Raiz de Orvalho e Outros Poemas / O Fio das Missangas Quotes

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Raiz de Orvalho e Outros Poemas / O Fio das Missangas Raiz de Orvalho e Outros Poemas / O Fio das Missangas by Mia Couto
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Raiz de Orvalho e Outros Poemas / O Fio das Missangas Quotes Showing 1-5 of 5
“(Escre)ver-me

nunca escrevi

sou
apenas um tradutor de silêncios

a vida
tatuou-me nos olhos
janelas
em que me transcrevo e apago

sou
um soldado
que se apaixona
pelo inimigo que vai matar”
Mia Couto, Raiz de Orvalho e Outros Poemas / O Fio das Missangas
“Morte silenciosa

A noite cedeu-nos o instinto
para o fundo de nós
imigrou a ave a inquietação

Serve-nos a vida
mas não nos chega:
somos resina
de um tronco golpeado
para a luz nos abrimos
nos lábios
dessa incurável ferida

Na suprema felicidade
existe uma morte silenciada”
Mia Couto, Raiz de Orvalho e Outros Poemas / O Fio das Missangas
tags: morte, vida
“A terra
se via estar nua
lembrando, distante,
seu parto de carne e lua

(...)

A luz
tombava ferida
pingando
como pulso suicida
em minhas ocultas asas”
Mia Couto, Raiz de Orvalho e Outros Poemas / O Fio das Missangas
“Ave

Seria um pássaro

No sono das asas
ondulava
toda a solidão do céu

Terrestre,
só a fugitiva sombra

Paisagem nenhuma
lhe dava abrigo

Pousado,
o corpo
de si mesmo se exilava

Nos ensinava
a deslumbrância da viagem
a nós que só na morte
olharemos os céus de frente”
Mia Couto, Raiz de Orvalho e Outros Poemas / O Fio das Missangas
tags: voar
“Raiz de orvalho

Sou agora menos eu
e os sonhos
que sonhara ter
em outros leitos despertaram

Quem me dera acontecer
essa morte
de que não se morre
e para um outro fruto
me tentar seiva ascendendo
porque perdi a audácia
do meu próprio destino
soltei ânsia
do meu próprio delírio
e agora sinto
tudo o que os outros sentem
sofro do que eles não sofrem
anoiteço na sua lonjura
e vivendo na vida
que deles desertou
ofereço o mar
que em mim se abre
à viagem mil vezes adiada

De quando em quando
me perco
na procura a raiz do orvalho
e se de mim me desencontro
foi porque de todos os homens
se tornaram todas as coisas
como se todas elas fossem
o eco as mãos
a casa dos gestos
como se todas as coisas
me olhassem
com os olhos de todos os homens

Assim me debruço
na janela do poema
escolho a minha própria neblina
e permito-me ouvir
o leve respirar dos objectos
sepultados em silêncio
e eu invento o que escrevo
escrevendo para me inventar
e tudo me adormece
porque tudo desperta
a secreta voz da infância

Amam-me demasiado
as cosias de que me lembro
e eu entrego-me
como se me furtasse
à sonolenta carícia
desse corpo que faço nascer
dos versos
a que livremente me condeno”
Mia Couto, Raiz de Orvalho e Outros Poemas / O Fio das Missangas