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Tudo se resumia ferozmente em nunca dar um primeiro grito – um primeiro grito desencadeia todos os outros, o primeiro grito ao nascer desencadeia uma vida, se eu gritasse acordaria milhares de seres gritantes que iniciariam pelos telhados um coro de gritos e horror. Se eu gritasse desencadearia a existência – a existência de quê? a existência do mundo. Com reverência eu temia a existência do mundo para mim.
É que eu não estava mais me vendo, estava era vendo. Toda uma civilização que se havia erguido, tendo como garantia que se misture imediatamente o que se vê com o que se sente, toda uma civilização que tem como alicerce o salvar-se – pois eu estava em seus escombros.
Enfim o corpo, embebido de silêncio, se apaziguava. O alívio vinha de eu caber no desenho mudo da caverna.
Até aquele momento eu não havia percebido totalmente a minha luta, tão mergulhada estivera nela. Mas agora, pelo silêncio onde enfim eu caíra, sabia que havia lutado, que havia sucumbido e que cedera.
A vida é tão contínua que nós a dividimos em etapas, e a uma delas chamamos de morte. Eu sempre estivera em vida, pouco importa que não eu propriamente dita, não isso a que convencionei chamar de eu. Sempre estive em vida.
De nascer até morrer é o que eu me chamo de humana, e nunca propriamente morrerei.
Tudo olha para tudo, tudo vive o outro; neste deserto as coisas sabem as coisas. As coisas sabem tanto as coisas que a isto... a isto chamarei de perdão, se eu quiser me salvar no plano humano. É o perdão em si. Perdão é um atributo da matéria viva.
É que por enquanto a metamorfose de mim em mim mesma não faz nenhum sentido. É uma metamorfose em que perco tudo o que eu tinha, e o que eu tinha era eu – só tenho o que sou.
Não entendo e tenho medo de entender, o material do mundo me assusta, com os seus planetas e baratas.
Mas que abismo entre a palavra e o que ela tentava, que abismo entre a palavra amor e o amor que não tem sequer sentido humano – porque – porque amor...
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No desmoronamento, toneladas caíram sobre toneladas. E quando eu, G.H. até nas valises, eu, uma das pessoas, abri os olhos, estava – não sobre escombros pois até os escombros já haviam sido deglutidos pelas areias – estava numa planície tranquila, quilômetros e quilômetros abaixo do que fora uma grande cidade. As coisas haviam voltado a ser o que eram.
O mundo havia reivindicado a sua própria realidade, e, como depois de uma catástrofe, a minha civilização acabara: eu era apenas um dado histórico. Tudo em mim fora reivindicado pelo começo dos tempos e pelo meu próprio começo. Eu passara a um primeiro plano primário, estava no silêncio dos ventos e na era de estanho e cobre – na era primeira da vida.
Mas por que eu? Mas por que não eu. Se não tivesse sido eu, eu não saberia, e tendo sido eu, eu soube – apenas isso. O que é que me havia chamado: a loucura ou a realidade?
Se em mim tudo se quebrava à passagem da força, não é porque a função desta era a de quebrar: ela só precisava enfim passar pois já se tornara caudalosa demais para poder se conter ou contornar – ao passar ela cobria tudo. E depois, como após um dilúvio, sobrenadavam um armário, uma pessoa, uma janela solta, três maletas. E isso me parecia o inferno, essa destruição de camadas e camadas arqueológicas humanas.
E sem essa humanização e sem a sentimentação do mundo – eu me apavoro.
Eu me sentia imunda como a Bíblia fala dos imundos. Por que foi que a Bíblia se ocupou tanto dos imundos, e fez uma lista dos animais imundos e proibidos? por que se, como os outros, também eles haviam sido criados? E por que o imundo era proibido? Eu fizera o ato proibido de tocar no que é imundo.
Eles dizem tudo, a Bíblia, eles dizem tudo – mas se eu entender o que eles dizem, eles mesmos me chamarão de enlouquecida. Pessoas iguais a mim haviam dito, no entanto entendê-las seria a minha derrocada.
Eu estava sabendo que o animal imundo da Bíblia é proibido porque o imundo é a raiz – pois há coisas criadas que nunca se enfeitaram e conservaram-se iguais ao momento em que foram criadas, e somente elas continuaram a ser a raiz ainda toda completa. E porque são a raiz é que não se podia comê-las, o fruto do bem e do mal – comer a matéria viva me expulsaria de um paraíso de adornos, e me levaria para sempre a andar com um cajado pelo deserto.
Para construir uma alma possível – uma alma cuja cabeça não devore a própria cauda – a lei manda que só se fique com o que é disfarçadamente vivo. E a lei manda que, quem comer do imundo, que o coma sem saber. Pois quem comer do imundo sabendo que é imundo – também saberá que o imundo não é imundo. É isso?
Por quê? por que não queria eu me tornar tão imunda quanto a barata? que ideal me prendia ao sentimento de uma ideia? por que não me tornaria eu imunda, exatamente como eu toda me descobria? O que temia eu? ficar imunda de quê? Ficar imunda de alegria.
No meu mudo pedido de socorro, eu estava lutando era contra uma vaga primeira alegria que eu não queria perceber em mim porque, mesmo vaga, já era horrível: era uma alegria sem redenção, não sei te explicar, mas era uma alegria sem a esperança.
desconhecida. Ela seria tão proibida pela minha futura salvação quanto o bicho proibido que foi chamado de imundo
Eu abria e fechava a boca para pedir socorro mas não podia nem sabia articular. É que eu não tinha mais o que articular. Minha agonia era como a de querer falar antes de morrer. Eu sabia que estava me despedindo para sempre de alguma coisa, alguma coisa ia morrer, e eu queria articular a palavra que pelo menos resumisse aquilo que morria.
Afinal consegui pelo menos articular um pensamento: “estou pedindo socorro”. Ocorreu-me então que eu não tinha contra o que pedir socorro. Eu não tinha nada a pedir. De repente era isso. Eu estava entendendo que “pedir” eram ainda os últimos restos de um mundo apelável que, mais e mais, se estava tornando remoto. E se eu continuava a querer pedir era para ainda me agarrar aos últimos restos de minha civilização antiga, agarrar-me para não me deixar ser arrastada pelo que agora me reivindicava.
Mas se seus olhos não me viam, a existência dela me existia – no mundo primário onde eu entrara, os seres existem para os outros como modo de se verem.
E nesse mundo que eu estava conhecendo, há vários modos que significam ver: um olhar o outro sem vê-lo, um possuir o outro, um comer o outro, um apenas estar num canto e o outro estar ali também: tudo isso também significa ver.
Eu não podia mais negar. Não sei o que é que eu não podia mais negar, mas já não podia mais. E nem podia mais me socorrer, como antes, de toda uma civilização que me ajudaria a negar o que eu via.
Nunca, até então, a vida me havia acontecido de dia. Nunca à luz do sol. Só nas minhas noites é que o mundo se revolvia lentamente. Só que, aquilo que acontecia no escuro da própria noite, também acontecia ao mesmo tempo nas minhas próprias entranhas, e o meu escuro não se diferenciava do escuro de fora, e de manhã, ao abrir os olhos, o mundo continuava sendo uma superfície: a vida secreta da noite em breve se reduzia na boca ao gosto de um pesadelo que some. Mas agora a vida estava acontecendo de dia. Inegável e para ser vista. A menos que eu desviasse os olhos.
Eu já estava vendendo a minha alma humana, porque ver já começara a me consumir em prazer, eu vendia o meu futuro, eu vendia a minha salvação, eu nos vendia.
eu também sabia que na hora de minha morte eu também não seria traduzível por palavra. De morrer, sim, eu sabia, pois morrer era o futuro e é imaginável, e de imaginar eu sempre tivera tempo. Mas o instante, o instante este – a atualidade – isso não é imaginável, entre a atualidade e eu não há intervalo: é agora, em mim.
Entende, morrer eu sabia de antemão e morrer ainda não me exigia. Mas o que eu nunca havia experimentado era o choque com o momento chamado “já”. Hoje me exige hoje mesmo.
Nunca antes soubera que a hora de viver também não tem palavra. A hora de viver, meu amor, estava sendo tão já que eu encostava a boca na matéria da vida. A hora de viver é um ininterrupto lento rangido de portas que se abrem continuamente de par em par. Dois portões se abriam e nunca...
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A hora de viver é tão infernalmente inexpressiva que é o nada. Aquilo que eu chamava de “nada” era no entanto tão colado a mim que me era... eu? e portanto se tornava invisíve...
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Pois a atualidade não tem esperança, e a atualidade não tem futuro: o futuro será exatamente de novo uma atualidade.
Parece que vou ter que desistir de tudo o que deixo atrás dos portões. E sei, eu sabia, que se atravessasse os portões que estão sempre abertos, entraria no seio da natureza.
Eu sabia que entrar não é pecado. Mas é arriscado como morrer. Assim como se morre sem se saber para onde, e esta é a maior coragem de um corpo. Entrar só era pecado porque era a danação de minha vida, para a qual eu depois não pudesse talvez mais regredir. Eu talvez já soubesse que, a partir dos portões, não haveria diferença entre mim e a barata. Nem aos meus próprios olhos nem aos olhos do que é Deus.
Assassinato o mais profundo: aquele que é um modo de relação, que é um modo de um ser existir o outro ser, um modo de nos vermos e nos sermos e nos termos, assassinato onde não há vítima nem algoz, mas uma ligação de ferocidade mútua. Minha luta primária pela vida.
Pois como eu, tu quiseste transcender a vida, e assim a ultrapassaste. Mas agora eu não vou mais poder transcender, vou ter que saber, e irei sem ti, a quem eu quis pedir socorro.
pois não transcender é um sacrifício, e transcender era antigamente o meu esforço humano de salvação, havia uma utilidade imediata em transcender. Transcender é uma transgressão. Mas ficar dentro do que é, isso exige que eu não tenha medo!
eu quero a atualidade sem enfeitá-la com um futuro que a redima, nem com uma esperança – até agora o que a esperança queria em mim era apenas escamotear a atualidade.
eu estava sabendo que se não chamasse as coisas de salgadas ou doces, de tristes ou alegres ou dolorosas ou mesmo com entretons de maior sutileza – que só então eu não estaria mais transcendendo e ficaria na própria coisa.
A moralidade. Seria simplório pensar que o problema moral em relação aos outros consiste em agir como se deveria agir, e o problema moral consigo mesmo é conseguir sentir o que se deveria sentir? Sou moral à medida que faço o que devo, e sinto como deveria? De repente a questão moral me parecia não apenas esmagadora, como extremamente mesquinha. O problema moral, para que nos ajustássemos a ele, deveria ser simultaneamente menos exigente e maior.
A solução tinha que ser secreta. A ética da moral é mantê-la em segredo. A liberdade é um segredo. Embora eu saiba que, mesmo em segredo, a liberdade não resolve a culpa. Mas é preciso ser maior que a culpa.
Amor é quando não se dá nome à identidade das coisas?
e vejo que há alguma coisa mais séria e mais fatal e mais núcleo do que tudo o que eu costumava chamar por nomes. Eu, que chamava de amor a minha esperança de amor.