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O leve prazer geral – que parece ter sido o tom em que vivo ou vivia – talvez viesse de que o mundo não era eu nem meu: eu podia usufruí-lo.
Quanto a mim mesma, sem mentir nem ser verdadeira
sempre conservei uma aspa à esquerda e outra à direita de mim. De algum modo “como se não fosse eu” era mais amplo do que se fosse – uma vida inexistente me possuía toda e me ocupava como uma invenção.
Fotografia é o retrato de um côncavo, de uma falta, de uma ausência?
Eu era a imagem do que eu não era, e essa imagem do não-ser me cumulava toda: um dos modos mais fortes é ser negativamente. Como eu não sabia o que era, então “não ser” era a minha maior aproximação da verdade: pelo menos eu tinha o lado avesso: eu pelo menos tinha o “não”, tinha o meu oposto.
E vivendo o meu “mal”, eu vivia o lado avesso daquilo que nem sequer eu conseguiria querer ou tentar.
Só agora sei que eu já tinha tudo, embora do modo contrário: eu me dedicava a cada detalhe do não. Detalhadamente não sendo, eu me provava que – que eu era.
Esse modo de não ser era tão mais agradável, tão mais limpo: pois, sem estar agora sendo irônica, sou uma mulher de espírito. E de corpo espirituoso.
Desde já calculo que aquilo que de mais duro minha vaidade terá de enfrentar será o julgamento de mim mesma: terei toda a aparência de quem falhou, e só eu saberei se foi a falha necessária.
Sempre gostei de arrumar. Suponho que esta seja a minha única vocação verdadeira. Ordenando as coisas, eu crio e entendo ao mesmo tempo.
Arrumar é achar a melhor forma.
Na semana anterior eu me divertira demais, frequentara demais, tivera por demais de tudo o que quisera, e desejava agora aquele dia exatamente como ele se prometia: pesado e bom e vazio. Dele eu faria o mais longo possível.
Como direi agora que já então eu começara a ver o que só seria evidente depois? sem saber, eu já estava na antessala do quarto. Já começava a ver e não sabia; vi desde que nasci e não sabia, não sabia.
Eu via o que aquilo dizia: aquilo não dizia nada. E recebia com atenção esse nada, recebia-o com o que havia dentro de meus olhos nas fotografias; só agora sei de como sempre estive recebendo o sinal mudo.
Eu estava vendo o que só teria sentido mais tarde – quero dizer, só mais tarde teria uma profunda falta de sentido. Só depois é que eu ia entender: o que parece falta de sentido – é o sentido. Todo momento de “falta de sentido” é exatamente a assustadora certeza de que ali há o sentido, e que não somente eu não alcanço, como não quero porque não tenho garantias.
Nos corpos não estavam desenhados o que a nudez revela, a nudez vinha apenas da ausência de tudo o que cobre: eram os contornos de uma nudez vazia.
arrepiei-me ao descobrir que até agora eu não havia percebido que aquela mulher era uma invisível.
Como explicar, senão que estava acontecendo o que não entendo. O que queria essa mulher que sou?
Nada, nada, só que meus nervos estavam agora acordados – meus nervos que haviam sido tranquilos ou apenas arrumados? meu silêncio fora silêncio ou uma voz alta que é muda?
Como te explicar: eis que de repente aquele mundo inteiro que eu era crispava-se de cansaço, eu não suportava mais carregar nos ombros – o quê? – e sucumbia a uma t...
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Já estava havendo então, e eu ainda não sabia, os primeiros sinais em mim do desabamento de cavernas calcáreas subterrâneas, que ruíam sob o peso de camadas arqueológicas estratificadas – e o peso do primeiro desabamento ab...
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O que me acontecia? Nunca saberei entender mas há de haver quem entenda. E é em mim que tenho de cri...
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De encontro ao rosto que eu pusera dentro da abertura, bem próximo de meus olhos, na meia escuridão, movera-se a barata grossa.
É que eu não esperara que, numa casa minuciosamente desinfetada contra o meu nojo por baratas, eu não esperava que o quarto tivesse escapado. Não, não era nada. Era uma barata que lentamente se movia em direção à fresta.
O que sempre me repugnara em baratas é que elas eram obsoletas e no entanto atuais. Saber que elas já estavam na Terra, e iguais a hoje, antes mesmo que tivessem aparecido os primeiros dinossauros, saber que o primeiro homem surgido já as havia encontrado proliferadas e se arrastando vivas, saber que elas haviam testemunhado a formação das grandes jazidas de petróleo e carvão no mundo, e lá estavam durante o grande avanço e depois durante o grande recuo das geleiras – a resistência pacífica. Eu sabia que baratas resistiam a mais de um mês sem alimento ou água. E que até de madeira faziam
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Há trezentos e cinquenta milhões de anos elas se repetiam sem se transformarem. Quando o mundo era quase nu elas já o cobriam vagarosas.
A hostilidade me tomara. É mais do que não gostar de baratas: eu não as quero. Além de que são a miniatura de um animal enorme. A hostilidade crescia.
Eles me impediam de sair e apenas com este modo simples: deixavam-me inteiramente livre, pois sabiam que eu já não poderia mais sair sem tropeçar e cair.
eu só teria ainda chance de sair dali se encarasse frontal e absurdamente que alguma coisa estava sendo irremediável. Eu sabia que tinha de admitir o perigo em que eu estava, mesmo consciente de que era loucura acreditar num perigo inteiramente inexistente. Mas eu tinha de acreditar em mim – a vida toda eu estivera como todo o mundo em perigo – mas agora, para poder sair, eu tinha a responsabilidade alucinada de ter de saber disso.
qual é o único sentimento de uma barata? a atenção de viver, inextricável de seu corpo.
Em mim, tudo o que eu superpusera ao inextricável de mim, provavelmente jamais chegara a abafar a atenção que, mais que atenção à vida, era o próprio processo de vida em mim.
É que inesperadamente eu sentira que tinha recursos, nunca antes havia usado meus recursos – e agora toda uma potência latente enfim me latejava, e uma grandeza me tomava: a da coragem, como se o medo mesmo fosse o que me tivesse enfim investido de minha coragem. Momentos antes eu superficialmente julgara que meus sentimentos eram apenas de indignação e de nojo, mas agora eu reconhecia – embora nunca tivesse conhecido antes – que o que sucedia é que enfim eu assumira um medo grande, muito maior do que eu.
pela primeira vez eu me sentia toda incumbida por um instinto. E estremeci de extremo gozo como se enfim eu estivesse atentando à grandeza de um instinto que era ruim, total e infinitamente doce – como se enfim eu experimentasse, e em mim mesma, uma grandeza maior do que eu. Eu me embriagava pela primeira vez de um ódio tão límpido como de uma fonte, eu me embriagava com o desejo, justificado ou não, de matar.
Até então eu nunca fora dona de meus poderes – poderes que eu não entendia nem queria entender, mas a vida em mim os havia retido para que um dia enfim desabrochasse essa matéria desconhecida e feliz e inconsciente que era finalmente: eu! eu, o que quer que seja.
Sem nenhum pudor, comovida com minha entrega ao que é o mal, sem nenhum pudor, comovida, grata, pela primeira vez eu estava sendo a desconhecida que eu era – só que desconhecer-me não me impediria mais, a verdade já me ultrapassara:
Que fizera eu de mim? Com o coração batendo, as têmporas pulsando, eu fizera de mim isto: eu matara. Eu matara! Mas por que aquele júbilo, e além dele a aceitação vital do júbilo? Há quanto tempo, então, estivera eu por matar?
Ter matado abria a secura das areias do quarto até a umidade, enfim, enfim, como se eu tivesse cavado e cavado com dedos duros e ávidos até encontrar em mim um fio bebível de vida que era o de uma morte. Abri devagar os olhos, em doçura agora, em gratidão, timidez, num pudor de glória.
Eu na verdade – eu nunca tinha mesmo visto uma barata. Só tivera repugnância pela sua antiga e sempre presente existência – mas nunca a defrontara, nem mesmo em pensamento.
Toma o que eu vi: pois o que eu via com um constrangimento tão penoso e tão espantado e tão inocente, o que eu via era a vida me olhando.
enquanto eu recuava para dentro de mim em náusea seca, eu caindo séculos e séculos dentro de uma lama – era lama, e nem sequer lama já seca mas lama ainda úmida e ainda viva, era uma lama onde se remexiam com lentidão insuportável as raízes de minha identidade.
Toma, toma tudo isso para ti, eu não quero ser uma pessoa viva! tenho nojo e maravilhamento por mim, lama grossa lentamente brotando.
É que eu olhara a barata viva e nela descobria a identidade de minh...
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É que como um pus subia à minha tona a minha mais verdadeira consistência – e eu sentia com susto e nojo que “eu ser” vinha de uma fonte muito anterior à humana e, com horror, muito maior que a humana. Abria-se em mim, com uma lentidão de portas de pedra, abria-se em mim a larga vida do silêncio, a mesma que estava no sol parado, a mesma que estava na barata imobilizada. E que seria a mesma em mim! se eu tivesse coragem de abandonar... de abandonar meus sentimentos? Se eu tivesse coragem de abandonar a esperança.
Pela primeira vez eu me espantava de sentir que havia fundado toda uma esperança em vir a ser aquilo que eu não era. A esperança – que outro nome dar? – que pela primeira vez eu agora iria abandonar, por coragem e por curiosidade mortal. A esperança, na minha vida anterior, teria se fundado numa verdade? Com espanto infantil, eu agora duvidava.
Para saber o que realmente eu tinha a esperar, teria eu antes que passar pela minha verdade? Até que ponto até agora eu havia inventado um destino, viv...
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eu não podia senão seguir aquilo que eu bem sabia que não era loucura, era, meu Deus, uma verdade pior, a horrível. Mas horrível por quê? É que ela contrariava sem palavras tudo o que antes eu costumava pensar também sem palavras.
Mas meu medo não era o de quem estivesse indo para a loucura, e sim para uma verdade – meu medo era o de ter uma verdade que eu viesse a não querer, uma verdade infamante que me fizesse rastejar e ser do nível da barata. Meus primeiros contatos com as verdades sempre me difamaram.
A vida, meu amor, é uma grande sedução onde tudo o que existe se seduz.
u chegara ao nada, e o nada era vivo e úmido.
Mas se eu gritasse uma só vez que fosse, talvez nunca mais pudesse parar. Se eu gritasse ninguém poderia fazer mais nada por mim; enquanto, se eu nunca revelar a minha carência, ninguém se assustará comigo e me ajudarão sem saber; mas só enquanto eu não assustar ninguém por ter saído dos regulamentos. Mas se souberem, assustam-se, nós que guardamos o grito em segredo inviolável. Se eu der o grito de alarme de estar viva, em mudez e dureza me arrastarão pois arrastam os que saem para fora do mundo possível, o ser excepcional é arrastado, o ser gritante.