Pedro Guilherme Moreira's Blog, page 72
October 10, 2011
Atropelamento na ilha deserta (o sexto)
Lancei-me à terra em Setembro, cresci, mirrei, fiz-me ilha com livros em vez de água, podei-me, levo o quinto meio escrito e, para quem nunca vai ler tudo o que quer, as leituras em dia, ouço livros, como bocados de livros, mas em Outubro a pulsão Nobokoviana veio a nado para cá, tomou-me nos braços, deitou-me por terra e deu-me o sexto para escrever. Expliquei-lhe que o quinto é de tal modo tecido que não o posso abandonar um dia que seja, e que o sabia de forma simples: afastei-me dele uma semana e ele fugiu-me. O Vladimir diz que este chegou precisamente por isso. Tens, disse, uma teia disforme para ordenar, falta-te a luz e a pequenez das coisas simples. O sexto alumia. Mas, se não me posso afastar de nenhum, vou ter de escrever os dois ao mesmo tempo, usar metade da velocidade em cada, estar mais ausente no mundo, o meu corpo figurado. E ler mais, sair de mim, venerar outros escritores para não sufocar na minha saliva. Sobre a mesa espalhei os pedaços que parecem manias, intelectualidades bestas, mas para mim são apenas alegrias simples: os dois El País atrasados (o deste Sábado devorei na hora), a Dulce, o padre António Vieira, o O'Neill, o eme Tavares, outros virão, estão sempre a chegar. Mesmo assim, mesmo que me invada um hábito interno fransciscano, uma nudez, ao chegar o sexto torno-me insuportável e megalómano por cinco minutos. Ido o Vladimir, são as duas magnólias à saída da rampa do pátio onde estaciono a carrinha que me dão humanindade: agora que todas se despem, elas trazem-me na expectativa do Inverno, quando me darão flores. Seja então: o quinto e o sexto a par. Haja alegria:).
PG-M 2011
PG-M 2011fonte da foto
Published on October 10, 2011 04:44
October 7, 2011
Sleepless to remember les vieux amants et les fous
Quando disseste- Já falhámos a Primavera.no topo do Empire State, ainda as pedras eram a preto e branco e Nova Iorque a cinza, e eu te respondi- É agora ou nunca.,e tu disseste que sim, e o cenógrafo pintou a película de magenta e as paredes de azul, seríamos loucos, Terry, seríamos loucos se deixássemos isto passar por nós, e imagina que demorava seis meses, e tu- Seis meses o quê? Sê realista.mas estavas com o desespero nos olhos e o arrebatamento no corpo,- Só quero ser merecedor do despojamento do teu corpo,agora e sempre nesta varanda, enquanto não sobem os muros e a enchem de ferros e nos cercam de jaulas e turistas cegos que vêem através de máquinas, a tua voz quebrou, dizes tu, como se me fosses expulsar antes da tua pele, e como todos os americanos quando Nova Iorque era cinza e o Empire preto e branco, acendeste um cigarro e debruçaste-te ligeiramente na sacada, já não sei se eras Terry ou Annie, e eu Nickie ou Sam, sei que o pudor desceu com o guarda e ficou o teu sorriso e o fumo do teu cigarro, o sobretudo subiu e começou a canção dos velhos amantes em francês, vinte anos de amor, mil recusas, mil malas feitas, mil saídas e a tempestade sobre o Hudson e eu, como todos os homens, pela milésima primeira vez, a cantar-te ao ouvidoMais mon amourMon doux mon tendre mon merveilleux amourDe l'aube claire jusqu'à la fin du jourJe t'aime encore tu sais je t'aimeenquanto as mãos subiam pelas tuas coxas, a boca morna no teu pescoço e tu já devias ter caído, mas fumavas e sorrias, fumavas e sorrias, é isto que que elas dizem?, é isto que acontece quanto elas tomam o domínio e o pobre macho já só consegue tocar em frente, o burro, e mesmo que estas mãos pensassem que te devassavam a milésima primeira foi tua, soube eu mais tarde, quando trouxe a terceira mulher a esta mesma varanda e tu estavas à espera com o meu jogo completo de tacos de golfe e o mesmo sorriso, não sei se o mesmo cigarro, porque só mais tarde percebi que quando te penetrava era penetrado, que quando me vinha vinha sozinho, como vim, completamente sozinho, com um jogo de tacos de golfe e pelas escadas. Anos depois, contava-se no rés do chão da tricentésima quinquagésima avenida que uma mulher de classe fornicava homens no observation deck do Empire Stare building quando as noites tomavam os dias e as cores os tons de cinza com que te conheci fumando e sorrindo, Deborah, Meg?
PG-M 2011
PS: Dedicado ao Warren Beatty
fonte da foto PHOTOFEST
Published on October 07, 2011 19:05
October 5, 2011
Help
Quando É um notável filme que acaba de estrear: As Serviçais (The Help).Ter pena de nós próprios é hediondo. Não é isso.É isto:o cinema faz a maldade de nos apanhar sozinhos no escuro e de nos sovar. O corpo fica dorido, o peito comprime, é um sufoco. A cena agarrou-me pelos colarinhos. Mimetizou-me a vida ao ponto de isolar pedaços dela: Mas é um disparate que o façamos hoje perante este filme.Um festival de actuação feminina como há muito não se via no cinema.Nomeio para o óscar de actriz principal E o olhar ao drama dos negros na América branca repressiva dos anos cinquenta/ sessenta, perante o terror de leis xenófobas e do KKK, algo tão perto, mas tão perto de nós, faz lembrar que inquietar é obrigatório, mergulhar nas histórias individuais das serviçais uma abordagem brilhante, fazê-lo com actrizes destas um privilégio. Além das abordagens ao Holocausto, que vão aparecendo e nunca são em demasia, são histórias aparentemente simples, que nunca nos interessariam em teoria, como a contada neste filme e que devia ter dado mais um óscar a Charlize Theron, que nos acordam da modorra e nos empurram para uma atitude de coragem perante a devassa do outro.Como Skeeper e a coragem que saltou uma geração.
Nota final: nenhuma editor quis publicar o romance de PG-M 2011
Published on October 05, 2011 15:34
October 4, 2011
Os meus
Não há aqui nenhum princípio: eu tenho uma urgência de escrever para fora, não para dentro, mesmo que busque a parte de fora na parte de dentro.Ao ler alguns (grandes) escritores portugueses, contudo, e ao cair de arrebatamento perante os detalhes de si, saio sempre com uma fúria de fazer dos meus uns ícones, figuras indeléveis, e de lhes dar a eternidade que sempre terão no meu tempo. Hoje é um desses dias que criam uma excepção na minha regra - e por causa de uma boa fúria decomponho pedaços da intimidade.Os meus são essencialmente dois, uma miúda e um miúdo e estão agora da mesma altura, pouco menos de um metro e setenta. Ele saiu de dentro dela e foi feito por mim e por ela. Ela foi feita para mim - reza a lenda que terá sido concebida no dia em que nasci. Todos dizem que ele já está maior do que a mãe, mas, quando a noite lhe derrota a vontade de nunca dormir e lhe vem buscar os sonhos que tanto o inquietam como o aquietam, fica outra vez pequenino. Quando a noite lhe baixa as pálpebras e o cansaço o apanha fora da cama, tomo-lhe o corpo no colo sem o acordar, deito os braços dele para cima dos meus ombros e, dos meus, o esquerdo serve-lhe de assento e o direito de encosto, e sobe-lhe pelas costas, e a mão direita ampara-lhe a cabeça e afaga-lhe os cabelos, encosto-o mim, cheiro-lhe o pescoço, como que em busca do lugar onde o comecei a construir, algures por ali, entre a fonte e a linha do pescoço, emociono-me sempre e situo-me a um momento da lágrimas. Nunca choro, mas se chorasse era por causa do amor que nos filhos nunca cabe dentro do corpo e nos alaga por fora e se funde com o nosso que é infinito e nós não somos. Ele está grande, qualquer dia maior do que eu, mas eu sei que a força de um pai é como a de uma formiga: ele pode ter mais de dois metros e o dobro do meu peso e eu vou ter sempre vontade de lhe pegar ao colo, de o cheirar, de lhe sentir as bochechas com as costas das mãos, de lhe tomar a febre com os lábios, de o abraçar e deixar que ele me abrace à procura do primordial, ser filho e ser pai é normal mas uma pessoa feita de outra não é. Que não se censure um filho e um pai que se olham nos olhos com a consciência de que um é o milagre do outro.
Com ela tenho problemas idênticos. Não sei o que fazer. Está cada vez mais bonita. Mesmo no ano em perdemos a avó e ficámos todos pela metade, ela assomou com o dobro da força. Foi pelos cabelos dela que me apaixonei, antes de me apaixonar por ela, e quando os afago e cheiro (outra vez o cheiro, eu sei, mas é novidade que o lado maior do amor se expressa pelo cheiro?) à noite, já ela dorme profundamente, fico aflito e não sei onde pôr o que sinto. Então levanto-me, levanto-me sempre, e vou ver se o frigorífico ajuda. Bebo um copo de água, mas o amor é tramado, toma-nos os órgãos todos. Se eu quiser estar mesmo sossegado noite dentro não posso olhar para ela ou no escuro ouvir-lhe a respiração ou senti-la frágil seja em que momento for. Um destes dias, quando eu estava a exercer sobre mim próprio uma grande violência e a esvaziar mais um lugar onde passei anos da minha vida, o escritório, ela foi ao melhor médico do mundo, um daqueles de aldeia que está sempre pronto e sabe tanto que já não se usa. Demorou mais do que o previsto e o dia virou costas mais cedo do que se esperava, como acontece sempre no princípio do Outono, as sombras avançaram pelo escritório dentro e os olhos, mesmo abertos, começaram a cegar - era a hora em que, sem excepção, preciso de a ver para continuar. Fechei tudo, meti-me no carro e fui ao consultório, atento às ruas para o caso de um dos vultos do regresso ser dela. A luz branca estava acesa no primeiro andar e os fumos dos jantares já entravam em nós como um barulho de felicidade que convoca para casa. Ela não estava na sala de espera e uma senhora perguntou se eu procurava uma menina com metade da idade que ela realmente tem. Hesitei e sorri, disse que sim, que devia ser ela, e bati à porta. O doutor acolheu-me entusiasticamente, ele que nunca lê está a ler o meu livro e a gostar tanto que nem ele próprio acredita e eu não me lembrava se lhe tinha escrito no exemplar a dedicatória que já escrevera com o coração, "provavelmente o melhor médico do mundo", só sei que mal a vi descobri que estava apaixonado, o que não deixa de ser desconcertante, mesmo que aconteça, não todos os dias, mas seguramente todas as semanas, e mais do que uma vez por semana, destas duas décadas e meia que levamos em fusão. Ou é todos os dias? Deve ser todos os dias. Isso não importa. Sempre que me apaixono por ela é por uma mulher diferente. Esta, afinal, tinha mesmo metade da idade, uma roupa especialmente escolhida para ir ao médico (a ternura) e a mão dentro de uma saca com exames e análises (a fragilidade), e estava tão bonita que é difícil explicar-vos, o cabelo, agora grisalho e que um dia hei-de amar branco, o cabelo e toda a figura, sabem quando têm uma fixação instantânea por uma mulher deslumbrante a entrar na passadeira vermelha dos óscares ou na mercearia da dona Aninhas ou no átrio do prédio mais degradado do bairro, não importa, sabem quando sentem isso? Era isso. Depois sentei-me e vi-a tão frágil ali, no médico, num momento em que não era suposto eu lá estar e pensei que não consigo vê-la assim todos os dias, de fora, e isso é injusto, porque ela é deslumbrante e, se é certo que a posso sufocar com abraços porque este amor, tal como o amor pelos filhos, este amor que já se mede por décadas não tem espaço que chegue dentro do corpo e um homem grande como eu não pode fechar o abraço sobre a sua mulher, que a vontade era mesmo fechá-lo todo, como se a espremêssemos para dentro de nós e nunca mais a tívéssemos longe, então sentei-me e vi-a tão frágil que, como sinto à noite sempre que deito o menino, soube que o amor tinha crescido ali mesmo, à hora do jantar.Então é por isso. Então é por isso que dizemos- Cada vez te amo mais.
Nunca pensei falar deles de forma épica ou arrebatada. Aliás, o que qualquer pessoa faz é juntar uma fotografia e dizer- Os meus são estes.Eu não. Eu prefiro explicar como o amor cresce e a que horas - ainda acho que, no fundo no fundo, foram os vapores dos jantares dos outros e que a verdadeira felicidade está entre isso e - sempre - o cheiro de qualquer um deles.Os meus são estes e este sou eu.
PG-M 2011
Published on October 04, 2011 05:25
Entrevistas RTPn e Porto Canal
Prometi e aqui está: uma súmula das entrevistas à Maria João Silveira (RTPn) na própria tarde da efeméride dos dez anos do 11 de Setembro de 2001 e a de 1 de Julho ao Porto Canal, para a rubrica "Muito mais que livros" do Tito Couto e da Maria Cerqueira Gomes. Ambas sobre o livro "A manhã do mundo", claro. Para verem em HD - e com melhor som - cliquem pf no rodapé do pequeno ecrã, onde se vê 360p, e mudem para 720:
Published on October 04, 2011 02:34
October 1, 2011
Em Outubro
Em Outubro,amo-te no arco da queda
no ar
na nervura do ocaso
na página superior
amo-te deposto
no chão, no pó
do limbo
quando as bainhas se tocam
nesta curva da azinhaga
amo-te nas lançadas
no fundo de sacos
negros
nos troncos incandescentes
no fumo
se me abraças em espiral
a ainda além
no nada.
PG-M 2011
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Published on October 01, 2011 02:22
September 25, 2011
Uma nova semana
Ao olhar os outros através do fumo da noite estimo os que não olham para cá e temo os que reparam na mancha do meu corpo curvado sobre o cigarro a tomar sentido de amanhã, deixem-me em paz, direi, deixa-me em paz, dirão. Vai um cigarro? Não me levanto no alpendre. Não sorrio. Inclino a cabeça atrás de outra baforada. A vénia. E a semana entra de laço com estranhos.
PG-M 2011
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Published on September 25, 2011 16:46
A história de um tracinho entre o Guilherme e o Moreira e entra a manhã e o mundo
Nota: a convite da Cristina Delgado, escrevi um texto para a secção de Domingo do blogue "O tempo entre os meus livros". Aproveitei para fazer luz sobre o tracinho. Aqui fica o texto: O senhor Menezes é um tipógrafo em Espinho que trabalha para a empresa da família há muitos anos. Quando o filho do patrão lhe pediu para ser ele a fazer os primeiro cartões para o seu tirocínio como advogado deu, como modelo, uns em que um tal José Pedro unia o Aguiar ao Branco com um hífen. Ora, o José Pedro também os tem separado no Bilhete de Identidade, mas como José Branco nada lhe dizia e o pai e o irmão mais velho há muito usavam o Aguiar com o Branco, mandou unir com cordel de hífen. O José Pedro foi a ministro, melhor ainda, o José Pedro foi aos "Gato Fedorento esmiúçam os sufrágios", que não dá pensão mas dá prestígio social. Ora, o bom do Pedro não pediu ao tipógrafo para atar o Guilherme ao Moreira, mas o bom senhor copiou pelo modelo e encaminhou meia grosa de cartões para a praia onde morava o nosso herói. Quando viu, Pedro indignou-se. Quando olhou sorriu. Depois gostou. Como Pedro Moreira é coisa que nunca lhe soara, pois todos os primogénitos da família, há umas boas gerações, se chamaram qualquercoisa Guilherme ou Guilherme qualquercoisa ficou assim, Guilherme tracinho Moreira. Pois o Pedro Guilherme-Moreira já usou Pedro Pedrosa. Tem um nome comprido no Bilhete de Identidade, que em 2011 ainda não é do Cidadão. Seis vocábulos. Um dia, um professor de português a quem chamavam poeta maluco mas era Luís Carlos e lhe deu nega por escrever bem mandou os meninos chapar o seu nome completo numa folha ali mesmo, de pé, perante ele. Quando chegou a vez do Pedro, e como a primeira linha tinha acabado e o próximo nome era Pedrosa, começou a escrever este mesmo na segunda linha. Ora, Pedrosa começa por Pedro e termina com sa. Quando o poeta maluco viu um Pedro alinhado com outro Pedro, que ainda por cima era a mesma pessoa, desferiu um tabefe sobre as faces rosadas dos dois que eram um só. Pumba. Agora o Pedro Guilherme-Moreira, que já não usa Pedrosa, gostava de reencontrar esse professor para medirem as mãos. E outras coisas. O Pedro nasceu no final da década de sessenta no Porto. Viveu nas Antas, aprendeu a andar de bicicleta dentro do pavilhão do Fê Cê Pê e andou ao colo daquela equipa de futebol do Porto com o Fonseca, Simões, Freitas, Murça, Gomes, etc, etc. O pai foi internacional de voleibol pelo mesmo clube e contagiou a família toda. O Pedro também foi voleibolista federado durante muitos anos, treinou com a selecção nacional, onde foi partir os pés, era um ano mais velho que o Maia e do tamanho do Brenha, que é algo a rondar dois metros, o que é bom para concertos ao vivo. Vejam o seu desempenho brilhante nos anos oitenta, jogando pelo Colégio dos Carvalhos, onde estudou, desempenho tributário da imagem do Serafim Saudade, que estava a nascer (é o oito):
É bisneto de escultor, neto de comerciantes, filho de pintora e engenheiro.
Ora, o tracinho, como veio a ser carinhosamente apelidado pelos seus colegas advogados, seguiu vida no trólei três, como se sabe, como Torga, com quem nunca falou, mesmo habitando na zona dos Olivais, perto do Dr Adolfo Rocha, ou Miguel. Formou-se em Direito em Coimbra e exerce apaixonadamente há mais de quinze anos, sendo que a paixão esmoreceu à custa de muita tibieza. Já vinha escrevendo desde que oferecera aquela fábula à professora Laura, aos sete anos, e nunca mais parou: poesia sempre, mas a prosa ainda não estava bem. Nem aos vinte, nem aos trinta. E eis que um acidente grave da prima Susana o fez obrigar-se, ao espelho, a terminar o livro sobre a guerra civil estradal que levava sete páginas escritas em cinco anos. Começou por volta dos trinta e cinco e nunca mais parou. Até hoje. Hoje também não parou. Escreveu mais de mil páginas de enfiada e experimentou todos os estilos, e tudo o que lia era bom para rasgar a página, voar a página, mastigar, deglutir, cheirar. A prosa passou a ser-lhe compulsiva, mas a poesia volta cada vez que termina um livro, e enquanto não começa outro. Ser pai tem sido também um projecto visceral e arrebatador, mas durante três anos nenhum poema se veio colar ao seu bebé. Aos três anos, contudo, veio o
FILHO
A mão dele ainda cabe aberta
Na minha mão fechada.
No dia em que não couber,
vou em busca do abraço
que encerre em mim uma volta.
O olhos dele ainda brilham
nas frestas do olhar do pai.
No dia em que não brilharem,
buscarei em mim o véu
que lhe devolva o horizonte.
E os seus ouvidos vibram,
desaguando os meus passos.
No dia em que não vibrarem,
vou em busca do silêncio
que me deixe ouvir os seus.
Enfim, um dia, o meu filho,
não vai querer um beijo meu
à porta da sua escola.
Nesse dia, a ternura
que docemente traduz
a violência pura
do amor,
vai sentar-se na mão,
a mesma mão
que em si fechava a sua,
e descansar
sobre o seu ombro,
calada.
Se ao menos nesse dia ele deixasse
fechar sobre si o abraço...
Pedro Guilherme-Moreira
2003-07-30
E é homem de todas as mulheres mas de uma só, e não é a mãe, é aquela com quem namora há vinte e cinco anos e que ama ao Domingo.
Ao Domingo,amo-te do outro lado da casa,fico à escuta de joelhossob a manta escocesa
Ao Domingo,amo-te por seres uma certeza
E podia contar mais, mas chega a manhã do Mundo.
Aproximou-se assim:
Chegou assim:
E finalmente, em homenagem às mulheres, contou uma parte da história assim:
Quando no dia 11 de Setembro o professor Marcelo escolheu o livro do tracinho, o Pedro Guilherme-Moreira recolheu-se, humilde, perante a certeza de que mais de um milhão de pessoa estavam a vê-lo naquele momento.
Então o Pedro Guilherme-Moreira soube que aquilo que tinha decidido, nunca mais parar, era para levar avante, não por si, mas pelos abnegados leitores que lhe têm enchido a alma. (...)
PG-M 2011
Published on September 25, 2011 14:47
September 22, 2011
O sistema circulatório das palavras
Não encarei as minhas recentes idas às televisões como actos de normalidade. Quase assisti de fora, como qualquer outro curioso. E nunca gostei. Como poderia, se me vejo toldado? Como poderia, se recebi um décimo do que eu próprio sou ao espelho, que ainda assim será o dobro do que os outros têm de mim para si e metade do que o Valter Hugo Mãe diz que somos quando amamos ou somos amados?Quando escrevo, as palavras saem-me do peito, aquecem viajando pelo sangue e chegam em ebulição à ponta dos dedos. Normalmente desdobro-as como lençóis distendendo as falanges, e só depois as verto para o pedaço em branco, que já nem papel é. É um processo eminentemente físico. Já não é o indicador e o polegar a sustentar a pena, com o lápis ou a caneta *, são os dedos todos, como se abordasse um piano e nele tocasse uma sinfonia surda. Escrever é cada vez mais parecido com música. A relação que tenho com os diversos teclados tem de envolver a carícia, a percepção do material de que são feitas, do bisel ou, agora, da consistência dos ecrãs. Só quando o espaço em branco já o não é entra o cérebro.
Em conversa com outra pessoa o processo é idêntico, mas há um breve estágio no cérebro, o regresso às mãos, que se movem e tocam o outro e a expressão das palavras pelos lábios e pelos olhos. E as não ditas, que ficam na inclinação do corpo, do rosto, nos sorrisos e nos silêncios. Às vezes em beijos ou em apertos de mãos. Em abraços. Em pancadas nas costas. Em corpos que se cingem, mesmo que parcialmente.
Quando falei nas televisões, as minhas mãos estiveram, quase sempre, imóveis. Sei que, quando os amigos ou conhecidos me disseram que estive bem, o "estar bem" é não ter comprometido. Antecipei algumas perguntas, mas nunca fui capaz de as abordar como abordo qualquer tema por escrito. Fico sem ideias e sem vocabulário, sem cultura, esqueço-me, sou eu próprio a folha em branco, desconheço e estranho aquele processo físico em que o cérebro se tem de antecipar, e rapidamente, a tudo o resto. Olho para cima e para baixo, se tenho muitas ideias gaguejo, se tenho uma só digo pouco. Não sei fazer nada primeiro com a cabeça. Gelo. Fico preso de movimentos.
Só um momento me faz justiça: quando a incapacidade, - esta imensa incapacidade de honrar a vontade de comunicar - sai quase como um pedido de desculpas pendurado no sorriso e nos meus olhos se consegue ler a humildade e o respeito pelo interlocutor. Momentos houve em que foi possível comunicar pelo silêncio e pelo toque, mas antes ou depois do directo ou da gravação, nunca durante.
A reflexão, contudo, deu-me o mapa do (meu) sistema circulatório de palavras.Conhecer-nos é um contributo para sermos melhores perante todos.
* pela caneta ou pelo lápis estou moribundo. Sou da geração que está em crise com a caligrafia e em relação com a dactilografia. Não dramatizo. Aliás, ao escrever à mão devemos ter apenas o dever cívico da perceptibilidade. Concordo com o exercício de caligrafia das crianças na primária, precisamente pelo treino de perceptibilidade, mas discordo que continuemos a querer descaracterizar a letra dos miúdos do quinto ano em diante. Apenas as profissões que têm a caligrafia como parte do seu objecto, que praticamente já não existem, devem manter essa preocupação de retirar todo o sentimento e personalidade das letras para atingir uma caligrafia média. Essas profissões, enquanto sobreviverem, fazem parte de especializações. A letra, devendo ser perceptível, deve também conter sentimento. Mostrar a um menino a letra redondinha de uma menina como modelo é falta de respeito pela sua idiossincrasia. Não tenho caligrafia. Não quero ter. Quero ter letra nos raros momentos em que precise dela. Escrevo em letra de forma há muitos anos. E nem me digam que se deixaram de escrever cartas por causa disto. Eu faço por, desde que me lembro, dizer ou escrever uma coisa diferente a alguém todos os dias. A minha mulher é a mais bafejada, claro, mas não há amigo ou conhecido que não tenha direito à minha carta escrita, mesmo que seja oral, durante a vida. Tenho esse vício de comunicar e de dizer o que tem de ser dito, antes que a morte.Tem havido pessoas que acham que essa alma sempre aberta está disponível para a desbunda, outros assustam-se, pensando que vão ser colonizados por mim. Mas quando eu digo que dou a alma - por vezes até parte do corpo - a todos não quero dizer que permito que excedam o meu acto de dávida e o queiram tornar uma obrigação regular ou reiterada. Aceito uma dádiva de resposta, não duas. Porque eu regresso sempre ao meu canto e desapareço. É o meu defeito, o meu excesso de pathos, como tão bem me leu o Zé Mário Silva.:).
PG-M 2011fonte da foto
Published on September 22, 2011 03:55
September 21, 2011
Mulheres de fato-de-treino de duas peças combinadas: uma emergência social
Há um infantário aqui na terra em que a farda das educadoras é um fato-de-treino de duas peças combinadas com o logótipo da instituição, e que elas vestem todo o ano durante o horário de expediente. Há duas multinacionais aqui na terra em que as pessoas trabalham por turnos vinte e quatro horas por dia e nenhuma delas veste fato-de-treino. Ao longo dos anos sempre pensei o que seria daquelas crianças, tendo por referência mulheres de fato-de-treino de duas peças combinadas.A coisa piorou. O infantário passou a admitir alunos para o ensino primário, e todos sabemos que no fim da quarta classe os meninos já olham para o lado feminino com uma certa conotação sexual. Passei a temer por aquelas crianças, com a certeza de que não demoraria muito tempo até que as suas fantasias sexuais incluíssem uma mulher de fato-de-treino de duas peças combinadas. O lado bom dessa tragédia é que sonhariam, certamente, estar a tirar o fato-de-treino de duas peças combinadas, de uma só vez e à bruta, às senhoras. O lado mau é começarem a ir para a escola secundária também de fato-de-treino. Tenho um irmão que andou nesse infantário e é hoje um inadaptado que leva para o emprego, diariamente, um fato-de-treino Domyos, que, apesar de ser uma marca de grande qualidade e prestígio social, contribui para lhe toldar o entendimento. É ostracizado desde tenra idade, ao ponto de também nós, na família, nos termos visto obrigados a usar fatos-de-treino quando o acompanhávamos à escola, à discoteca ou ao café, para propiciar a inclusão. O meu irmão começou a ter apoio da segurança social. O problema é que muitas das assistentes sociais que tratam destes casos de emergência social também usam fato-de-treino de duas peças combinadas.É verdade que ao fim-de-semana as educadoras do infantário cá da terra largam o fato-de-treino de duas peças combinadas e tornam o chinês que é dono da loja chinesa orgulhoso. Mas um vôo picado de qualquer aeronave pessoal poderia detectar as centenas de fatos-de-treino a poluir os estendais da vila, em vez de roupa branca, precisamente na altura em que todos os fatos-de-treino saem à rua para as passeatas saudáveis de fim-de-semana.Tenho um primo que me disse que já viu, como seus próprios olhos, os que a terra há-de comer, casais e grupos de casais a fazer jogging com fatos-de-treino rigorosamente iguais uns aos outros, e que a sua namorada, uma figura pública locutora de televisão, teve uma quebra de tensão naquele preciso momento, batendo com a cabeça no lancil. Foi apenas um susto, mas, uma vez mais, é incrível que nenhuma autoridade pública esteja sensibilizada para o carácter alargado desta emergência social e para a alta perigosidade dos indivíduos que estão sujeitos a nela cair.Espero que o governo gaste alguns milhões numa campanha que recupere os fatos-de-ballet com que todas as mulheres faziam exercício físico nos anos oitenta, mesmo que não bailassem.Ou então que obrigue os fabricante de fatos-de-treino de duas peças combinadas a debruar frases iguais às que mandaram imprimir nos maços de tabaco: "usar fato-de-treino de duas peças combinadas pode matar alguém".A esperança maior ainda é o Acordo Ortográfico, que vai separar o fato do treino e torná-lo ininteligível como entidade autónoma. Valham-nos os linguistas.PG-M 2011fonte da foto: Decathlon
Published on September 21, 2011 03:59


