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“A complete life may be one ending in so full identification with the nonself that there is no self to die.” BERNARD BERENSON
Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda. Não confio no que me aconteceu. Aconteceu-me alguma coisa que eu, pelo fato de não a saber como viver, vivi uma outra?
na confirmação de mim eu perderia o mundo como eu o tinha, e sei que não tenho capacidade para outro.
mundo inteiro terá que se transformar para eu caber nele.
Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que fazia de mim um tripé estável. Essa terceira perna eu perdi. E voltei a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que nunca tive: apenas as duas pernas. Sei que somente com duas pernas é que posso caminhar. Mas a ausência inútil da terceira me faz falta e me assusta, era ela que fazia de mim uma coisa encontrável por mim mesma, e sem sequer precisar me procurar.
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a covardia é o que de mais novo já me aconteceu, é a minha maior aventura, essa minha covardia é um campo tão amplo que só a grande coragem me leva a aceitá-la
É difícil perder-se. É tão difícil que provavelmente arrumarei depressa um modo de me achar, mesmo que achar-me seja de novo a mentira de que vivo.
Mas tenho medo do que é novo e tenho medo de viver o que não entendo – quero sempre ter a garantia de pelo menos estar pensando que entendo, não sei me entregar à desorientação.
Como se explica que o meu maior medo seja exatamente o de ir vivendo o que for sendo? como é que se explica que eu não tolere ver, só porque a vida não é o que eu pensava e sim outra – como se antes eu tivesse sabido o que era! Por que é que ver é uma tal desorganização?
ele está muito feliz porque finalmente foi desiludido. O que eu era antes não me era bom. Mas era desse não-bom que eu havia organizado o melhor: a esperança. De meu próprio mal eu havia criado um bem futuro.
O medo agora é que meu novo modo não faça sentido? Mas por que não me deixo guiar pelo que for acontecendo? Terei que correr o sagrado risco do acaso. E substituirei o destino pela probabilidade.
perder-se significa ir achando e nem saber o que fazer do que se for achando.
prende. E eu quero ser presa. Não sei o que fazer da aterradora liberdade que pode me destruir. Mas enquanto eu estava presa, estava contente?
e havia, aquela coisa latejando, a que eu estava tão habituada que pensava que latejar era ser um...
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E – e se a realidade é mesmo que nada existiu?! quem sabe nada me aconteceu?
Só posso compreender o que me acontece mas só acontece o que eu compreendo – que sei do resto? o resto não existiu.
Eu havia humanizado demais a vida. Mas como faço agora? Devo ficar com a visão toda, mesmo que isso signifique ter uma verdade incompreensível? ou dou uma forma ao nada, e este será o meu modo de integrar em mim a minha própria desintegração? Mas estou tão pouco preparada para entender.
E que eu tenha a grande coragem de resistir à tentação de inventar uma forma.
Mas receio começar a compor para poder ser entendida pelo alguém imaginário, receio começar a “fazer” um sentido, com a mesma mansa loucura que até ontem era o meu modo sadio de caber num sistema. Terei que ter a coragem de usar um coração desprotegido e de ir falando para o nada e para o ninguém? assim como uma criança pensa para o nada. E correr o risco de ser esmagada pelo acaso.
Talvez o que me tenha acontecido seja uma compreensão – e que, para eu ser verdadeira, tenho que continuar a não estar à altura dela, tenho que continuar a não entendê-la. Toda compreensão súbita se parece muito com uma aguda incompreensão.
Toda compreensão súbita é finalmente a revelação de uma aguda incompreensão. Todo momento de achar é um perder-se a si próprio.
Só que agora, agora sei de um segredo. Que já estou esquecendo, ah sinto que já estou esquecendo... Para sabê-lo de novo, precisaria agora remorrer. E saber será talvez o assassinato de minha alma humana. E não quero, não quero.
Ah, e nem ao menos quero que me seja explicado aquilo que para ser explicado teria que sair de si mesmo. Não quero que me seja explicado o que de novo precisaria da validação humana para ser interpretado.
Para que eu continue humana meu sacrifício será o de esquecer?
Eu vi. Sei que vi porque não dei ao que vi o meu sentido. Sei que vi – porque não entendo. Sei que vi – porque para nada serve o que vi.
Entregar-me ao que não entendo será pôr-me à beira do nada.
Essa coisa sobrenatural que é viver. O viver que eu havia domesticado para torná-lo familiar. Essa coisa corajosa que será entregar-me,
Enquanto escrever e falar vou ter que fingir que alguém está segurando a minha mão. Oh pelo menos no começo, só no começo. Logo que puder dispensá-la, irei sozinha. Por enquanto preciso segurar esta tua mão – mesmo que não consiga inventar teu rosto e teus olhos e tua boca. Mas embora decepada, esta mão não me assusta. A invenção dela vem de tal ideia de amor como se a mão estivesse realmente ligada a um corpo que, se não vejo, é por incapacidade de amar mais. Não estou à altura de imaginar uma pessoa inteira porque não sou uma pessoa inteira. E como imaginar um rosto se não sei de que
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morrer é do maior risco, não saberei passar para a morte e pôr o primeiro pé na primeira ausência de mim
Mas é que a verdade nunca me fez sentido. A verdade não me faz sentido! É por isso que eu a temia e a temo.
Por te falar eu te assustarei e te perderei? mas se eu não falar eu me perderei, e por me perder eu te perderia.
Será preciso coragem para fazer o que vou fazer: dizer. E me arriscar à enorme surpresa que sentirei com a pobreza da coisa dita. Mal a direi, e terei que acrescentar: não é isso, não é isso! Mas é preciso também não ter medo do ridículo,
Não tenho uma palavra a dizer. Por que não me calo, então? Mas se eu não forçar a palavra a mudez me engolfará para sempre em ondas.
Quanto eu devia ter vivido presa para sentir-me agora mais livre somente por não recear mais a falta de estética...
Por enquanto o primeiro prazer tímido que estou tendo é o de constatar que perdi o medo do feio. E essa perda é de uma tal bondade. É uma doçura.
Quero saber o que mais, ao perder...
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Terei que criar sobre a vida. E sem mentir. Criar sim, mentir não. Criar não é imaginação, é correr o grande risco de se ter a realidade. Entender é uma criação, meu único modo.
nunca soube ver sem logo precisar mais do que ver.
Vi, sim. Vi, e me assustei com a verdade bruta de um mundo cujo maior horror é que ele é tão vivo que, para admitir que estou tão viva quanto ele – e minha pior descoberta é que estou tão viva quanto ele – terei que alçar minha consciência de vida exterior a um ponto de crime contra a minha vida pessoal.
Eu antes vivia de um mundo humanizado, mas o puramente vivo derrubou a moralidade que eu tinha?
Nada me fazia supor ao que eu ia. Mas é que nunca fui capaz de perceber as coisas se encaminhando; todas as vezes que elas chegavam a um ápice, me parecia com surpresa um rompimento, explosão dos instantes, com data, e não a continuação de uma ininterrupção.
Sou agradável, tenho amizades sinceras, e ter consciência disso faz com que eu tenha por mim uma amizade aprazível, o que nunca excluiu um certo sentimento irônico por mim mesma, embora sem perseguições.
viver não é coragem, saber que se vive é a coragem
Olhava de relance o rosto fotografado e, por um segundo, naquele rosto inexpressivo o mundo me olhava de volta também inexpressivo. Este – apenas esse – foi o meu maior contato comigo mesma? o maior aprofundamento mudo a que cheguei, minha ligação mais cega e direta com o mundo. O resto – o resto eram sempre as organizações de mim mesma, agora sei, ah, agora eu sei. O resto era o modo como pouco a pouco eu havia me transformado na pessoa que tem o meu nome. E acabei sendo o meu nome. É suficiente ver no couro de minhas valises as iniciais G.H., e eis-me.
Quem sabe eu tive de algum modo pressa de viver logo tudo o que eu tivesse a viver para que me sobrasse tempo de... de viver sem fatos? de viver.
Não é que eu queira estar pura da vaidade, mas preciso ter o campo ausente de mim para poder andar. Se eu andar.
preciso ficar isenta de mim para ver.
Eu nascera sem missão, minha natureza não me impunha nenhuma; e sempre tive a mão bastante delicada para não me impor um papel. Eu não me impunha um papel mas me organizara para ser compreendida por mim, não suportaria não me encontrar no catálogo. Minha pergunta, se havia, não era: “que sou”, mas “entre quais eu sou”.
Um olho vigiava a minha vida. A esse olho ora provavelmente eu chamava de verdade, ora de moral, ora de lei humana, ora de Deus, ora de mim. Eu vivia mais dentro de um espelho. Dois minutos depois de nascer eu já havia perdido as minhas origens.
Para ter o que eu tinha eu nunca precisara nem de dor nem de talento. O que eu tinha não me era conquista, era dom.