A Importância da Língua Portuguesa...
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July 21, 2014
Adeus, João Ubaldo Ribeiro.
Muito se tem citado esta crónica de João Ubaldo Ribeiro; esta e aquela em que fala das bundas portuguesas. Prefiro esta, embora não desgoste de nenhuma das crónicas que li de Ubaldo, e são bastantes, reunidas em diversos livros. Memória de Livros , publicada originalmente no jornal Frankfurter Rundschau, no início da década de 90, quando Ubaldo passou 15 meses em Berlim a convite da Deutscher Akademische Austauschdienst - Instituição alemã que convida artistas para passar temporadas em Berlim. Ubaldo publicava crónica mensais, que depois foram reunidas em livro, na obra Um Brasileiro em Berlim . O que se passou quando, regressando de Berlim, aterrou em Portugal, nem vale a pena referir. Como português, tenho vergonha. Cavaco Silva era primeiro-ministro, Dias Loureiro era ministro da administração interna. Parece sinistro, não parece, a quantidade de vezes que tristes figurinhas aparecem associadas a episódios nada edificantes da nossa história recente? Parece...
A crónica:
Aracaju, a cidade onde nós morávamos no fim da década de 40, começo da de 50, era a orgulhosa capital de Sergipe, o menor Estado brasileiro (mais ou menos do tamanho da Suíça). Essa distinção, contudo, não lhe tirava o caráter de cidade pequena, provinciana e calma, à boca de um rio e a pouca distância de praias muito bonitas. Sabíamos do mundo pelo rádio, pelos cinejornais que acompanhavam todos os filmes e pelas revistas nacionais. A televisão era tida por muitos como mentira de viajantes, só alguns loucos andavam de avião, comprávamos galinhas vivas e verduras trazidas à nossa porta nas costas de mulas, tínhamos grandes quintais e jardins, meninos não discutiam com adultos, mulheres não usavam calças compridas nem dirigiam automóveis e vivívamos tão longe de tudo que se dizia que, quando o mundo acabasse, só íamos saber uns cinco dias depois.
Mas vivíamos bem. Morávamos sempre em casarões enormes, de grandes portas, varandas e tetos altíssimos, e meu pai, que sempre gostou das últimas novidades tecnológicas, trazia para casa tudo quanto era tipo de geringonça moderna que aparecia. Fomos a primeira família da vizinhança a ter uma geladeira e recebemos visitas para examinar o impressionante armário branco que esfriava tudo. Quando surgiram os primeiros discos long play, já tínhamos a vitrola apropriada e meu pai comprava montanhas de gravações dos clássicos, que ele próprio se recusava a ouvir, mas nos obrigava a escutar e comentar.
Nada, porém, era como os livros. Toda a família sempre foi obsedada por livros e às vezes ainda arma brigas ferozes por causa de livros, entre acusações mútuas de furto ou apropriação indébita. Meu avô furtava livros de meu pai, meu pai furtava livros de meu avô, eu furtava livros de meu pai e minha irmã até hoje furta livros de todos nós. A maior casa onde moramos, mais ou menos a partir da época em que aprendi a ler, tinha uma sala reservada para a biblioteca e gabinete de meu pai, mas os livros não cabiam nela -- na verdade, mal cabiam na casa. E, embora os interesses básicos dele fossem Direito e História, os livros eram sobre todos os assuntos e de todos os tipos. Até mesmo ciências ocultas, assunto que fascinava meu pai e fazia com que ele às vezes se trancasse na companhia de uns desenhos esotéricos, para depois sair e dirigir olhares magnéticos aos circunstantes, só que ninguém ligava e ele desistia temporariamente. Havia uns livros sobre hipnotismo e, depois de ler um deles, hipnotizei um peru que nos tinha sido dado para um Natal e, que, como jamais ninguém lembrou de assá-lo, passou a residir no quintal e, não sei por queê, era conhecido como Lúcio. Minha mãe se impressionou, porque, assim que comecei meus passes hipnóticos, Lúcio estacou, pareceu engolir em seco e ficou paralisado, mas meu pai -- talvez porque ele próprio nunca tenha conseguido hipnotizar nada, apesar de inúmeras tentativas -- declarou que aquilo não tinha nada com hipnotismo, era porque Lúcio era na verdade uma perua e tinha pensado que eu era o peru.
Não sei bem dizer como aprendi a ler. A circulação entre os livros era livre (tinha que ser, pensando bem, porque eles estavam pela casa toda, inclusive na cozinha e no banheiro), de maneira que eu convivia com eles todas as horas do dia, a ponto de passar tempos enormes com um deles aberto no colo, fingindo que estava lendo e, na verdade, se não me trai a vã memória, de certa forma lendo, porque quando havia figuras, eu inventava as histórias que elas ilustravam e, ao olhar para as letras, tinha a sensação de que entendia nelas o que inventara. Segundo a crônica familiar, meu pai interpretava aquilo como uma grande sede de saber cruelmente insatisfeita e queria que eu aprendesse a ler já aos quatro anos, sendo demovido a muito custo, por uma pedagoga amiga nossa. Mas, depois que completei seis anos, ele não agüentou, fez um discurso dizendo que eu já conhecia todas as letras e agora era só uma questão de juntá-las e, além de tudo, ele não suportava mais ter um filho analfabeto. Em seguida, mandou que eu vestisse uma roupa de sair, foi comigo a uma livraria, comprou uma cartilha, uma tabuada e um caderno e me levou à casa de D. Gilete.
-- D. Gilete -- disse ele, apresentando-me a senhora de cabelos presos na nuca, óculos redondos e ar severo --, este rapaz já está um homem e ainda não sabe ler. Aplique as regras.
"Aplicar as regras", soube eu muito depois com um susto retardado, significava, entre outras coisas, usar a palmatória para vencer qualquer manifestação de falta de empenho ou burrice por parte do aluno. Felizmente D. Gilete nunca precisou me aplicar as regras, mesmo porque eu de fato já conhecia a maior parte das letras e juntá-las me pareceu facílimo, de maneira que, quando voltei para casa nesse mesmo dia, já estava começando a poder ler. Fui a uma das estantes do corredor para selecionar um daqueles livrões com retratos de homens carrancudos e cenas de batalhas, mas meu pai apareceu subitamente à porta do gabinete, carregando uma pilha de mais de vinte livros infantis.
-- Esses daí agora não -- disse ele. -- Primeiro estes, para treinar. Estas livrarias daqui são uma porcaria, só achei estes. Mas já encomendei mais, esses daí devem durar uns dias.
Duraram bem pouco, sim, porque de repente o mundo mudou e aquelas paredes cobertas de livros começaram a se tornar vivas, freqüentadas por um número estonteante de maravilhas, escritas de todos os jeitos e capazes de me transportar a todos os cantos do mundo e a todos os tipos de vida possíveis. Um pouco febril às vezes, chegava a ler dois ou três livros num só dia, sem querer dormir e sem querer comer porque não me deixavam ler à mesa -- e, pela primeira vez em muitas, minha mãe disse a meu pai que eu estava maluco, preocupação que até hoje volta e meia ela manifesta.
-- eu filho está doido -- disse ela, de noite, na varanda, sem saber que eu estava escutando. -- Ele não larga os livros. Hoje ele estava abrindo os livros daquela estante que vai cair para cheirar.
-- Que é que tem isso? É normal, eu também cheiro muito os livros daquela estante. São livros velhos, alguns têm um cheiro ótimo.
-- Ontem ele passou a tarde inteira lendo um dicionário.
-- Normalíssimo. Eu também leio dicionários, distrai muito. Que dicionário ele estava lendo?
-- O Lello.
-- Ah, isso é que não pode. Ele tem que ler o Laudelino Freire, que é muito melhor. Eu vou ter uma conversa com esse rapaz, ele não entende nada de dicionários. Ele está cheirando os livros certos, mas lendo o dicionário errado, precisa de orientação.
Sim, tínhamos muitas conversas sobre livros. Durante toda a minha infância, havia dois tipos básicos de leitura lá em casa: a compulsória e a livre, esta última dividida em dois subtipos -- a livre propriamente dita e a incerta. A compulsória variava conforme a disposição de meu pai. Havia a leitura em voz alta de poemas, trechos de peças de teatro e discursos clássicos, em que nossa dicção e entonação eram invariavelmente descritas como o pior desgosto que ele tinha na vida. Líamos Homero, Camões, Horácio, Jorge de Lima, Sófocles, Shakespeare, Euclides da Cunha, dezenas de outros. Muitas vezes não entendíamos nada do que líamos, mas gostávamos daquelas palavras sonoras, daqueles conflitos estranhos entre gente de nomes exóticos, e da expressão comovida de minha mãe, com pena de Antígona e torcendo por Heitor na Ilíada. Depois de cada leitura, meu pai fazia sua palestra de rotina sobre nossa ignorância e, andando para cima e para baixo de pijama na varanda, dava uma aula grandiloqüente sobre o assunto da leitura, ou sobre o autor do texto, aula esta a que os vizinhos muitas vezes vinham assistir. Também tínhamos os resumos -- escritos ou orais -- das leituras, as cópias (começadas quando ele, com grande escândalo, descobriu que eu não entendia direito o ponto-e-vírgula e me obrigou a copiar sermões do Padre Antônio Vieira, para aprender a usar o ponto-e-vírgula) e os trechos a decorar. No que certamente é um mistério para os psicanalistas, até hoje não só os sermões de Vieira como muitos desses autores forçados pela goela abaixo estão entre minhas leituras favoritas. (Em compensação, continuo ruim de ponto-e-vírgula).
Mas o bom mesmo era a leitura livre, inclusive porque oferecia seus perigos. Meu pai usava uma técnica maquiavélica para me convencer a me interessar por certas leituras. A circulação entre os livros permanecia absolutamente livre, mas, de vez em quando, ele brandia um volume no ar e anunciava com veemência:
-- Este não pode! Este está proibido! Arranco as orelhas do primeiro que chegar perto deste daqui!
O problema era que não só ele deixava o livro proibido bem à vista, no mesmo lugar de onde o tirara subitamente, como às vezes a proibição era para valer. A incerteza era inevitável e então tínhamos momentos de suspense arrasador (meu pai nunca arrancou as orelhas de ninguém, mas todo mundo achava que, se fosse por uma questão de princípios, ele arrancaria), nos quais lemos Nossa vida sexual do Dr. Fritz Kahn, Romeu e Julieta; O Livro de San Michele, Crônica Escandalosa dos Doze Césares, Salambô, O Crime do Padre Amaro -- enfim, dezenas de títulos de uma coleção estapafúrdia, cujo único ponto em comum era o medo de passarmos o resto da vida sem orelhas -- e hoje penso que li tudo o que ele queria disfarçadamente que eu lesse, embora à custa de sobressaltos e suores frios.
Na área proibida, não pode deixar de ser feita uma menção aos pais de meu pai, meus avós João e Amália. João era português, leitor anticlerical de Guerra Junqueiro e não levava o filho muito a sério intelectualmente, porque os livros que meu pai escrevia eram finos e não ficavam em pé sozinhos. "Isto é uma merda", dizia ele, sopesando com desdém uma das monografias jurídicas de meu pai. "Estas tripinhas que não se sustentam em pé não são livros, são uns folhetos". Já minha avó tinha mais respeito pela produção de meu pai, mas achava que, de tanto estudar altas ciências, ele havia ficado um pouco abobalhado, não entendia nada da vida. Isto foi muito bom para a expansão dos meus horizontes culturais, porque ela não só lia como deixava que eu lesse tudo o que ele não deixava, inclusive revistas policiais oficialmente proibidas para menores. Nas férias escolares, ela ia me buscar para que eu as passasse com ela, e meu pai ficava preocupado.
-- D. Amália -- dizia ele, tratando-a com cerimônia na esperança de que ela se imbuísse da necessidade de atendê-lo --, o menino vai com a senhora, mas sob uma condição. A senhora não vai deixar que ele fique o dia inteiro deitado , cercado de bolachinhas e docinhos e lendo essas coisas que a senhora lê.
-- Senhor doutor -- respondia minha avó --, sou avó deste menino e tua mãe. Se te criei mal, Deus me perdoe, foi a inexperiência da juventude. Mas este cá ainda pode ser salvo e não vou deixar que tuas maluquices o infelicitem. Levo o menino sem condição nenhuma e, se insistes, digo-te muito bem o que podes fazer com tuas condições e vê lá se não me respondes, que hoje acordei com a ciática e não vejo a hora de deitar a sombrinha ao lombo de um que se atreva a chatear-me. Passar bem, Senhor doutor.
E assim eu ia para a casa de minha avó Amália, onde ela comentava mais uma vez com meu avô como o filho estudara demais e ficara abastalhado para a vida, e meu avô, que queria que ela saísse para poder beber em paz a cerveja que o médico proibira, tirava um bolo de dinheiro do bolso e nos mandava comprar umas coisitas de ler -- Amália tinha razão, se o menino queria ler que lesse, não havia mal nas leituras, havia em certos leitores. E então saíamos gloriosamente, minha avó e eu, para a maior banca de revistas da cidade, que ficava num parque perto da casa dela e cujo dono já estava acostumado àquela dupla excêntrica. Nós íamos chegando e ele perguntava:
-- Uma de cada?
-- Uma de cada -- confirmava minha avó, passando a superintender, com os olhos brilhando, a colheita de um exemplar de cada revista, proibida ou não-proibida, que ia formar uma montanha colorida deslumbrante, num carrinho de mão que talvez o homem tivesse comprado para atender a fregueses como nós. -- Mande levar. E agora aos livros!
Depois da banca, naturalmente, vinham os livros. Ela acompanhava certas coleções, histórias de "Raffles, Arsène Lupin", Ponson du Terrail, Sir Walter Scott, Edgar Wallace, Michel Zevaco, Emilio Salgari, os Dumas e mais uma porção de outros, em edições de sobrecapas extravagantemente coloridas que me deixavam quase sem fôlego. Na livraria, ela não só se servia dos últimos lançamentos de seus favoritos, como se dirigia imperiosamente à seção de literatura para jovens e escolhia livros para mim, geralmente sem ouvir minha opinião -- e foi assim que li Karl May, Edgar Rice Burroughs, Robert Louis Stevenson, Swift e tantos mais, num sofá enorme, soterrado por revistas, livros e latas de docinhos e bolachinhas, sem querer fazer mais nada, absolutamente nada, neste mundo encantado. De vez em quando, minha avó e eu mantínhamos tertúlias literárias na sala, comentando nossos vilões favoritos e nosso herói predileto, o Conde de Monte Cristo -- Edmond Dantès! -- como dizia ela, fremindo num gesto dramático. E meu avô, bebendo a cerveja escondido lá dentro, dizia "ai, ai, esses dois se acham letrados, mas nunca leram o Guerra Junqueiro".
De volta à casa de meus pais, depois das férias, o problema das leituras compulsórias às vezes se agravava, porque meu pai, na certeza (embora nunca desse ousadia de me perguntar), de que minha avó me tinha dado para ler tudo o que ele proibia, entrava numa programação delirante, destinada a limpar os efeitos deletérios das revistas policiais. Sei que parece mentira e não me aborreço com quem não acreditar (quem conheceu meu pai acredita), mas a verdade é que, aos doze anos, eu já tinha lido, com efeitos às vezes surpreendentes, a maior parte da obra traduzida de Shakespeare, O elogio da loucura, As décadas de Tito Lívio, D. Quixote (uma das ilustrações de Gustave Doré, mostrando monstros e personagens saindo dos livros de cavalaria do fidalgo, me fez mal, porque eu passei a ver as mesmas coisas saindo dos livros da casa), adaptações especiais do Fausto e da Divina Comédia, a Ilíada, a Odisséia, vários ensaios de Montaigne, Poe, Alexandre Herculano, José de Alencar, Machado de Assis, Monteiro Lobato, Dickens, Dostoievski, Suetônio, os Exercícios espirituais de Santo Inácio de Loyola e mais não sei quantos outros clássicos, muitos deles resumidos, discutidos ou simplesmente lembrados em conversas inflamadas, dos quais nunca me esqueço e a maior parte dos quais faz parte íntima de minha vida.
Fico pensando nisso e me pergunto: não estou imaginando coisas, tudo isso poderia ter realmente acontecido? Acho que sim, também joguei bola, tomei banho nu no rio, subi em árvores e acreditei em Papai Noel. Os livros eram uma brincadeira como outra qualquer, embora certamente a melhor de todas. Quando tenho saudades da infância, as saudades são daquele universo que nunca volta, dos meus olhos de criança vendo tanto que entonteciam, dos cheiros dos livros velhos, da navegação infinita pela palavra, de meu pai, de meus avós, do velho casarão mágico de Aracaju.
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A Jangada de Pedra...
União Ibéria de Portugal e EspanhaParece que há por aí uns tipos a sonhar com Uniões Ibéricas; bem verdade que isto anda tudo à deriva, mas daí a construirmos Jangadas de Pedra...
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