Joca Reiners Terron's Blog, page 5
July 21, 2015
Educação siberiana
O mercado editorial tem recebido sinais de que a era da ficção chegou ao seu final. Caem vendas de romances, publicam-se cada vez menos contos e a imaginação parece não ter mais espaço. Com a crescente complexidade do que se compreende por realidade, os relatos memorialísticos à beira da não-ficção têm despertado interesse. Os leitores parecem dizer: o mundo já está complicado demais, então nos dêem algo verdadeiro. É onde entram produtos como “Educação Siberiana”, de Nicolai Lilin.
A questão também traz seus impasses, entendendo-se aí — e de modo equivocado — a fantasia pura como espécie de mentira abstrata contraposta à “verdade” implícita ao depoimento. As aspas se devem às numerosas farsas difundidas nos últimos anos, tantas desde “Fragmentos”, as memórias de infância num campo de concentração forjadas por Binjamin Wilkomirski, até as recentes polêmicas envolvendo a veracidade das reportagens do jornalista polonês Ryszard Kapuscinski.
Veracidade é o mito em questão. De acordo com Kant, os humanos têm mania de entender as coisas por meio de categorias mentais. Com a atual profusão de mídias de todos os formatos e espessuras, torna-se cada vez mais difícil captar em meio ao vendaval de imagens alguns planos básicos da consciência, como os narrados por Nicolai Lilin. No rastro da abordagem da máfia de Roberto Saviano, o autor de “Gomorra”, ele explora sua juventude entre a comunidade dos urcas, criminosos exilados pelos soviéticos da Sibéria nos anos 30 para a Transnístria, região da atual Moldávia.
No aprendizado do jovem Lilin, o modelo a seguir é o de Kúzia, avô que vive solitário às margens do rio. Receptáculo da velha ética criminal, o velho lembra o mestre jedi Yoda, maldizendo o desrespeito das novas gerações e perpetuando a lealdade familiar como alicerce. Há passagens de violência, claro, mas a idealização dessa filosofia é tamanha a ponto de lembrar “Os Meninos da Rua Paulo”, clássico infanto-juvenil do húngaro Ferenc Molnár.
Ao receber sua educação através das regras de conduta baseadas num comportamento todo próprio, como costuma acontecer no submundo, Lilin descobre o que existe de mais primitivo (no sentido de ligado às origens) na essência masculina. Os rituais de comunicação e a codificação da linguagem, a iconização de armas e de tatuagens, tudo se reveste de ortodoxia muito próxima da religiosidade. Ler “Educação Siberiana”, portanto, relaciona-se àquelas incursões de regresso ao mundo selvagem que se tornaram moda há algum tempo, com homens de mãos dadas em volta de fogueiras e uivando para a lua.
Sob tal perspectiva, torna-se mais fácil compreender o sucesso desses relatos, sejam baseados em fatos ou não. Trata-se de um encontro do leitor com certa verdade substancial identificável, facilmente corroborada por ser travestida de depoimento pessoal. É comum se afirmar que a realidade é mais poderosa que a ficção, porém o contrário também pode ocorrer.
Educação siberiana, Nicolai Lilin, Objetiva, 2010


A revolução das coisas (notas sobre uma peça)
A revolução das coisas está em pleno curso. Não se trata de um movimento que busque resguardar os direitos do consumidor, mas daquilo que é consumido. Nada de discussões teóricas acerca de temas jurídicos ou de aprofundamento psicanalítico, afinal coisas não têm voz ou psique. As coisas querem ação, querem protagonismo. Anseiam por ser personagem, e não pertencer ao cenário.
Contudo, as coisas não requerem condições de igualdade. Não desejam apenas “comprar” seus compradores. Se existe algo que elas acumulam sobre si — ou dentro de si — é a ânsia humana pela possessão, a angústia pelo fracasso em obtê-las ou a leviandade de seu próprio abandono — elas não suportam ser abandonadas. Essas são características de seus proprietários ou de seus pretendentes que elas herdaram. As coisas são depositárias dos imateriais defeitos humanos, são restos e herança, ao mesmo tempo. Como nas crenças espíritas, elas atraem, guardam e metabolizam sentimentos e sua exigência agora é devolvê-los aos donos. Fazer com que experimentem a coisificação imediata, que eles também provem a sensação de ser coisa. Trata-se da vingança dos objetos, e, em vez de almejarem o consumo, eles promovem a transformação dos consumidores em objetos de consumo. Eles viram o jogo.
É disso que falamos: desse impossível drama entre sujeito e objeto, entre coisa e ser, entre cenografia e personagem. Os personagens têm aspecto fantasmagórico por já se encontrarem no limbo, no limite entre objeto e sujeito. Ainda não sofreram total metamorfose, mas estão a caminho disso. O público está presente apenas para assistir os capítulos finais de tal embate, que é encadeado através dos seguintes conflitos:
A Consumidora deseja ardentemente o Vestido Vermelho, sem consegui-lo. O Vestido Vermelho a persegue, apavorando a imaginação da Consumidora, até inverter a situação — ao persegui-la, o Vestido Vermelho é que se apropria da Consumidora, e não o contrário, transformando-a num vestido, no objeto de seu desejo. Ao final, ao mesmo tempo que a estrangula, o Vestido Vermelho estende seu tecido à Consumidora, metamorfoseando-se nela. Tornam-se uma só coisa.
O Errante deseja libertar as coisas de seu sofrimento. “Liberta” as moedas da Fonte dos Desejos. Destrói símbolos que personificam o comércio, como placas anunciando liquidações e vendas no atacado. Ao lado da Faxineira Filósofa é o único a ter consciência do que acontece, embora a manifeste por meio de seus atos e não verbalmente. É um terrorista lírico, e comunica-se por meio de eventos.
Ao surgir, a Noiva já apresenta membros plásticos. Devido ao estágio de transformação não completado em que se encontra, ela esboça certa consciência crítica, e questiona se deve mesmo seguir o modelo de noiva que lhe foi imposto (ou por ela desejado). Mas transformar-se em manequim é questão de horas. De minutos, talvez. A partir daí, transformada em noiva ideal, em boneco de vitrine de medidas perfeitas, o que ela pensará?
A relação do Solitário com as manequins é invertida, pois ele as enxerga como seres vivos, e é através de sua imaginação ou de seus delírios de fetichista que o público tem acesso aos diálogos. O Solitário conversa apenas imaginariamente com as manequins, que representam de modo mais explícito o abandono sofrido pelas coisas, justamente o que principia sua revolta. A fala das manequins traduz o sofrimento dos objetos. Algo, porém, no isolamento de seu abandono torna as vísceras plásticas delas em vísceras verdadeiras. O coração bate uma, duas vezes, depois não para mais. Não há revolução sem dissidências.
Na conversa entre Rádio Infinita e a Gerente da Oficina de Costura sabe-se da rebelião em curso e da chegada do Demônio das Coisas Sem Dono, um golem que representa o imenso abandono sofrido pelas coisas, o Dibutronik. A Gerente sabe das coisas, representa a visão de um mundo rural que se opõe ao urbano, é uma espécie de bruxa arquetípica. Ela costurou o Vestido Vermelho, amaldiçoando-o, e tem responsabilidade sobre o curso dos eventos.
Diva Lhama, graças aos ensinamentos de seu guru Dalai Lhama, é uma personagem que atingiu a iluminação e intuiu que não era mais dona de todas as coisas que reunira, mais bem o contrário: ela foge para não ser possuída pelas coisas que tem. A única possibilidade de fuga é o isolamento monástico, e por isso Diva Lhama desaparece. Mas essa repetição de procedimentos de rockstars do passado não sugere uma nova estratégia de venda, a recauchutagem espiritual do personagem? Inconformada por ter se deixado enganar, a Diva retorna às origens, animalizando-se.
Consciente ou apenas intuitiva, a Faxineira Filósofa se mantém à margem dessa guerra. Ela está mais para uma legista dessa realidade, por não fazer economicamente parte do jogo de possessão e passividade existente entre sujeitos e objetos. Ela vê, imagina, pressente, e por isso sua fala é intensamente vaticinadora. No diálogo com a Manequim Defeituosa, ela procura avisar ao objeto sob sua condição primeva de coisa abandonada, e portanto, de sua condição de lixo. Ela procura avisar ao objeto, representado pela Manequim Defeituosa, depois tem o fluxo de consciência no qual delira, e então fala diretamente ao lixo que encontra na rua ao lado da Paralítica. Sua resposta é o advento do Dibutronik.
O Cracômano foi abandonado tanto por sujeitos (seus semelhantes) quanto pelas coisas. Está apegado à pedra, que representa sua última chance de propriedade ou de consumo. A pedra, porém, também se rebela diante da posse. O amor que o Cracômano lhe dedica faz com que cresça, e ela termina por consumi-lo.
O Quarteto Fantástico vende coisas falsas, imitações baratas de fantasias de super heróis, e cada um deles terminará preso à sua roupa, que colará à sua pele, impedindo que eles voltem a ser o que eram. A fantasia falsa que vendiam cola em seu corpo, substituindo-lhes a pele.
Há um sentido de a etapa final desse drama ser encenada no palco de um teatro em ruínas: é ali que a cenografia subjuga os atores ou personagens, substituindo-os em seu protagonismo. É o campo de batalha no qual os sujeitos habituais da realidade do mundo, os seres, são derrotados pelas coisas, pelos objetos. Não é, repetindo o que o Vestido Vermelho diz à Consumidora na cena final, “exatamente um lugar, mas um tempo. Uma hora, um minuto, um segundo. Um instante. É aqui. É agora.” Os objetos, afirma Wittgenstein, “constituem a substância do mundo (…) Se o mundo não tivesse substância, ter ou não sentido uma proposição dependeria de ser ou não verdadeira uma outra proposição. (…) Seria então impossível traçar uma figuração do mundo (verdadeira ou falsa).” A coisificação das pessoas transformaria o mundo num lugar fixo, sem vida. É por isso que o último ato não pode culminar senão em morte, em entropia.


July 7, 2015
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Capa da edição mexicana de “A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves”, a ser lançada em novembro pela Editorial Almadía, de Oaxaca, em excelente tradução da poeta Paula Abramo


August 22, 2014
A parte maldita
Na noite de 8 de julho de 2013, Darrel Reynolds, um homem de 54 anos, foi preso no estado norte-americano do Texas por ameaçar a platéia de um cinema que exibia o filme Guerra Mundial Z. Nota: o acusado não apontava uma arma aos espectadores, mas seu dedo indicador. Com esse episódio, a representação simbólica do crime obteve alcance inédito, assumindo inegáveis contornos abstratos e afetando a tradicional compreensão jurídica do que pode ser considerado um crime. A partir daí, apenas o gesto que imite a ameaça é suficiente transgressão para ser criminalizado. A ser inaugurada na Galeria Vermelho, a exposição coletiva Suspicious Mind, com curadoria de Cristina Recupero, aborda a relação entre arte e crime e pretende aprofundar a reflexão a respeito do tema. Esse jogo de atração e repulsa é antigo, e remonta ao seminal ensaio Do assassinato como uma das belas-artes, de Thomas De Quincey, de 1827. Evoca também a existência marginal de artistas como o poeta François Villon, nascido em Paris em 1431, e desaparecido após sair da prisão em 1463, e do célebre pintor Caravaggio (1571-1610). Ambos foram bandidos, e até hoje suas lendas inspiram a imagem romântica colada à figura dos artistas. Villon era ladrão, além de homem violento, e por muito pouco escapou da condenação à forca. Envolveu-se em um roubo ao colégio de Navarre em plena noite de Natal e em diversas tentativas de assassinato. Caravaggio tinha personalidade intempestiva e se meteu em terríveis brigas, assassinando um rapaz. Foi condenado pelo Vaticano, e provavelmente morreu envenenado por inimigos. As vidas de ambos seriam quase desconhecidas, não fossem seus registros criminais e sua obra artística. De acordo com Cristina Recupero, a questão comportamental é importante em “Suspicious Mind”. “A imagem do artista é a de alguém que vive nas margens da sociedade recusando-se a cumprir com aquilo que está acima, as leis. De certa forma, o criminoso e o artista respondem a aspirações que estão além do comum”, afirma afirma a curadora, citando o incidente ocorrido com William S. Burroughs em 6 de setembro de 1951, quando em uma brincadeira de Guilherme Tell temperada a álcool e benzedrina, o escritor assassinou com um tiro na cabeça sua mulher Joan, cujas últimas palavras foram: “vou fechar os olhos. Não suporto ver sangue”. Com tais detalhes, a cena — ocorrida em uma villa da Cidade do México — parece um happening construído ao molde das idéias preconizadas por De Quincey em seu ensaio satírico sobre o assassinato como um evento estético. Burroughs passou apenas 13 dias na prisão. Alguns biógrafos relatam a transformação ocorrida com o escritor depois da morte de Joan. Oliver Harris, organizador de sua correspondência, afirma que “a partir desse momento, sua vida é lida como como um romance; um romance que, é claro, muitos poucos gostariam de escrever e que talvez somente Burroughs pudesse viver e escrever.” É provável, porém, que além das consequências do homicídio praticado, outras causas modificaram Burroughs, conduzindo-o de vez à construção de sua obra literária. Na contramão da exegese biográfica corroborada pela perspectiva sugerida por Suspicious Mind, a reportagem La Bala Perdida: William S. Burroughs en México (1949-1952), do escritor mexicano Jorge García-Robles, revela a influência da impunidade mexicana como essencial para a visão de mundo de Burroughs. Contraposto aos EUA, o México era “um país oriental que reflete dois mil anos de doenças e miséria e degradação e estupidez e escravidão e brutalidade e terrorismo físico e psicológico. México é sinistro e tenebroso e caótico, com o caos próprio dos sonhos. A mim me encanta”, escreveu Burroughs em uma carta a Jack Kerouac. Presente na exposição, Habitat Sequences, instalação do artista visual e cineasta holandês Gabriel Lester (Amsterdã, 1974), estabelece pontos de contato com o episódio transformador experimentado pelo escritor beat no México. Composta por salas cujas paredes pintadas de preto são iluminadas através de desorientadores flashes vindos de diferentes pontos, a obra pode tanto simular a desorientação mental sentida às vésperas de uma catástrofe (pessoal, como a vivida por Burroughs, ou massiva feito a iminência de um terremoto), assim como a recomposição fragmentária do espaço habitado, em decorrência do que se mostra e se esconde ao apagar e acender das luzes. O efeito é poderoso. Entre os destaques da mostra está também a video-artista francesa Lili Reynaud-Dewar (La Rochelle, 1975), cujo Speaking of Revolt, Media and Beauty aborda o pensamento de Jean Genet (1910-1986). Outro egresso do banditismo, o escritor e dramaturgo francês era ladrão, assim como seu predecessor Villon. Em sua apresentação aos ensaios de A Literatura e o Mal, Georges Bataille afirma que a geração a que pertence “é tumultuosa”. No mesmo livro, comenta o perfil de seu contemporâneo feito por Sartre em Saint Genet, que acompanha a trajetória desse filho de prostituta que roubou seus próprios pais adotivos, mendigou, foi preso, escreveu na prisão obras que apologizam o mal e incitam ao assassinato, e devido a isto — ao valor artístico de sua obra — recebeu o perdão por seus crimes. Apoiado no depoimento de Pierre Giquel, o video de Reynaud-Dewar investiga os tantos papéis contraditórios assumidos por Genet, de sua delinquência juvenil ao ativismo político da maturidade. Relacionando-se com a recente prisão de Darrel Reynolds e seu indicador “armado”, a representação simbólica do crime aparece no trabalho da dupla paulistana Gisela Motta e Leandro Lima (São Paulo, 1976). Em Armas.obj, os artistas reproduzem fielmente em papel pistolas, submetralhadoras e fuzis utilizados como consoles de videogames. A proposta faz lembrar a proibição britânica de venda de armamentos a civis, que gerou toda uma indústria de réplicas perfeitas nos mínimos detalhes, exceto por seu mecanismo inexistente e pelos canos maciços, inadequados aos disparos. Tais falsificações chegam a ser tão caras quanto as originais. Com sua verve doentia, o escritor britânico J.G. Ballard (1930-2009) sentia fascínio por essa solução tão bizarra, que acabou ocasionando um crime simbólico praticado contra a rainha em 1981: “ela estava sentada em um cavalo, desfilando por Londres com uma coluna da cavalaria em alguma cerimônia. Quando dobrou a esquina e era observada pela multidão, um rapaz disparou nela seis tiros com uma dessas réplicas, seis tiros em falso. Foi preso. Pensei nesse episódio como uma maravilhosa obra conceitual. O rapaz poderia ter trabalhado para Andy Wahrol.” Profético, Ballard afirmou que no futuro as pessoas seriam presas por estampar em cartazes as palavras REVÓLVER ou ASSASSINATO. De acordo com a lógica exposta em Suspicious Mind, essa era em que a realidade e a fantasia não estão mais separadas já chegou.

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A parte maldita
Na noite de 8 de julho de 2013, Darrel Reynolds, um homem de 54 anos, foi preso no estado norte-americano do Texas por ameaçar a platéia de um cinema que exibia o filme Guerra Mundial Z. Nota: o acusado não apontava uma arma aos espectadores, mas seu dedo indicador. Com esse episódio, a representação simbólica do crime obteve alcance inédito, assumindo inegáveis contornos abstratos e afetando a tradicional compreensão jurídica do que pode ser considerado um crime. A partir daí, apenas o gesto que imite a ameaça é suficiente transgressão para ser criminalizado. A ser inaugurada na Galeria Vermelho, a exposição coletiva Suspicious Mind, com curadoria de Cristina Recupero, aborda a relação entre arte e crime e pretende aprofundar a reflexão a respeito do tema.
Esse jogo de atração e repulsa é antigo, e remonta ao seminal ensaio Do assassinato como uma das belas-artes, de Thomas De Quincey, de 1827. Evoca também a existência marginal de artistas como o poeta François Villon, nascido em Paris em 1431, e desaparecido após sair da prisão em 1463, e do célebre pintor Caravaggio (1571-1610). Ambos foram bandidos, e até hoje suas lendas inspiram a imagem romântica colada à figura dos artistas. Villon era ladrão, além de homem violento, e por muito pouco escapou da condenação à forca. Envolveu-se em um roubo ao colégio de Navarre em plena noite de Natal e em diversas tentativas de assassinato. Caravaggio tinha personalidade intempestiva e se meteu em terríveis brigas, assassinando um rapaz. Foi condenado pelo Vaticano, e provavelmente morreu envenenado por inimigos. As vidas de ambos seriam quase desconhecidas, não fossem seus registros criminais e sua obra artística.
De acordo com Cristina Recupero, a questão comportamental é importante em “Suspicious Mind”. “A imagem do artista é a de alguém que vive nas margens da sociedade recusando-se a cumprir com aquilo que está acima, as leis. De certa forma, o criminoso e o artista respondem a aspirações que estão além do comum”, afirma afirma a curadora, citando o incidente ocorrido com William S. Burroughs em 6 de setembro de 1951, quando em uma brincadeira de Guilherme Tell temperada a álcool e benzedrina, o escritor assassinou com um tiro na cabeça sua mulher Joan, cujas últimas palavras foram: “vou fechar os olhos. Não suporto ver sangue”. Com tais detalhes, a cena — ocorrida em uma villa da Cidade do México — parece um happening construído ao molde das idéias preconizadas por De Quincey em seu ensaio satírico sobre o assassinato como um evento estético.
Burroughs passou apenas 13 dias na prisão. Alguns biógrafos relatam a transformação ocorrida com o escritor depois da morte de Joan. Oliver Harris, organizador de sua correspondência, afirma que “a partir desse momento, sua vida é lida como como um romance; um romance que, é claro, muitos poucos gostariam de escrever e que talvez somente Burroughs pudesse viver e escrever.” É provável, porém, que além das consequências do homicídio praticado, outras causas modificaram Burroughs, conduzindo-o de vez à construção de sua obra literária.
Na contramão da exegese biográfica corroborada pela perspectiva sugerida por Suspicious Mind, a reportagem La Bala Perdida: William S. Burroughs en México (1949-1952), do escritor mexicano Jorge García-Robles, revela a influência da impunidade mexicana como essencial para a visão de mundo de Burroughs. Contraposto aos EUA, o México era “um país oriental que reflete dois mil anos de doenças e miséria e degradação e estupidez e escravidão e brutalidade e terrorismo físico e psicológico. México é sinistro e tenebroso e caótico, com o caos próprio dos sonhos. A mim me encanta”, escreveu Burroughs em uma carta a Jack Kerouac.
Presente na exposição, Habitat Sequences, instalação do artista visual e cineasta holandês Gabriel Lester (Amsterdã, 1974), estabelece pontos de contato com o episódio transformador experimentado pelo escritor beat no México. Composta por salas cujas paredes pintadas de preto são iluminadas através de desorientadores flashes vindos de diferentes pontos, a obra pode tanto simular a desorientação mental sentida às vésperas de uma catástrofe (pessoal, como a vivida por Burroughs, ou massiva feito a iminência de um terremoto), assim como a recomposição fragmentária do espaço habitado, em decorrência do que se mostra e se esconde ao apagar e acender das luzes. O efeito é poderoso.
Entre os destaques da mostra está também a video-artista francesa Lili Reynaud-Dewar (La Rochelle, 1975), cujo Speaking of Revolt, Media and Beauty aborda o pensamento de Jean Genet (1910-1986). Outro egresso do banditismo, o escritor e dramaturgo francês era ladrão, assim como seu predecessor Villon. Em sua apresentação aos ensaios de A Literatura e o Mal, Georges Bataille afirma que a geração a que pertence “é tumultuosa”. No mesmo livro, comenta o perfil de seu contemporâneo feito por Sartre em Saint Genet, que acompanha a trajetória desse filho de prostituta que roubou seus próprios pais adotivos, mendigou, foi preso, escreveu na prisão obras que apologizam o mal e incitam ao assassinato, e devido a isto — ao valor artístico de sua obra — recebeu o perdão por seus crimes. Apoiado no depoimento de Pierre Giquel, o video de Reynaud-Dewar investiga os tantos papéis contraditórios assumidos por Genet, de sua delinquência juvenil ao ativismo político da maturidade.
Relacionando-se com a recente prisão de Darrel Reynolds e seu indicador “armado”, a representação simbólica do crime aparece no trabalho da dupla paulistana Gisela Motta e Leandro Lima (São Paulo, 1976). Em Armas.obj, os artistas reproduzem fielmente em papel pistolas, submetralhadoras e fuzis utilizados como consoles de videogames.
A proposta faz lembrar a proibição britânica de venda de armamentos a civis, que gerou toda uma indústria de réplicas perfeitas nos mínimos detalhes, exceto por seu mecanismo inexistente e pelos canos maciços, inadequados aos disparos. Tais falsificações chegam a ser tão caras quanto as originais.
Com sua verve doentia, o escritor britânico J.G. Ballard (1930-2009) sentia fascínio por essa solução tão bizarra, que acabou ocasionando um crime simbólico praticado contra a rainha em 1981: “ela estava sentada em um cavalo, desfilando por Londres com uma coluna da cavalaria em alguma cerimônia. Quando dobrou a esquina e era observada pela multidão, um rapaz disparou nela seis tiros com uma dessas réplicas, seis tiros em falso. Foi preso. Pensei nesse episódio como uma maravilhosa obra conceitual. O rapaz poderia ter trabalhado para Andy Wahrol.” Profético, Ballard afirmou que no futuro as pessoas seriam presas por estampar em cartazes as palavras REVÓLVER ou ASSASSINATO. De acordo com a lógica exposta em Suspicious Mind, essa era em que a realidade e a fantasia não estão mais separadas já chegou.

April 30, 2014
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Estarei em Buenos Aires para a 40ª Feira Internacional do Livro. Serão duas mesas:
4/5, 20h30 - com Ivana Arruda Leite no pavilhão de São Paulo;
5/5, 18h30 - com o poeta e tradutor Cristian De Nápoli e a escritora Florencia Garramuño (falaremos a respeito dos problemas na edição de latino-americanos no Brasil e Argentina, entre outros temas).
Logo depois sigo para o México, onde participarei da Feira do Livro de Xalapa e farei palestras na Cidade do México. Eis as datas:
14/5, 13h - Lançamento da antologia La Invención de la Realidad (Cal y Arena), organizada por Paula Parisot, com participação do escritor mexicano Luis Arturo Ramos;
16/5, 11h – Conversa sobre literatura brasileira contemporânea.
Na Cidade do México:
19/5, 16h - Fundación para las Letras Mexicanas
21/5, 19h30 - Casa Refugio
22/5, 11h00 a 13h00 – UNAM-Universidad Nacional Autónoma de México
22/5, 19h - Centro Cultural Brasil-México

April 10, 2014
Entrevista para o site da revista McSweeney’s
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J...
Entrevista para o site da revista McSweeney’s
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Joca Reiners Terron is a novelist, poet, and Brazilian playwright. He was born in Cuiabá, Mato Grosso, and now lives in São Paulo. His novels include São Não Há Nada Lá, Hotel Hell, Do Fundo do Poço se Vê a Lua (awarded the Machado de Assis Prize for Best Novel of 2010 by the Brazilian National Library), and A Tristeza Extraordinária do Leopardo-das-Neves. He is also the author of a graphic novel, Guia de Ruas Sem Saída, illustrated by André Ducci. Terron started the Ministry of Disaster, an independent publishing house that galvanized the Brazilian literary scene in the nineties. He writes reviews for the newspaper Folha de S. Paulo,among others.
– – –
McSWEENEY’S: So how did you approach the idea of writing a crime story? Did you start with a character, or a particular situation, or something else? Did you think about it differently than you would another sort of story?
JOCA REINERS TERRON: I do not like to plan what I write. I usually start from an image. In this case, I was in a metropolitan train station, and I saw a car full of masons closely following an ambulance as it cut through the gridlock. The other cars around them remained stuck in traffic, but the ambulance moved with ease.
Most Brazilian workers—particularly the poor ones—do not have access to ambulances when they need them. The whole story came from that scene. Putting a Brazilian construction worker in a well-equipped ambulance is more or less like seeing an umbrella and a sewing machine on an operating table, to borrow a phrase from the surrealist Lautréamont.
McSWEENEY’S: We asked you for a story set in Brazil. How much did you think about that, as you were working on this? Do you think a story like this can tell us something about a particular place, or a particular country?
JOCA REINERS TERRON: It’s difficult to set crime stories in Brazil, or in any other country where democracy is not yet fully consolidated, and where the basic needs of a civil society are not yet met. The reason is simple: the most terrifying criminal in Brazil is the state itself. The notion of good and evil around here is less clear-cut. Because of this, the bad guy in my story is almost faceless: a civil servant who abuses his powers for frivolous reasons. I don’t think my story would work as well in a country other than this one.
McSWEENEY’S: Is there a Brazilian author, or a particular Brazilian book, or even a movie or a TV show, that you think takes on the genre particularly well?
JOCA REINERS TERRON: The detective stories of Rubem Fonseca are among the few that manage to portray—with little help from the English or American traditions—the moral issues of an immoral country. In film, O Bandido da Luz Vermelha(The Red Light Bandit, from 1968) by Rogério Sganzerla is essential viewing. Both men achieve something very original.
McSWEENEY’S: Your protagonist, a Polish insurance adjustor who ends up in something like a detective role, is initially so out of his element that he mistakes Brazil for Uruguay. How did you decide to center your story on that character?
JOCA REINERS TERRON: As I said, I do not plan my stories. But since Brazil has become a major player in the global economy, it has become common to see foreign businessmen visiting. Often they have no idea how to handle themselves in this wild, tropical country. My poor Stefan Czarniecki is just one more of them.
McSWEENEY’S: Traffic jams, and lines, and the ways people attempt to circumvent them, play an important role here. How have you dealt with that frustration, living in Sao Paulo?
JOCA REINERS TERRON: I have adapted my everyday life so that I don’t have to leave the house frequently. However, I still get frustrated when it comes to the poor quality of public transport in São Paulo. The protests that broke out in Brazil in June 2013 demanded, among other things, improvements in public transport. My story was written during that period of protest. A period that, it bears mentioning, is not yet over.
http://www.mcsweeneys.net/articles/joca-reiners-terron

JOCA REINERS TERRON by MCSWEENEY’S
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Joca Reiners...
JOCA REINERS TERRON by MCSWEENEY’S
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Joca Reiners Terron is a novelist, poet, and Brazilian playwright. He was born in Cuiabá, Mato Grosso, and now lives in São Paulo. His novels include São Não Há Nada Lá, Hotel Hell, Do Fundo do Poço se Vê a Lua (awarded the Machado de Assis Prize for Best Novel of 2010 by the Brazilian National Library), and A Tristeza Extraordinária do Leopardo-das-Neves. He is also the author of a graphic novel, Guia de Ruas Sem Saída, illustrated by André Ducci. Terron started the Ministry of Disaster, an independent publishing house that galvanized the Brazilian literary scene in the nineties. He writes reviews for the newspaper Folha de S. Paulo,among others.
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McSWEENEY’S: So how did you approach the idea of writing a crime story? Did you start with a character, or a particular situation, or something else? Did you think about it differently than you would another sort of story?
JOCA REINERS TERRON: I do not like to plan what I write. I usually start from an image. In this case, I was in a metropolitan train station, and I saw a car full of masons closely following an ambulance as it cut through the gridlock. The other cars around them remained stuck in traffic, but the ambulance moved with ease.
Most Brazilian workers—particularly the poor ones—do not have access to ambulances when they need them. The whole story came from that scene. Putting a Brazilian construction worker in a well-equipped ambulance is more or less like seeing an umbrella and a sewing machine on an operating table, to borrow a phrase from the surrealist Lautréamont.
McSWEENEY’S: We asked you for a story set in Brazil. How much did you think about that, as you were working on this? Do you think a story like this can tell us something about a particular place, or a particular country?
JOCA REINERS TERRON: It’s difficult to set crime stories in Brazil, or in any other country where democracy is not yet fully consolidated, and where the basic needs of a civil society are not yet met. The reason is simple: the most terrifying criminal in Brazil is the state itself. The notion of good and evil around here is less clear-cut. Because of this, the bad guy in my story is almost faceless: a civil servant who abuses his powers for frivolous reasons. I don’t think my story would work as well in a country other than this one.
McSWEENEY’S: Is there a Brazilian author, or a particular Brazilian book, or even a movie or a TV show, that you think takes on the genre particularly well?
JOCA REINERS TERRON: The detective stories of Rubem Fonseca are among the few that manage to portray—with little help from the English or American traditions—the moral issues of an immoral country. In film, O Bandido da Luz Vermelha(The Red Light Bandit, from 1968) by Rogério Sganzerla is essential viewing. Both men achieve something very original.
McSWEENEY’S: Your protagonist, a Polish insurance adjustor who ends up in something like a detective role, is initially so out of his element that he mistakes Brazil for Uruguay. How did you decide to center your story on that character?
JOCA REINERS TERRON: As I said, I do not plan my stories. But since Brazil has become a major player in the global economy, it has become common to see foreign businessmen visiting. Often they have no idea how to handle themselves in this wild, tropical country. My poor Stefan Czarniecki is just one more of them.
McSWEENEY’S: Traffic jams, and lines, and the ways people attempt to circumvent them, play an important role here. How have you dealt with that frustration, living in Sao Paulo?
JOCA REINERS TERRON: I have adapted my everyday life so that I don’t have to leave the house frequently. However, I still get frustrated when it comes to the poor quality of public transport in São Paulo. The protests that broke out in Brazil in June 2013 demanded, among other things, improvements in public transport. My story was written during that period of protest. A period that, it bears mentioning, is not yet over.
http://www.mcsweeneys.net/articles/joca-reiners-terron

JOCA REINERS TERRON by MCSWEENEY’S
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Joca Reiners...
JOCA REINERS TERRON by MCSWEENEY’S
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Joca Reiners Terron is a novelist, poet, and Brazilian playwright. He was born in Cuiabá, Mato Grosso, and now lives in São Paulo. His novels include São Não Há Nada Lá, Hotel Hell, Do Fundo do Poço se Vê a Lua (awarded the Machado de Assis Prize for Best Novel of 2010 by the Brazilian National Library), and A Tristeza Extraordinária do Leopardo-das-Neves. He is also the author of a graphic novel, Guia de Ruas Sem Saída, illustrated by André Ducci. Terron started the Ministry of Disaster, an independent publishing house that galvanized the Brazilian literary scene in the nineties. He writes reviews for the newspaper Folha de S. Paulo,among others.
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McSWEENEY’S: So how did you approach the idea of writing a crime story? Did you start with a character, or a particular situation, or something else? Did you think about it differently than you would another sort of story?
JOCA REINERS TERRON: I do not like to plan what I write. I usually start from an image. In this case, I was in a metropolitan train station, and I saw a car full of masons closely following an ambulance as it cut through the gridlock. The other cars around them remained stuck in traffic, but the ambulance moved with ease.
Most Brazilian workers—particularly the poor ones—do not have access to ambulances when they need them. The whole story came from that scene. Putting a Brazilian construction worker in a well-equipped ambulance is more or less like seeing an umbrella and a sewing machine on an operating table, to borrow a phrase from the surrealist Lautréamont.
McSWEENEY’S: We asked you for a story set in Brazil. How much did you think about that, as you were working on this? Do you think a story like this can tell us something about a particular place, or a particular country?
JOCA REINERS TERRON: It’s difficult to set crime stories in Brazil, or in any other country where democracy is not yet fully consolidated, and where the basic needs of a civil society are not yet met. The reason is simple: the most terrifying criminal in Brazil is the state itself. The notion of good and evil around here is less clear-cut. Because of this, the bad guy in my story is almost faceless: a civil servant who abuses his powers for frivolous reasons. I don’t think my story would work as well in a country other than this one.
McSWEENEY’S: Is there a Brazilian author, or a particular Brazilian book, or even a movie or a TV show, that you think takes on the genre particularly well?
JOCA REINERS TERRON: The detective stories of Rubem Fonseca are among the few that manage to portray—with little help from the English or American traditions—the moral issues of an immoral country. In film, O Bandido da Luz Vermelha(The Red Light Bandit, from 1968) by Rogério Sganzerla is essential viewing. Both men achieve something very original.
McSWEENEY’S: Your protagonist, a Polish insurance adjustor who ends up in something like a detective role, is initially so out of his element that he mistakes Brazil for Uruguay. How did you decide to center your story on that character?
JOCA REINERS TERRON: As I said, I do not plan my stories. But since Brazil has become a major player in the global economy, it has become common to see foreign businessmen visiting. Often they have no idea how to handle themselves in this wild, tropical country. My poor Stefan Czarniecki is just one more of them.
McSWEENEY’S: Traffic jams, and lines, and the ways people attempt to circumvent them, play an important role here. How have you dealt with that frustration, living in Sao Paulo?
JOCA REINERS TERRON: I have adapted my everyday life so that I don’t have to leave the house frequently. However, I still get frustrated when it comes to the poor quality of public transport in São Paulo. The protests that broke out in Brazil in June 2013 demanded, among other things, improvements in public transport. My story was written during that period of protest. A period that, it bears mentioning, is not yet over.
http://www.mcsweeneys.net/articles/joca-reiners-terron

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