Memoria de elefante Quotes

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Memoria de elefante Memoria de elefante by António Lobo Antunes
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Memoria de elefante Quotes Showing 1-21 of 21
“Amo-te tanto que te não sei amar, amo tanto o teu corpo e o que em ti não é o teu corpo que não compreendo porque nos perdemos se a cada passo te encontro, se sempre ao beijar-te beijei mais do que a carne de que és feita, se o nosso casamento definhou de mocidade como outros de velhice, se depois de ti a minha solidão incha do teu cheiro, do entusiasmo dos teus projectos e do redondo das tuas nádegas, se sufoco da ternura de que não consigo falar, aqui neste momento,
amor, me despeço e te chamo sabendo que não virás e desejando que venhas do mesmo modo que, como diz Molero, um cego espera os olhos que encomendou pelo correio.”
António Lobo Antunes, Memoria de elefante
“E porque é que só sei gostar, perguntou-se examinando as bolhas de gás pegadas à parede do vidro, porque é que só sei dizer que gosto através dos rodriguinhos de perifrases e metáforas e imagens, da preocupação dealindar, de pôr franjas de crochet nos sentimentos, de verter a exastação e a angustia na cadencia pindérica do fadomenor, alma a gingar, piegas, à Correia de Oliveira de samarra, se tudo isto é limpo, claro, directo, sem precisão de bonitezas, enxuto como uma Giacometti numa sala vazia e tão simplesmente eloquente como ele: depor palavras aos pés de uma escultura equivale às flores inuteis que se entregam aos mortos ou à dança da chuva em torno de um poço cheio: chiça para mim e para o romantismo meloso que me corre nas veias, minha eterna dificuldade em proferir palavras secas e exactas como pedras”
António Lobo Antunes, Memoria de elefante
“comerei beijos como quem come sopa, e palitarei as gengivas no fim para extrair dos molares restos incómodos de ternura”
António Lobo Antunes, Memoria de elefante
“O médico lembrou-se de uma frase de Scott Fitzgerald, tripulante aflito do barco em que
seguiam, deixado em terra numa viagem
anterior, de coração exausto alimentado pelo oxigénio amargo do álcool: na noite mais escura da alma são sempre três horas da
manhã.”
António Lobo Antunes, Memoria de elefante
“esse homem que morava numa garrafa de uísque como os barcos dos colecionadores”
António Lobo Antunes, Memoria de elefante
“(...) acontecia-lhe adormecer ao relento, de cabeça encostada ao estore, com um barco que saía da barra a viajar-lhe dentro das pálpebras cansadas, e lograr desse jeito alguma espécie de sossego, até que um indício de claridade roxa, misturada com pardais, o despertava (...)”
António Lobo Antunes, Memoria de elefante
“A noite das ruas e das praças, nessa sexta-feira, aparentava-se para o médico às noites de infância quando, deitado, escutava, vindo do escritório, os tais duetos de ópera que lhe chegavam à cama sob a forma de discussões apavorantes, o pai-tenor e a mãe-soprano a insultarem-se aos gritos num fundo tétrico de orquestra que o escuro ampliava até um deles enforcar o outro num nó corredio de um dó sustenido, a que se seguia o terrível silêncio das tragédias consumadas: alguém jazia na carpete numa poça de colcheias, assassinado a golpes de bemóis, e maestros gatos-pingados, vestidos de preto, subiriam em breve a escada carregando um caixão que se assemelhava a um estojo de contrabaixo, com o crucifixo de duas batutas cruzadas no tampo.”
António Lobo Antunes, Memoria de elefante
“Não sei, respondeu rapidamente no medo de que a receptividade que conseguira
desaparecesse e se achasse defronte de oito rostos aborrecidos ou hostis. - Não sei ou sei, é conforme, acho que me apavora um bocado o amor que os outros têm por mim e eu por eles e receio viver isso até ao fim,
inteiramente, entregar-me às coisas e lutar por elas enquanto tiver força, e quando a força se acabar arranjar mais força para prosseguir o combate.”
António Lobo Antunes, Memoria de elefante
“no íntimo desejaria que o analista se vestisse segundo os seus próprios padrões de
elegância, aliás discutíveis e vagos no que a si se referia: um dos irmãos costumava dizer-lhe que ele, psiquiatra, se assemelhava à fotografia à la minute de um noivo de província, espantado em jaquetão de riscas mal feitas. Enfarpelo-me como o Coelho Branco da Alice e exijo que aqueles que aprecio ingressem no uniforme do chapeleiro Louco: talvez que assim possamos todos jogar croquet com a Rainha de Copas, cortar de um só golpe o pescoço ao quotidiano do Quotidiano e saltar a pés juntos para o outro lado do espelho.”
António Lobo Antunes, Memoria de elefante
“O sinal passou a verde e imediatamente o táxi por trás dele buzinou, imperioso: porque raio é que os choferes de táxi, perguntou-se, são as criaturas mais azedas do mundo? E também homens sem rosto, reduzidos a nuca
e ombros plantados como pregos no banco da frente, e ocasionalmente a um par de olhos vazios no quadradinho do retrovisor, órbitas de vidro inexpressivo como os dos
bichos das noras. Talvez que circular por Lisboa o dia inteiro atire as pessoas para uma espécie de epilepsia explosiva, talvez que esta cidade de raiva e nojo a quem por obrigação a percorre em todos os sentidos, talvez que o próprio do indivíduo seja a exaltação assassina em franjas e andemos por aqui, nós os comedidos, a fingir amabilidade que não temos”
António Lobo Antunes, Memoria de elefante
“Nunca topei corpo para mim como o teu, disse-se o médico vertendo a cerveja na caneca, tão à medida das minhas humanas e desumanas medidas, as autênticas e as inventadas que nem por o serem o são menos, nunca topei uma tão grande e boa capacidade de encontro com outra pessoa, de absoluta coincidência, de se ser entendido sem falar e de entender o silêncio e as emoções e os pensamentos alheios, que me foi sempre milagre o termo-nos conhecido na praia onde te conheci, magra, morena, frágil, o teu antiquíssimo perfil sério pousado nos joelhos dobrados, o cigarro que fumavas, a cerveja (igual a esta) no banco à tua ilharga, a tua perpétua atenção de bicho, os muitos anéis de prata dos teus dedos, minha mulher
dele sempre e minha única mulher, minha lâmpada para o escuro, retrato dos meus olhos, mar de Setembro, meu amor.”
António Lobo Antunes, Memoria de elefante
“(...) a ausência de talento é uma bênção, verificou ele; só que custa a gente habituar-se a isso. E assumida a sua condição de homem comum reduzido aos raros voos de perdiz de uma poesia ocasional, sem a corcunda da imortalidade agarrada às costas, sentia-se livre para sofrer sem originalidade e dispensado de rodear os seus silêncios da muralha de taciturna inteligência que
associava ao génio.”
António Lobo Antunes, Memoria de elefante
“Esta cidade que era a sua oferecia-lhe sempre, através das suas avenidas e das suas praças, o rosto infinitamente variável de uma amante caprichosa que as árvores escureciam do cone de sombra dos remorsos melancólicos, e acontecia-lhe tropeçar nos Neptunos dos lagos como um bêbedo se encontra, ao sair de um candeeiro, com o queixo feroz de um polícia sem humor, culturalmente alimentado pelos erros de gramática do cabo da esquadra. Todas as estátuas apontavam o dedo na direcção do mar, convidando à India ou a um suicídio discreto, consoante o estado de alma e o nível do desejo de aventura no depósito da infância (...)”
António Lobo Antunes, Memoria de elefante
“O psiquiatra sentiu-se de repente pré-histórico junto desses seres cujos olhos
oblíquosquos eram lentes de Leika e cujos estômagos haviamsido substituídos por carburadores de Datsun, para sempre libertos de guinadas de azia e de gases que hesitavam
entre o suspiro e o arroto: não sei se é
borborigmo se tristeza, pensava muitas vezes quando lhe inchava o peito e lhe chegava à boca o balão de uma pastilha elástica sem pastilha a evaporar-se pelos lábios num assobiozinho de cometa, e atribuía por comodidade ao esófago o que de facto dizia respeito à confusão da sua angústia.”
António Lobo Antunes, Memoria de elefante
“Somos ele e eu Sandokans de meia idade, pensou o médico, em que a aventura consiste em decifrar a página necrológica do jornal na esperança de que a omissão do nosso nome
nos garanta estarmos vivos. E vamos entretanto partindo aos pedaços, por fracções, o cabelo, o apêndice, a vesicula, alguns dentes, como encomendas desmontáveis”
António Lobo Antunes, Memoria de elefante
“E aqui estou eu, disse-se o médico, a colaborar não colaborando com a continuação disto, com a pavorosa máquina doente da saúde mental trituradora no ovo dos germenzinhos de liberdade que em nós nascem sob a forma canhestra de um protesto inquieto, pactuando mediante o meu silêncio, o ordenado que recebo, a carreira que me oferecem: como resistir de
dentro, quase sem ajuda, à inércia eficaz e mole da psiquiatria institucional, inventora da grande linha branca de separar a normalidade da «loucura» através de uma
complexa e postiça rede de sintomas, da psiquiatria como grosseira alienação, como vingança dos castrados contra o pénis que não têm, como arma real da burguesia a que
por nascença pertenço e que se torna tão difícil renegar, hesitando como hesito entre o imobilismo cómodo e a revolta penosa, cujo preço se paga caro porque se não tiver pais quem virá querer, à roda, perfilhar-me?”
António Lobo Antunes, Memoria de elefante
“(...) de loucura que é afinal a nossa e da qual nos protegemos a etiquetá-la, a comprimi-la de grades, a alimentá-la de pastilhas e de gotas para que continue existindo, a conceder-lhe licença de saída ao fim-de-semana e a encaminhá-la na direcção de uma «normalidade» que provavelmente consiste apenas no empalhar em vida. Quando se diz, considerou ele de mãos nos bolsos a observar os serafins do bagaço, que os psiquiatras são malucos está se tocando sem saber o centro da verdade: em nenhuma especialidade como nesta se topam seres de crânio tão em saca-rolhas, tratando-se a si mesmos através das curas de sono impingidas por persuasão ou à força aos que os procuram para se procurarem e arrastam de consultório em consultório a ansiedade da sua tristeza, como um coxo transporta a perna manca de endireita em endireita, em busca de um milagre impossível. Vestir as pessoas de diagnósticos, ouvi-las sem as escutar, ficar de fora delas como à beira de um rio de que se desconhecem as correntes, os peixes e o côncavo de rocha de que nasce, assistir ao torvelinho da enchente sem molhar os pés, recomendar um comprimido depois de cada refeição e uma pílula à noite e ficar saciado com esse feito de escuteiro: o que me faz pertencer a este clube sinistro, meditou, e sofrer quotidianamente remorsos pela debilidade dos meus protestos e pelo meu inconformismo conformado, e até que ponto a certeza de que a revolução se faz do interior não funciona em mim como desculpa, autoviático para prosseguir cedendo?”
António Lobo Antunes, Memoria de elefante
“(...) de loucura que é afinal a nossa e da qual nos protegemos a etiquetá-la, a comprimi-la de grades, a alimentá-la de pastilhas e de gotas para que continue existindo, a conceder-lhe licença de saída ao fim-de-semana e a encaminhá-la na direcção de uma «normalidade» que provavelmente consiste apenas no empalhar em vida. Quando se diz, considerou ele de mãos nos bolsos a observar os serafins do bagaço, que os psiquiatras são malucos está se tocando sem saber o centro da verdade: em nenhuma especialidade como nesta se topam seres de crânio tão em saca-rolhas, tratando-se a si mesmos através das curas de sono impingidas por persuasão ou à força aos que os procuram para se procurarem e arrastam de consultório em consultório a ansiedade da sua tristeza, como um coxo transporta a perna manca de endireita em endireita, em busca de um milagre impossível. Vestir as pessoas de diagnósticos, ouvi-las sem as escutar, ficar de fora delas como à beira de um rio de que se desconhecem”
António Lobo Antunes, Memoria de elefante
“e trouxe à tona ao acaso, nítido na concha
da palma, ele miúdo acocorado no bacio diante do espelho do guarda-fato em que as mangas dos casacos pendurados de perfil como as pinturas egípcias proliferavam a abundância de lianas moles dos príncipes-de gales do seu pai.
Um puto loiro que alternadamente se espreme e observa, pensou concedendo um soslaio aos anos devolutos, eis um razoável resumo dos capítulos anteriores: costumavam deixá-lo assim horas seguidas na sua chávena de Sèvres de esmalte onde o chichi pianolava escalas tímidas de harpa, a conversar consigo mesmo as quatro ou cinco palavras de um vocabulário monossilábico completado de onomatopeias e guinchos de saguim abandonado, ao mesmo tempo que no andar de baixo a tromba de papa- -formigas do aspirador sugava carnivoramente as franjas comestíveis das carpetes manejada pela mulher do caseiro a quem o incómodo das pedras da vesícula acentuava o aspecto outonal. Quando é que eu me fodi?”
António Lobo Antunes, Memoria de elefante
“E acabamos fatalmente por desembocar na pergunta essencial, que se encontra por detrás de todas as outras quando todas as outras se afastam ou foram afastadas e que é, se me permitem, Quem Sou Eu? Interrogo-me e a resposta consiste, obcecantemente, invariavelmente, assim: Uma Merda.”
António Lobo Antunes, Memoria de elefante
“escrever é um bocado fazer respiração boca-a-boca ao dicionário de Moraes, à gramática da 4ª classe e aos restantes jazigos de palavras defuntas”
António Lobo Antunes, Memoria de elefante