Joca Reiners Terron's Blog, page 3

April 10, 2019

January 2, 2019

Conto na revista CartaCapital especial, janeiro 2019

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Aquela noite já durava muitos anos. A menina e o macaco em pé sobre o cangote dela despertaram e a luz que saiu de seus olhos abertos iluminou a jaula onde ambos estavam confinados com outras crianças. Alguém tire o macaco de cima dessa menina, ordenou o Bispo-Coronel apontando a tela do monitor de vigilância. O macaco prendeu com violência sua cauda no pescoço da menina. Já tentamos, disse o Pastor-Sargento, mas é impossível. Como foi que o exército colombiano permitiu a entrada desse macaco no campo de contenção, disse o Bispo-Coronel, são uns imbecis. Na tela, a multidão de crianças aprisionadas vibrou em uma onda cinzenta e por um instante a menina e o macaco se fundiram à massa movente. Não entrou, senhor, disse o Pastor-Sargento, quando os furgões trouxeram as crianças de Maracaibo elas estavam nuas. Não tinham como esconder o macaco, a não ser que ele estivesse dentro de uma delas. A movimentação dos corpos amontoados no monitor lembrava uma ilha de lixo, uma ilha de resíduos plásticos à deriva pelo Caribe. Conduz o drone pro outro lado que os dois sumiram, disse o Bispo-Coronel, acho que se separaram. Eles nunca se separam, disse o Pastor-Sargento, por isso não conseguimos remover o macaco da jaula. O drone capturou o animal se encarapitando em cima da cabeça da menina. Uma clareira se abriu na multidão. É um macaco bem grande, disse o Bispo-Coronel, essas crianças são alimentadas apenas uma vez por dia, como uma merdinha assim consegue sustentar esse macaco? Isso nem os últimos bugres daqui da selva sabem explicar, senhor, mas suspeito que é o macaco que a sustenta e não o contrário, disse o Pastor-Sargento, eles desenvolveram relação parasitária. Na tela, as crianças se afastaram, formando um círculo em torno da menina e do macaco que se ergueu sobre os pés em cima da cabeça dela. O que é isso, disse o Bispo-Coronel, empurra esse drone mais pra direita. Essas crianças comunistas, a gente devia ter logo convencido os colombianos a matar tudo de uma vez quando a guerra começou. O macaco se prepara pra cantar, senhor, disse o Pastor-Sargento, ele faz isso todos os dias na mesma hora. Não era possível mais ver a cara da menina na tela, pois o ânus avermelhado do macaco encobriu totalmente sua cabeça, deixando à vista apenas as pontas de seus cabelos negros que se estendiam até a cintura. As crianças se ajoelharam no lamaçal do piso da jaula do campo de confinamento venezuelano. A guerra parecia longe de terminar, a noite prosseguiria e nossos macacos interiores continuariam a se insurgir nas ocasiões mais impróprias. Em pé sobre o corpo frágil da menina, o macaco abriu os braços e estufou o peito, seus dentes se arreganharam num esgar de gargalhada ameaçadora. Esse macaco tem o tamanho de um babuíno, disse o Bispo-Coronel, é muito maior que os encontrados nesta selva. O drone subiu, tornando visível a borda escura da selva venezuelana, ecoando o clamor selvagem da natureza. O macaco está cantando, senhor, vamos até lá fora ouvir, disse o Pastor-Sargento. Ao descer a escada rangente da torre de vigilância, o Bispo-Coronel olhou de relance as jaulas coletivas que se estendiam em uma malha quadrangular a perder de vista, e mais além o deserto sem fim onde antes se encontrava a Amazônia. Em cada uma das jaulas assomava ao centro um macaco encarapitado sobre a cabeça de uma criança. Na tela silenciosa do monitor, as crianças olhavam para cima à espera de um sinal divino nas nuvens, mas só viam o drone de vigilância. Diante da jaula, os militares ouviram o macaco cantar. Sua voz cheia de chiados lembrava uma emissão radiofônica em qualquer língua incompreensível parecida com o russo. Talvez a menina cantasse através do macaco, talvez fosse o contrário. As fezes ferventes que o ânus do macaco despejou repentinamente se esparramaram, consumindo o corpo mirrado da menina até cobri-lo por completo. Por instantes ela virou uma estátua, que logo se desfez na lama. Veja, o macaco cresceu muito, disse o Bispo-Coronel num murmúrio tão baixo quanto um suspiro final. Com seus longos braços de cipó, o macaco passou a envolver uma a uma as crianças. Elas se ofertavam em sacrifício para saciar sua fome, um ritual organizado por algum deus em férias permanentes, na medida em que o macaco as engolia e dobrava de tamanho a cada bocado mastigado. Após saltar a grade com a facilidade de uma criança pulando uma poça d’água deixada pela chuva, o macaco arrancou a cabeça do primeiro beato-soldado da vigilância, e a apreciou como se fosse um quitute. Depois o macaco gigantesco devorou o segundo beato-soldado e o terceiro e o quarto e o quinto até comer o batalhão inteiro, chegando ao Pastor-Sargento e então ao Bispo-Coronel, que ao morrer, lembrou de alguns verões esplêndidos em visitas à sua antiga namorada de Florianópolis, para onde viajava indevidamente com a verba de oficial, não deixando de perceber que, apesar de faminto, aquele macaco respeitava patentes e a hierarquia militar. Ao longe, a selva iniciou sua expansão, cobrindo campos de contenção, linhas divisórias das fronteiras e cidades, destruindo religiões, exércitos, nações e a própria ideia de civilização, rompendo limites da realidade que antes eram invioláveis mas já não fazem mais nenhum sentido, os pulmões do mundo voltando lentamente a respirar, e agora o macaco furou as páginas desta revista e acabou de agarrar com força teus dois pulsos, leitor. Agora esse macaco simbólico e anti-ideológico olha nos teus olhos, enquanto arreganha a bocarra num sorriso que não é de simpatia nem de conforto.


[ Conto publicado na edição especial de fim de ano da revista CartaCapital, de 2 de janeiro de 2019 ]

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Published on January 02, 2019 07:39

Olhavam para o céu, mas só viam o drone de vigilância

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Aquela noite já durava muitos anos. A menina e o macaco em pé sobre o cangote dela despertaram e a luz que saiu de seus olhos abertos iluminou a jaula onde ambos estavam confinados com outras crianças. Alguém tire o macaco de cima dessa menina, ordenou o Bispo-Coronel apontando a tela do monitor de vigilância. O macaco prendeu com violência sua cauda no pescoço da menina. Já tentamos, disse o Pastor-Sargento, mas é impossível. Como foi que o exército colombiano permitiu a entrada desse macaco no campo de contenção, disse o Bispo-Coronel, são uns imbecis. Na tela, a multidão de crianças aprisionadas vibrou em uma onda cinzenta e por um instante a menina e o macaco se fundiram à massa movente. Não entrou, senhor, disse o Pastor-Sargento, quando os furgões trouxeram as crianças de Maracaibo elas estavam nuas. Não tinham como esconder o macaco, a não ser que ele estivesse dentro de uma delas. A movimentação dos corpos amontoados no monitor lembrava uma ilha de lixo, uma ilha de resíduos plásticos à deriva pelo Caribe. Conduz o drone pro outro lado que os dois sumiram, disse o Bispo-Coronel, acho que se separaram. Eles nunca se separam, disse o Pastor-Sargento, por isso não conseguimos remover o macaco da jaula. O drone capturou o animal se encarapitando em cima da cabeça da menina. Uma clareira se abriu na multidão. É um macaco bem grande, disse o Bispo-Coronel, essas crianças são alimentadas apenas uma vez por dia, como uma merdinha assim consegue sustentar esse macaco? Isso nem os últimos bugres daqui da selva sabem explicar, senhor, mas suspeito que é o macaco que a sustenta e não o contrário, disse o Pastor-Sargento, eles desenvolveram relação parasitária. Na tela, as crianças se afastaram, formando um círculo em torno da menina e do macaco que se ergueu sobre os pés em cima da cabeça dela. O que é isso, disse o Bispo-Coronel, empurra esse drone mais pra direita. Essas crianças comunistas, a gente devia ter logo convencido os colombianos a matar tudo de uma vez quando a guerra começou. O macaco se prepara pra cantar, senhor, disse o Pastor-Sargento, ele faz isso todos os dias na mesma hora. Não era possível mais ver a cara da menina na tela, pois o ânus avermelhado do macaco encobriu totalmente sua cabeça, deixando à vista apenas as pontas de seus cabelos negros que se estendiam até a cintura. As crianças se ajoelharam no lamaçal do piso da jaula do campo de confinamento venezuelano. A guerra parecia longe de terminar, a noite prosseguiria e nossos macacos interiores continuariam a se insurgir nas ocasiões mais impróprias. Em pé sobre o corpo frágil da menina, o macaco abriu os braços e estufou o peito, seus dentes se arreganharam num esgar de gargalhada ameaçadora. Esse macaco tem o tamanho de um babuíno, disse o Bispo-Coronel, é muito maior que os encontrados nesta selva. O drone subiu, tornando visível a borda escura da selva venezuelana, ecoando o clamor selvagem da natureza. O macaco está cantando, senhor, vamos até lá fora ouvir, disse o Pastor-Sargento. Ao descer a escada rangente da torre de vigilância, o Bispo-Coronel olhou de relance as jaulas coletivas que se estendiam em uma malha quadrangular a perder de vista, e mais além o deserto sem fim onde antes se encontrava a Amazônia. Em cada uma das jaulas assomava ao centro um macaco encarapitado sobre a cabeça de uma criança. Na tela silenciosa do monitor, as crianças olhavam para cima à espera de um sinal divino nas nuvens, mas só viam o drone de vigilância. Diante da jaula, os militares ouviram o macaco cantar. Sua voz cheia de chiados lembrava uma emissão radiofônica em qualquer língua incompreensível parecida com o russo. Talvez a menina cantasse através do macaco, talvez fosse o contrário. As fezes ferventes que o ânus do macaco despejou repentinamente se esparramaram, consumindo o corpo mirrado da menina até cobri-lo por completo. Por instantes ela virou uma estátua, que logo se desfez na lama. Veja, o macaco cresceu muito, disse o Bispo-Coronel num murmúrio tão baixo quanto um suspiro final. Com seus longos braços de cipó, o macaco passou a envolver uma a uma as crianças. Elas se ofertavam em sacrifício para saciar sua fome, um ritual organizado por algum deus em férias permanentes, na medida em que o macaco as engolia e dobrava de tamanho a cada bocado mastigado. Após saltar a grade com a facilidade de uma criança pulando uma poça d’água deixada pela chuva, o macaco arrancou a cabeça do primeiro beato-soldado da vigilância, e a apreciou como se fosse um quitute. Depois o macaco gigantesco devorou o segundo beato-soldado e o terceiro e o quarto e o quinto até comer o batalhão inteiro, chegando ao Pastor-Sargento e então ao Bispo-Coronel, que ao morrer, lembrou de alguns verões esplêndidos em visitas à sua antiga namorada de Florianópolis, para onde viajava indevidamente com a verba de oficial, não deixando de perceber que, apesar de faminto, aquele macaco respeitava patentes e a hierarquia militar. Ao longe, a selva iniciou sua expansão, cobrindo campos de contenção, linhas divisórias das fronteiras e cidades, destruindo religiões, exércitos, nações e a própria ideia de civilização, rompendo limites da realidade que antes eram invioláveis mas já não fazem mais nenhum sentido, os pulmões do mundo voltando lentamente a respirar, e agora o macaco furou as páginas desta revista e acabou de agarrar com força teus dois pulsos, leitor. Agora esse macaco simbólico e anti-ideológico olha nos teus olhos, enquanto arreganha a bocarra num sorriso que não é de simpatia nem de conforto.


[ Conto publicado na edição especial de fim de ano da revista CartaCapital, de 2 de janeiro de 2019 ]

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Published on January 02, 2019 07:39


[ Conto publicado na edição especial de fim de ano da re...

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[ Conto publicado na edição especial de fim de ano da revista CartaCapital, de 2 de janeiro de 2019 ]

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Published on January 02, 2019 07:39


[ 2 poemas do livro O sonâmbulo canta no topo do edifíci...

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[ 2 poemas do livro O sonâmbulo canta no topo do edifício em chamas (Pedra Papel Tesoura, 2018), publicados no suplemento Ilustríssima da Folha de S. Paulo em 2 de dezembro de 2018 ]

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Published on January 02, 2019 07:36

August 3, 2018

Heróis

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Publicado n’O Globo em 10 de fevereiro de 2016, um mês após a morte de David Bowie, na companhia de versões feitas por Matilde Campilho, Geraldo Carneiro, Fabiano Calixto e outros.

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Published on August 03, 2018 16:53

November 23, 2017

Curva de Rio Sujo On My Mind

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Afinal, hoje “Não Devore Meu Coração” está nos cinemas após aclamada passagem pelos festivais de Sundance, Berlim, Brasília e outros. Não sou apóstolo, mas venho dar meu testemunho da paixão. No caso, a de Felipe Bragança pelo livro “Curva de Rio Sujo”, que inaugurou em 2003 meu fronteiriço mundo privado com histórias passadas na região que surge no filme, um lugar aonde evitei regressar por décadas, pois não queria conspurcar aquilo que vivia na lembrança. Felipe me obrigou a voltar, e o que encontrei permanecia intocado: é como se Felipe recuperasse as imagens que estão no livro, imagens que pertenciam às minhas torpes lembranças e que traduzi em relatos, e as devolvesse novamente à condição de imagens que originalmente eram, no limbo entre a lembrança e o sonho. Assistir ao filme me causou estranho desconforto, misto de pudor de ver ali à frente de todos aquilo que se escondia em meu mundo privado, em minha vida secreta, com uma felicidade cálida, viva. E o rosto de Basano La Tatuada, que carreguei em sua versão 3X4 durante anos em minha carteira mofada, permanecia igual e a paixão guarani de Joca por ela permanecia igual, pura, intocada como as samambaias e avencas que despencam suas sombras sobre as águas barrentas do Apa. Desde o início, e foi um longo início, há quase dez anos, eu carregava a certeza de que um filme movido pela paixão só poderia resultar em amor e amizade e em algo perene, tão perene quanto as lembranças. Obrigado, Felipe e turma. Amigos, convido-os a ver o filme.





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Published on November 23, 2017 11:16

February 10, 2017

Em abril

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Published on February 10, 2017 11:38

September 9, 2016

Um telefonema do futuro

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Diante do enigma representado por El Poeta Anonimo, o livro de Juan Luis Martinez lançado pela CosacNaify em 2012, decidi ligar para um certo número telefônico que não vinha à lembrança havia quase vinte anos: o da casa onde morei no período em que praticamente só lia poesia e ensaios sobre poesia. Quem sabe aquele estudante cabeludo de design gráfico de 1994 não explicaria de que se trata este retângulo negro com mais de duzentas páginas indecifráveis. Então liguei. A chamada era péssima, a voz parecia vir do além ou das profundezas de uma ressaca.


— Alô?


— Quem fala? Voz conhecida.


— Sou eu. Ou pior, você, vinte anos mais velho.


— Não me diga.


— Sugiro que evitemos o assunto “cabelos”.


— Ok.


— Recebi um livro do poeta chileno Juan Luis Martinez. É um volume póstumo, o Martinez morreu em 1993. Não entendi muita coisa, queria tua ajuda.


— Quer dizer que tudo o que leio agora de nada vai me adiantar no futuro daqui a vinte anos?


— Sugiro que evitemos o assunto “neurônios”. Parece que eles caem com os cabelos.


— Ok. Que tipo de livro é esse?


— É poesia visual, mas não tem muito a ver com poesia visual brasileira. Martinez pertencia à turma do Nicanor Parra e do Raúl Zurita, porém era bastante obscuro pra mim até ver obras dele expostas na Bienal de Arte de São Paulo 2012. Descobri algumas informações biográficas sobre ele no Google e no Wikipédia.


— Peraí. Que são Google e Wikipedia?


— Difícil explicar. As coisas mudaram bastante nessas duas últimas décadas.


— Duvido muito disso. Mas prossiga.


— Bem, no Google eu encontrei um PDF de La Nueva Novela, livro de Martinez que eu conhecia de um artigo escrito pelo Alejandro Zambra, conterrâneo dele.


— Nem me atrevo a perguntar o que é PDF. Lembra sigla de palavrão.


— Bem, La Nueva Novela, se comparada a El Poeta Anonimo, se baseia em signos mais reconhecíveis, pois no primeiro livro existem poemas verbais, enquanto que este póstumo aqui é composto mais por suspiros, sussurros, gemidos etc. É uma espécie de estrebuchar do poeta anterior, do Martinez de La Nueva Novela.


— E há citações no livro?


— Sim, é uma poética inteiramente baseada na intertextualidade ou na pilhagem descarada. Diversos poemas citam Raymond Roussel, Duchamp, René Crével, Magritte, Napoleão Bonaparte, Adolf Hitler e põe etecétera nisso.


— Ah, esses nomes aí já dão uma pista da orientação do cara, não? É um surrealista de carteirinha. Aposto que também era comunista e agente da CIA. Poetas desse tipo sempre têm algo a ver com espionagem. Se for latinoamericano, então, a chance de ter sido agente duplo é bem maior. Você pode citar um poema verbal dele pra gente se certificar do que tá falando?


— Beleza, lá vai um que pertence a La Nueva Novela.


 


A casa do alento*, quase a pequena casa do (autor)


(Interrogar as janelas


sobre a absoluta transparência


dos vidros que faltam)


 



A casa que construiremos amanhã

já está no passado e não existe.


 



Nessa casa que ainda não conhecemos

continua aberta a janela que esquecemos de fechar.


 



Nessa mesma casa, detrás dessa mesma janela

ainda batem as cortinas que já retiramos.


 


* Quiçá uma casinha no subúrbio


onde o passado ainda esteja para acontecer


e o futuro passou faz tempo.”


(de T.S. Eliot, quase)


 


* * *


— E então?


— É mesmo um surrealista. Tem toques orientais e remete a certos filósofos da linguagem feito o Lichtenberg. Também lembrou Pierre Reverdy. E esse El Poeta Anonimo, tem coisas parecidas?


— Não tem. Exceto por um poeminha em homenagem a Yukio Mishima — cuja autoria pode ser posta em cheque, como quase tudo no livro — toda a parte textual é composta de retalhos de outras fontes, como uma série de sonetos compostos por colagens de páginas rasgadas de um manual técnico sobre variantes do soneto. A narrativa, se é que dá pra chamá-la assim, de El Poeta Anonimo, é uma elegia da figura do herói por meio de extremistas, sejam poetas como Lautréamont, Rimbaud, Baudelaire, Maiakovski, Artaud, figuras históricas como Napoleão, San Martin, José Miguel Carrera, Manuel Rodríguez e o anarquista Pietro Valpreda, personagens de HQ tipo Dick Tracy e Pato Donald, exilados e desaparecidos chilenos e argentinos. Tudo isso aparece na forma de citação visual, ou seja, de retalhos, fragmentos e recortes tirados de outros lugares e reorganizados através de uma colagem furiosa e meio esculhambada de tão suja.


— Quer dizer que lembra uma ode que estranhamente não pode ser cantada?


— Sim, porém o aspecto sujo dos grafismos — em contraposição à aparência construtivista e geométrica da poesia visual brasileira, por exemplo — não fornece o tom elevado costumeiramente vinculado à ode.


— É sujo por que usa fotocópia como linguagem?


— Sim, deu pra adivinhar, né?


— É que isso aí cheira a anos 70 e 80. Mas um alerta: a poesia visual brasileira não se resume à rapaziada concretista, e mesmo alguns filhotes dela reunidos em torno a revistas como Qorpo Estranho, Artéria, Poesia em Greve, Pólem, Jornal Dobrabil, Navilouca etc, foram influenciados pelo grafismo heterodoxo das possibilidades técnicas do período, que eram basicamente Letraset e Xerox. E o grau de adequação do protótipo é diretamente proporcional à sua espontaneidade em relação à comunicação de massas, e vice-versa.


— Caramba, o que você anda lendo aí em 1994?


— Buckminster Fuller. E tomei umas cachaças.


— Sugiro que evitemos o assunto “fígado”.


— Ok.


— Bem, quer dizer que a herança visual da poesia também nasce de outras fontes que não sejam cartesianas, aristotélicas etc? Existe outro horizonte que não seja concreto? Nem lembrava disso.


— Claro, o próprio surrealismo é uma matriz, como as revistas La Révolution Surréaliste e Le Surréalisme, Mème, editadas por André Breton. Ou o dadaísmo de Merz, editada por Kurt Schwitters. Boa parte das idéias e manifestos das vanguardas do século 20 foram veiculadas em publicações efêmeras. Cada uma delas criou sua própria tradição relâmpago, desaparecendo tão rapidamente quanto surgiram.


— Isso me fez lembrar do verso de um poeta argentino que conheço. Diz: Os casais e as revistas literárias/ duram quase sempre dois números.


— E às vezes nem passam do número zero. Só que o surrealismo não se restringe à poesia ou às revistas. Fora toda a obra pictórica de Magritte, Dalí e outros, existe a genial narrativa gráfica sem palavras — o subtítulo diz romance surrealista em colagens — chamada Une Semaine de Bonté, de Max Ernst. Pelo que você descreve há muito desse trabalho de Ernst em El Poeta Anonimo, assim como há em trabalhos representativos de alguns brasileiros contemporâneos de Juan Luis Martinez, como Valêncio Xavier e Sebastião Nunes.


— Boa, eles são mesmo da mesma família.


— Certo, mas esse Martinez aí é tão bom poeta quanto o Sebastião Nunes, por exemplo? O Sebunes Nião é foda, faz poesia visual e ao mesmo tempo soneto clássico. Pra fazer o que ele faz tem de conhecer.


— Ih, essa não posso responder, pois esta conversa vai servir prum texto que deve sair no blogue da editora…


— Blogue? E o que é blogue?


— Alô! Alô! Não tô te ouvindo! Ih, a ligação tá falhando. Mas valeu, obrigado pelo papo!


— Falou. A gente se vê.


— Isso, tchau! A gente se vê no espelho daqui a vinte anos.


 


[ Texto encomendado para o blogue da extinta CosacNaify e recusado pelo editor ]


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Published on September 09, 2016 07:46

July 12, 2016

A novela luminosa (trecho)

piriapolisquizas1975


“Escrevia à mão esse romance furioso, e terminado um capítulo o passava à máquina, e ao passá-lo ia introduzindo pequenas mudanças e fazendo algumas correções. Também um ou outro capítulo foi escrito originalmente à máquina. Um capítulo foi rejeitado e destruído, porém como verá o leitor que chegue até lá, em seguida me arrependo e o resumo no capítulo que o substitui; pelo que parece, só havia destruído a cópia, porque é evidente que em seguida voltei a passar à máquina o original e voltei a colocá-lo em seu lugar. Mas também conservei o resumo no capítulo seguinte, e nessa hora a numeração dos capítulos complicou. Não sei bem em que etapa das inúmeras correções os cinco capítulos sobreviventes ficaram com a forma que têm agora (e os dois destruídos não deixaram rastros); andei carregando esse romance truncado durante dezesseis anos, e a cada tanto me empenhava em uma nova revisão que acrescentava ou tirava coisas.”


[ Trecho de La Novela Luminosa, de Mario Levrero. Traduzi um razoável número de páginas do livro, mas quem o havia contratado não vai mais publicá-lo. É uma obra-prima da literatura recente, e caso você seja o afortunado dono de uma editora e queira fazer o livro chegar ao leitor brasileiro, basta me escrever: jterron@gmail.com ]


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Published on July 12, 2016 06:11

Joca Reiners Terron's Blog

Joca Reiners Terron
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