Pedro Guilherme Moreira's Blog, page 44

May 5, 2013

poema à mãe e outras vidas

Mãe, porque é que as palavras duras são mais doces do que duras as doces, e porque é que tanto duram as secas como se desfazem as que eles vendem em apresentações de vinte e oito comprimidos de cristais e tudo se passa num instante enquanto ardemos? Mãe, porque é que os milagres foram substituídos por talidomida? Escrevo-te a estas horas altas para disfarçar. Não quero que no topo da minha página do facebook esteja uma opinião política, mesmo que os meninos da quarta classe ma viessem a apodar de generosa, quero literatura aqui em cima, mãe. Lembras-te de como eu me sentia crescido quando passei para a terceira? Fiquei pequeno de novo, mãe. O recreio é severo. Ainda não consigo ser o mais forte nos domínios dos plátanos. Aflijo-me com os fracos, disse-te que este ano não os deixaria a descoberto, mas ainda não posso, mãe. Ainda fico nas escadas a olhar os grandalhões sobre o pão com marmelada. Quando tenho a boca cheia, desvio os olhos. É nessa altura que os pequenos são gozados e todos se riem. Quase levam os relapsos em ombros. É por isso que quando hoje ler a minha redacção política os meninos do quarto ano me apoiarão sem hesitações. Endorsment. Sabem que não levanto ondas, que sou fiável, mesmo que não concorde com multidões nem me junte a elas. O preço é relevante. Estão lá as meninas mais bonitas, mãe. Que ganho eu em querer fazer coisas com os nerds e as professoras? Tenho de ficar sozinho e disponível a comer o meu pão com marmelada para os grandalhões saberem que não pertenço. Que estou deserto. Livre. Mas escrevo-te, mãe, para te dizer que quero literatura no topo da minha página do facebook. Assim apouco a minha redacção política, que está por baixo. E digo-te o que importa, minha mãe, e digo-o completamente, e passo da literatura à vida, que a todos serve, por uma vez: vai correr bem, mãe, vai correr tudo muito bem. Afinal, a maior de todas és tu. Mãe. Eu, mais pequeno, vou a caminho da cidade que já não existe. Que vento atrasa as faias em Idanha, que sombra adianta as magnólias em Coimbra, que apneia suspende as areias em Francelos? E os invernos, mãe? Tu a separar-me as galochas de borracha preta e a cingires o meu sorriso ao essencial do sofrimento, as paixões negras, as gaivotas do Don Henley no baptizado do Marco, ninguém na estrada, ninguém na rua, a Joana como o grão do anjo e os corações candentes, o avô a posar com a avó junto ao portão verde e a deixar o BMW de estofos vermelhos de pele na palma da mão. E a trincheira agora. O rasgo na terra, os helicópteros ao longe, haverá resgate? Quem está pior? O escritor está de vísceras, deixá-lo. Mãe, achas mesmo que as raparigas gostam de rapazes altos? E alto, o que é alto, mãe? Davam leite simples e pão com marmelada. Davam felicidade em batas brancas passadas a ferro com vincos. Davam nomes. Bordavam. A Eduarda era padeira. O irmão atirava paralelos à nuca. A Sofia era e já não é. A Dona Laura será sempre. Não está em causa a memória de um. Está a de todos. E no meio de todos cada um tem ao peito o abismo de um tempo que não volta. Excepto para ti, mãe. Volta para ti a bandolete amarela, a saia curta, o cabelo armado, o stacatto. Uma frase em suspensão. Uma valsa, a tua mão em arco amplo, o corpo delgado. Toma-se nos braços. Roda. E roda. E roda.

PG-M 2012
fonte da foto
 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on May 05, 2013 11:27

May 1, 2013

Primeiro

 Meu amor, o dia nasce, os galos replicando a Aurora, o derrame das ursas nos quintais da Celeste, copiam breves pautas pequenos pássaros em vastas copas de Pomar e há um só risco de luz no fundo dos olhos, primeiro de Maio, depois de ti, que de mim nasces numa volta da cama, os lençóis quentes puxados para cima dos ombros, bom dia, que horas são?, é cedo, dorme, voltam-se os corpos no espaço sideral e o dia nasce e a revolução está feita. Nós não. Nós ainda não. Ainda se dorme dentro da casa. PG-M 2013fonte da foto
 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on May 01, 2013 04:31

K.S.F.!

Vivemos anos alimentados a Calvin, que começava o nosso dia na última pagina do Público. Ainda sentimos, mesmo ao ler esta adaptação, o tom de genialidade e humor que nos salvava os dias e nos dava coragem de ir em frente.:) E hoje rimo-nos de todas as vezes em que relemos a prancha. É a nossa cara.  
 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on May 01, 2013 04:25

Em Maio (reeditado)

Em Maio, amo-te nuasem memória do inverno,amo-te o corpo na ruaamo-te o rasgo de infernoe nem sol te contém,passas da sombra, da luz,do tempero e do desdém,da vénia que te depus,
e vens-te.Em Maio,
amo-te no vestíbulode todos os lugares do mundo,assim, rotundo,imundo,nos pórticos de paláciosnas antecâmaras do marnas dunasno quartono tectonos espasmos do capimno não no simnas montanhas e planaltosnos saltos altosnas desculpas nos pretextosentradas de dicionárionão somos corposbissextosamantes de breviáriovais fazer-me no ginásiovou comer-te no granitodo tampo que te tiverem refeições imprecadas na incoerência da nossacozinha.Venha quem vier
Em Maio és minha
PG-M 2011
 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on May 01, 2013 04:16

April 23, 2013

Revolta na estante


Tenho aqui milhares de livros amuados a dizer que hoje é o dia.
Querem sair, ver mundo, em vez de mostrar.Estão fartos de estante e prateleira. Alguns de segunda fila dizem que é como se estivessem mortos. Os da prateleira inclinada do ikea, onde tenho as primas, explicaram-me que estão enjoados daquela posição atípica e do excesso de mérito. Que os misture com coisas leves e com mais nervo. A verdade é que a indignação cresce e eu começo a correr perigo. Que é injusto que sejam quase sempre os mesmos a sair. Na casa de banho, o "Vida e destino" e a "Odisseia" olham-me com desprezo. Este último consulta o relógio, por ser livro de biblioteca e saber que o prazo de empréstimo está quase no fim. Já não é a primeira vez que tento fazer a vontade a um e me caem todos em cima. Disse-lhes que não podem sair todos, mas prometi que roubava um hoje para trazer agitação à casa. O último que roubei foi uma edição bonita da Madame Bovary, que nesse dia viajou de comboio e a que no regresso uma amiga juntou um da Julieta Monginho. Calei-os. Estava determinado a roubar um "Livro do desassossego" que li na adolescência, mas depois lembrei-me que as últimas edições o duplicaram, e que o mais certo era ele ser desprezado por todo o acervo. Os livros de Direito, esses, estão mortos e já ninguém os rouba. BD, disse uma edição da Bíblia que sempre estranhou estar na secção de livros de poesia. Tens pouca BD, já chega de tanto palavreado sem cor. Eu vim com aquela treta de a cor ser das palavras e tive uma grande vaia dos dezoito volumes do Houaiss, que cliché, experimeta vestir sempre de cinzento e convencer os outros que até tens um interior bonito. Dizem que no natal em que arrumei na estante uma belíssima edição de The Tale of Peter Rabbit" - facsimilada da original, mas pop up - houve comoção na estante virada a sul. Ninguém se queixa nessa estante, onde estão outros dicionários e uma edição brasileira de "...e o vento levou" de 1940. E eu concordei. Hoje roubo-lhes BD. Calaram-se. Dei-lhes os parabéns pelo dia e ouvi vários "pfff".
PG-M 2013
PS: não percam o vídeo supra, não hoje, que é o dia
 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on April 23, 2013 09:46

April 20, 2013

Eu, tu, os nosso filhos, aqui, agora (Lazhar)

Depois do filme "A Caça" nos ter virado a pele do avesso quanto ao nosso tempo e ao nosso relacionamento com a inocência (em todos os sentidos), não satisfeitos, os arautos dourados do cinema trazem-nos outro momento que nos confronta dolorosamente com o nosso tempo, as nossas pessoas, as nossas coisas em "Monsieur Lazhar". Não por acaso ganhou nos festivais de Toronto e Locarno, e teve o prémio da crítica no Sundance, do público no Cph, vários Genie e Jutra awards, o do realizador em Palm Springs, do júri e do público no RiverRun, argumento em Sidney e Valaldollid, para não falar nos inúmeros prémios individuais para os actores - não esquecer também que era um dos cinco nomeados este ano para o óscar do melhor filme estrangeiro. Vejam como está aqui o mundo. Tudo numa obra simples, que não precisa de problematizar para descarnar - e o faz com inteligência (como tudo devia ser). Já lá vamos. Numa escola preparatória de Montréal - o filme baseia-se numa peça, portanto é o tal olhar ao espelho - há um momento de excepção na vida de todos, que afinal não é excepção nenhuma porque, nas vidas todas juntas também as excepções de juntam numa regra de sofrimento: é, afinal, a condição humana. O que impressiona neste filme é o trabalho dos actores infantis, tal como já acontecia no filme dinamarquês. Mas aqui são mais. A cena final é do melhor que o cinema (ou o teatro) podem ter para oferecer a alguém e ninguém - ninguém mesmo - pode ficar imune. Ou impune. Atenção especial a Sophie Nélisse - na foto - (a mais premiada), Émilien Néron e Marie-Ève Beauregard nas personagens de Alice (a favorita de todos nós), Simon e Marie-Frédérique, mas não só. Enfim: vão ver. É obrigatório para que a inquietação que trazemos no peito se ligue a todas as inquietações do mundo e nos permita mais lucidez da próxima vez que se nos deparar uma decisão difícil. Nota intratextual: Aqui no blogue vamos ao cinema mais do que uma vez por semana, mas não escrevemos sobre cinema uma vez por semana. Só cá aparecem os (raros) filmes - uma dezena por ano, às vezes menos - cuja urgência nos impele a dizer ao próximo, de forma nada escolástica: olha, se queres desatar um nó, captar o sentido das coisas, como na grande literatura, como na grande arte, está aqui, senta-te, fecha-te no escuro, fica duas horas a ver isto, afinal podes nunca ter esta conversa, podes nunca chegar lá por ti. Daí o plural majestático: eu, tu, os nossos filhos, aqui, agora, somos nós. Monsieu Lazhar somos nós.
PG-M 2013fonte da foto
 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on April 20, 2013 15:33

Nós, palhaços

Às vezes, estúpido, penso que a manhã trará por si algum rasgo, alguma inspiração. Como tantos, começo a procurá-lo ligando a tv, lendo o jornal, olhando para as caras no caminho do tribunal. Muitas vezes, demasiadas vezes, nada ressalta. Quando está este sol, um certo sorriso de acolhimento colectivo ameniza esse desencanto. Mas finalmente chega o café do meio da manhã e eu pego no livro, há semp...re um livro, reparo em quem não tem um, como olha o vazio, como mesmo com o sol na cara o olhar regressa. Observo isto há anos. Não mudou com a crise. E então entro pelas secretarias e pelas agências e escritórios a disparatar, a ver se alguém levanta os olhos, já mal uso gravata, e se uso apouco-me perante os mais modestos, uso o vernáculo, trago-os de dentro das peles grossas, dispo-os das mágoas para ficarmos todos a rir do nosso ridículo. Depois vou correr à hora do almoço e ainda fico mais insuportável. Nos dias de tempestade, venho da chuva para secar quem puder pelo caminho. E tiro sempre meia-hora para abanar gente em facebooks e emails. Há quase meio ano que uma situação passageira me traz incapaz de tanta palhaçada - algo irrelevante, mas ainda assim suficiente para não me pintar nem fazer o número. Felizmente estou uns quilos mais gordo e uns anos mais velho e percebo ao espelho que só me resta a alternativa do circo. Tenho de me voltar a pintar e cortejar o mundo inteiro com o meu ridículo. Uma só gargalhada e algumas horas do dia ficam suportáveis. Muitas e a vida toda, que são dois dias, fica leve para o público do palhaço. Ao longe, vejo em cada televisão ligada em cafés o programa do Goucha, vejo a loura da Malveira a disparatar e os olhares vazios a transbordar de riso. A vida precisa dos que aceitam ser palhaços. Amanhã ainda vou carregar mais na base. E no livro, sempre o livro.
PG-M 2013
fonte da foto
 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on April 20, 2013 03:25

in memoriam

Ponham isto na minha biografia de arrumador: "À hora do almoço equipava-se com trapos e sapatilhas velhas no ateliê da mãe e, ao contrário de O'Neill, que por causa do coração foi proibido pelo médico, corria contra o vento. Foi por isso que o arrumador, mesmo tentando ser um homem frio e insensível, nunca o conseguiu."   
 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on April 20, 2013 03:16

corpo-livro

e depois disse-lhe que era isso que acontecia aos corpos que se demoravam naquela estante de livros. Passavam a pertencer-lhe, caindo para dentro dela.  
 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on April 20, 2013 02:50

April 19, 2013

A queda



Domingo, 14 de Abril de 2013: Alguém me disse que não nos devemos emocionar com demasiada frequência: tenho andado a reflectir sobre isso, um destes dias estará suficientemente maduro para passar ao "papel", mas a verdade é que este fim-de-semana correu mal para moderar encantamentos: vi finalmente o Taxi Driver em grande ecrã (uma obra-prima absoluta por tantas razões que até me cansa pensar nelas todas, e um De Niro que merecia dois óscares só por este papel e acabou por não ganhar nenhum), li a crónica do Tolentino de Mendonça no Expresso sobre os abraços do Cesariny às árvores e, precisamente, a capacidade de nos emocionarmos com a natureza (termina com uma citação de Raúl Brandão que valida quem se comove "em demasia"), chorei para dentro com a crónica de hoje do Ferreira Fernandes na Notícias Magazine sobre a viúva do Oswald Laurence que ia à estação de metro ouvir a voz do marido depois de morto (andarão os vossos amores em busca da vossa voz, quando vocês morrerem, locutores?) e fiquei eléctrico com a do Munõz Molina sobre o James Salter no Babelia (El País de ontem) - tomei dezenas de pequenas de decisões de vida ao comover-me, coisas que me levam para lados mais altos e melhores, e até me deixam num torpor físico parecido com outros êxtases. Mas a pergunta que faço, por causa da amiga - era uma amiga, sim - que me disse que se nos comovermos com tudo não nos comovemos com nada, é: que mal virá de toda esta emoção? Cair de mais alto?
PG-M 2013fonte da foto
 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on April 19, 2013 08:02