O homem não existe Quotes
O homem não existe: Masculinidade, desejo e ficção
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Ligia Gonçalves Diniz60 ratings, 3.97 average rating, 12 reviews
O homem não existe Quotes
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“A noção de sublimação, porém, é muito problemática. Aos 51 anos, Freud parecia ter deixado para trás a possibilidade de converter tesão em trabalho intelectual e reconhecia que os encontros sexuais atrapalhavam seu trabalho teórico. Em uma carta a Jung, planejou: “Quando eu houver superado completamente minha libido (no sentido comum do termo), começarei a trabalhar em uma [teoria da] ‘Vida amorosa do ser humano’”.
Freud não está falando de impotência, mas da própria falta de tesão, que surge como condição para a empreitada intelectual. Então seria preciso parar de sentir desejo para conseguir se concentrar numa obra ambiciosa? Havia ele se convencido de que apenas forças superiores o impediriam de ceder aos apelos da carne em detrimento do tempo dedicado ao espírito criativo? Tudo me soa ridiculamente despropositado: poucas coisas produzem mais tesão do que um encontro intelectual extraordinário; e, em contrapartida, sem libido (“no sentido comum do termo”), prefiro crer que não poderei mais produzir coisa nenhuma e estarei prontinha para desligar os aparelhos.”
― O homem não existe: Masculinidade, desejo e ficção
Freud não está falando de impotência, mas da própria falta de tesão, que surge como condição para a empreitada intelectual. Então seria preciso parar de sentir desejo para conseguir se concentrar numa obra ambiciosa? Havia ele se convencido de que apenas forças superiores o impediriam de ceder aos apelos da carne em detrimento do tempo dedicado ao espírito criativo? Tudo me soa ridiculamente despropositado: poucas coisas produzem mais tesão do que um encontro intelectual extraordinário; e, em contrapartida, sem libido (“no sentido comum do termo”), prefiro crer que não poderei mais produzir coisa nenhuma e estarei prontinha para desligar os aparelhos.”
― O homem não existe: Masculinidade, desejo e ficção
“Não se trata de dizer que Mulheres apaixonadas é neutro em seu tratamento das sexualidades; estranhamente, o romance acaba sendo machista e feminista ao mesmo tempo, e pelos mesmos motivos. Ele desloca o olhar rumo ao corpo masculino, falo incluso, fetichizando-o, isto é, observando-o como uma coisa que possui poderes mágicos, e nem sempre benfazejos, o que me parece uma lição bem apropriada.
O que as mulheres de Lawrence sentem diante de coxas e ombros masculinos não me parece, afinal, tão diferente do que Stella sente entre os braços de Stanley Kowalski, ou do que sentimos diante de Marlon Brando na tela. As possibilidades de prazer estão lá, e os riscos também, bem evidentes. Dobrar-me aos poderes mágicos do desejo, porém, parece ser preferível a interditá-lo, reprimi-lo ou rir dele. E a ficção — que, tal qual os objetos de fetiche, tem um estranho poder de simultaneamente conjurar e não conjurar realidades — me parece um espaço adequado para bagunçar as normas e clichês do imaginário sexual.”
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O que as mulheres de Lawrence sentem diante de coxas e ombros masculinos não me parece, afinal, tão diferente do que Stella sente entre os braços de Stanley Kowalski, ou do que sentimos diante de Marlon Brando na tela. As possibilidades de prazer estão lá, e os riscos também, bem evidentes. Dobrar-me aos poderes mágicos do desejo, porém, parece ser preferível a interditá-lo, reprimi-lo ou rir dele. E a ficção — que, tal qual os objetos de fetiche, tem um estranho poder de simultaneamente conjurar e não conjurar realidades — me parece um espaço adequado para bagunçar as normas e clichês do imaginário sexual.”
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“Se as mulheres se esforçam para agradar homens segundo restritos padrões preestabelecidos por eles, o que pensar sobre a vida erótica dos homens heterossexuais? Minha hipótese é a de que o prazer para eles é, em grande parte, afetado ou mediado pelo poder que creem exercer ao terem junto a si uma mulher que, por sua aparência, não põe em questão os critérios culturais, artificialmente concebidos, do que é um objeto digno de ser desejado. Uma mulher sobre a qual ele pode projetar o que quiser é o prêmio a que ele pode almejar por se comportar como um bom exemplar dos machos. É “um selvagem tristemente domesticado”, diria Lou Andreas-Salomé.
Também para eles, como ela escreveu em O erotismo, o apelo erótico tem a ver com novidade e com mudança, mas sinto que isso se dá só na medida em que o “antigo” gastou seu poder de garantir sua conformação ao que sua própria cultura predeterminou: quando perdeu seu valor na competição entre homens e quando deixou de reforçar, como um espelho benévolo, as qualidades que o sujeito acredita ou quer possuir.”
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Também para eles, como ela escreveu em O erotismo, o apelo erótico tem a ver com novidade e com mudança, mas sinto que isso se dá só na medida em que o “antigo” gastou seu poder de garantir sua conformação ao que sua própria cultura predeterminou: quando perdeu seu valor na competição entre homens e quando deixou de reforçar, como um espelho benévolo, as qualidades que o sujeito acredita ou quer possuir.”
― O homem não existe: Masculinidade, desejo e ficção
“Gosto de sonhar com um mundo e um tempo em que a liberdade erótica dos homens livres atenienses será plenamente democratizada, e todos poderemos exercer nossos desejos — no limite do consentimento entre adultos — no contato com pessoas específicas, e não sob a mediação de categorias como hétero ou homossexualidade, cis ou transexualidade. Se desorganizar direitinho, todo mundo transa. No caso da Atenas clássica, no entanto, a liberdade erótica era bem relativa. Halperin resume a questão dizendo que a sociedade era puritana não quanto à vida conjugal ou reprodutiva, e sim em relação à virilidade.10 Não é muito diferente do que hoje os “cidadãos de bem” advogam; a diferença principal está na hipocrisia da vida pública, em suas muito disfarçadas inconsistências com as vidas íntimas ou nos impulsos recalcados e patologizados.”
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“Em Um teto todo seu, Virginia Woolf usou a imagem alegórica do espelho para pensar a opressão patriarcal. Durante séculos, escreveu ela em 1929, as mulheres serviram “como espelhos que possuem o poder mágico e delicioso de refletir a figura do homem com o dobro de seu tamanho natural”. Sem essa lente de aumento, diz ela, ou seja, sem alguém em relação a quem se sentir superior, seria difícil para os homens conseguir desenvolver uma civilização, produzir arte e fazer descobertas científicas. Servimos, basicamente, como uma espécie de versão não literal, e mais insidiosa, dos espelhos do libidinoso romano Hostius Quadra.
Woolf entendeu bem a velha história: nós mulheres gostamos de nos olhar no espelho; os homens gostam de ver a própria imagem refletida nos outros, seja em nós, na arte ou na sociedade.”
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Woolf entendeu bem a velha história: nós mulheres gostamos de nos olhar no espelho; os homens gostam de ver a própria imagem refletida nos outros, seja em nós, na arte ou na sociedade.”
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“Como não se lembrar da ideia que os homens gregos faziam de suas mulheres, e de como se assustavam com elas? “Mulher é a criatura que joga para o lado de fora aquilo que está dentro”, resumiu sobre isso Anne Carson, não sem criticar a virtude patriarcal do autocontrole: o que a Grécia antiga chamava de sofrósina (prudência, moderação), diz ela, Freud rebatizou de repressão (ou recalque, a depender da tradução). E encerra “The Gender of Sound” — provavelmente meu texto feminista preferido de todos os tempos — afirmando que talvez haja um modo mais generoso de encarar a virtude, a convivência e a subjetividade humanas do que em termos de uma dissociação entre o interior e o exterior.
Acho que, mais do que contato contínuo entre lábios, prazer ou gozo, porosidade ou abertura, a palavra que me parece mais pertinente quando me entendo como ser que dispõe de uma vagina é “atenção” — não ao pênis, mas ao mundo. Ainda mais eloquente, porém, do que Irigaray, Clarice ou Carson (ou eu), é uma figurinha de WhatsApp que recebi dia desses e que apresenta a imagem de um passarinho com as perninhas afastadas e os dizeres: “A periquita chega a abrir sozinha”.”
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Acho que, mais do que contato contínuo entre lábios, prazer ou gozo, porosidade ou abertura, a palavra que me parece mais pertinente quando me entendo como ser que dispõe de uma vagina é “atenção” — não ao pênis, mas ao mundo. Ainda mais eloquente, porém, do que Irigaray, Clarice ou Carson (ou eu), é uma figurinha de WhatsApp que recebi dia desses e que apresenta a imagem de um passarinho com as perninhas afastadas e os dizeres: “A periquita chega a abrir sozinha”.”
― O homem não existe: Masculinidade, desejo e ficção
“Dizem os mitos que, quando Zeus e Hera confrontaram Tirésias sobre quem sentia mais prazer no sexo, o adivinho não titubeou: as mulheres sentem nove vezes o prazer do homem. Hera não gostou — o gozo erótico é da alçada de Afrodite — e cegou o coitado. Fico com Tirésias. Nunca foi do domínio da inveja o que sinto diante de um pênis ereto — uma mulher não precisa de um objeto sobre o qual depositar toda a sua potência; é bem mais divertido interagir com ele. Nossa potência se espalha pelo corpo inteiro, e essa é a melhor sensação que se pode experimentar. O problema aparece nos momentos em que a tal potência anda em baixa e não temos um objeto singular sobre o qual jogar a responsabilidade pelas nossas frustrações, como um chefe abalado que faz bobagem e coloca a culpa em um pobre funcionário.”
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“Pênis é empregado em passagens que se propõem a ser mais objetivas ou — entre muitas aspas — científicas. Falo é o pênis ereto, geralmente tomado em seus sentidos simbólicos. Pinto é o órgão de homens que estão fora da minha esfera de atração sexual: pintos pertencem a pais, tios e outros parentes, a adultos que inspiram asco, a idosos bem caquéticos e, sobretudo, a crianças. Pau é o que uso para me referir a todos os outros homens, a não ser quando, no meio da frase, lembro que minha mãe vai ler este livro, e então uso pênis.”
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“Por essas e outras, registro logo um credo importante: personagens machistas não tornam o autor ou o livro machistas, não necessariamente. E mais: livros machistas não são necessariamente ruins. Se o homem tem tantas vezes dificuldade de se abrir para o outro — essa exigência da ficção —, me esforço para não cair no mesmo erro. Também critico, porém, a falácia segundo a qual obra e autor são entidades separadas por milagre. Não são, e às vezes temos que decidir se vamos sustentar gostar de um autor babaca.”
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“Como feminista, naturalmente quero perceber com clareza o modo como a defesa de certos privilégios penetra insidiosamente os mais diversos discursos, inclusive o literário. Quero distinguir os valores masculinos hegemônicos daqueles universais, se é que estes existem. No entanto, como mulher formada por essa cultura, preciso admitir que sou parte dela, que não há modo objetivo de isolar minha consciência feminina de todo o resto. Em outras palavras, não só ler literatura escrita por homens mas também ler como um homem — já que tantos livros foram escritos para eles — são experiências constitutivas do modo como entendo a mim mesma e o mundo.
Para uma mulher, crescer em uma cultura predominantemente masculina significa ocupar um lugar esquisito, em que é preciso se tensionar entre sujeito e objeto. As narrativas a que somos expostas frequentemente nos esticam (ou nos dilaceram) entre duas práticas e atitudes: entre, de um lado, o gesto de calçar os sapatos de personagens e autores homens, vivendo — como leitoras, ouvintes e espectadoras — suas aventuras e desventuras, e, de outro, o movimento de nos colocarmos no nosso devido lugar, à parte desse mundo mágico ou, no caso heterossexual, na posição secundária de objetos de desejo dos sujeitos.
A diferença entre querer ser e querer ter é só aparentemente simples. Eu me lembro bem do dia em que percebi o que há no meio do caminho. Tinha uns dezessete anos e estava no corredor da Faculdade de Direito, conversando com alguns dos rapazes da turma. Um deles fez, então, alguma piada grosseira e logo me pediu desculpas por falar aquilo na frente de uma garota. Outro colega, porém, disse para ele relaxar: “A Ligia é como a gente, não tem problema”. Eu queria, sim, ser como a gente — poder fazer e ouvir piadas grosseiras etc. —, mas também queria, e muito, ser como as garotas diante de quem não se fazem piadas grosseiras. Eram elas, afinal, que eles queriam beijar.
No meu caso — uma menina nerd que gostava de submergir nos livros e no cinema, e que ouvia muito Bob Dylan e Chico Buarque —, romances, poemas, filmes e canções contribuíram bastante para eu viver esse lugar esquisito, de querer ser tanto o aventureiro que atravessa 2 mil quilômetros escondido em vagões de trem quanto a mulher fatal que faz com que ele finalmente se descuide e acabe morto. Queria ser o herói que tinha um cavalo que falava inglês e também a noiva do caubói. Ainda quero.”
― O homem não existe: Masculinidade, desejo e ficção
Para uma mulher, crescer em uma cultura predominantemente masculina significa ocupar um lugar esquisito, em que é preciso se tensionar entre sujeito e objeto. As narrativas a que somos expostas frequentemente nos esticam (ou nos dilaceram) entre duas práticas e atitudes: entre, de um lado, o gesto de calçar os sapatos de personagens e autores homens, vivendo — como leitoras, ouvintes e espectadoras — suas aventuras e desventuras, e, de outro, o movimento de nos colocarmos no nosso devido lugar, à parte desse mundo mágico ou, no caso heterossexual, na posição secundária de objetos de desejo dos sujeitos.
A diferença entre querer ser e querer ter é só aparentemente simples. Eu me lembro bem do dia em que percebi o que há no meio do caminho. Tinha uns dezessete anos e estava no corredor da Faculdade de Direito, conversando com alguns dos rapazes da turma. Um deles fez, então, alguma piada grosseira e logo me pediu desculpas por falar aquilo na frente de uma garota. Outro colega, porém, disse para ele relaxar: “A Ligia é como a gente, não tem problema”. Eu queria, sim, ser como a gente — poder fazer e ouvir piadas grosseiras etc. —, mas também queria, e muito, ser como as garotas diante de quem não se fazem piadas grosseiras. Eram elas, afinal, que eles queriam beijar.
No meu caso — uma menina nerd que gostava de submergir nos livros e no cinema, e que ouvia muito Bob Dylan e Chico Buarque —, romances, poemas, filmes e canções contribuíram bastante para eu viver esse lugar esquisito, de querer ser tanto o aventureiro que atravessa 2 mil quilômetros escondido em vagões de trem quanto a mulher fatal que faz com que ele finalmente se descuide e acabe morto. Queria ser o herói que tinha um cavalo que falava inglês e também a noiva do caubói. Ainda quero.”
― O homem não existe: Masculinidade, desejo e ficção
