A Paixão Segundo G.H.
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Kindle Notes & Highlights
Read between June 4 - June 16, 2025
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O leve prazer geral – que parece ter sido o tom em que vivo ou vivia – talvez viesse de que o mundo não era eu nem meu: eu podia usufruí-lo.
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Quanto a mim mesma, sem mentir nem ser verdadeira
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sempre conservei uma aspa à esquerda e outra à direita de mim. De algum modo “como se não fosse eu” era mais amplo do que se fosse – uma vida inexistente me possuía toda e me ocupava como uma invenção.
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Fotografia é o retrato de um côncavo, de uma falta, de uma ausência?
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Eu era a imagem do que eu não era, e essa imagem do não-ser me cumulava toda: um dos modos mais fortes é ser negativamente. Como eu não sabia o que era, então “não ser” era a minha maior aproximação da verdade: pelo menos eu tinha o lado avesso: eu pelo menos tinha o “não”, tinha o meu oposto.
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E vivendo o meu “mal”, eu vivia o lado avesso daquilo que nem sequer eu conseguiria querer ou tentar.
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Só agora sei que eu já tinha tudo, embora do modo contrário: eu me dedicava a cada detalhe do não. Detalhadamente não sendo, eu me provava que – que eu era.
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Esse modo de não ser era tão mais agradável, tão mais limpo: pois, sem estar agora sendo irônica, sou uma mulher de espírito. E de corpo espirituoso.
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Desde já calculo que aquilo que de mais duro minha vaidade terá de enfrentar será o julgamento de mim mesma: terei toda a aparência de quem falhou, e só eu saberei se foi a falha necessária.
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Sempre gostei de arrumar. Suponho que esta seja a minha única vocação verdadeira. Ordenando as coisas, eu crio e entendo ao mesmo tempo.
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Arrumar é achar a melhor forma.
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Na semana anterior eu me divertira demais, frequentara demais, tivera por demais de tudo o que quisera, e desejava agora aquele dia exatamente como ele se prometia: pesado e bom e vazio. Dele eu faria o mais longo possível.
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Como direi agora que já então eu começara a ver o que só seria evidente depois? sem saber, eu já estava na antessala do quarto. Já começava a ver e não sabia; vi desde que nasci e não sabia, não sabia.
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Eu via o que aquilo dizia: aquilo não dizia nada. E recebia com atenção esse nada, recebia-o com o que havia dentro de meus olhos nas fotografias; só agora sei de como sempre estive recebendo o sinal mudo.
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Eu estava vendo o que só teria sentido mais tarde – quero dizer, só mais tarde teria uma profunda falta de sentido. Só depois é que eu ia entender: o que parece falta de sentido – é o sentido. Todo momento de “falta de sentido” é exatamente a assustadora certeza de que ali há o sentido, e que não somente eu não alcanço, como não quero porque não tenho garantias.
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Nos corpos não estavam desenhados o que a nudez revela, a nudez vinha apenas da ausência de tudo o que cobre: eram os contornos de uma nudez vazia.
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arrepiei-me ao descobrir que até agora eu não havia percebido que aquela mulher era uma invisível.
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Como explicar, senão que estava acontecendo o que não entendo. O que queria essa mulher que sou?
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Nada, nada, só que meus nervos estavam agora acordados – meus nervos que haviam sido tranquilos ou apenas arrumados? meu silêncio fora silêncio ou uma voz alta que é muda?
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Como te explicar: eis que de repente aquele mundo inteiro que eu era crispava-se de cansaço, eu não suportava mais carregar nos ombros – o quê? – e sucumbia a uma t...
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Já estava havendo então, e eu ainda não sabia, os primeiros sinais em mim do desabamento de cavernas calcáreas subterrâneas, que ruíam sob o peso de camadas arqueológicas estratificadas – e o peso do primeiro desabamento ab...
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O que me acontecia? Nunca saberei entender mas há de haver quem entenda. E é em mim que tenho de cri...
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De encontro ao rosto que eu pusera dentro da abertura, bem próximo de meus olhos, na meia escuridão, movera-se a barata grossa.
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É que eu não esperara que, numa casa minuciosamente desinfetada contra o meu nojo por baratas, eu não esperava que o quarto tivesse escapado. Não, não era nada. Era uma barata que lentamente se movia em direção à fresta.
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O que sempre me repugnara em baratas é que elas eram obsoletas e no entanto atuais. Saber que elas já estavam na Terra, e iguais a hoje, antes mesmo que tivessem aparecido os primeiros dinossauros, saber que o primeiro homem surgido já as havia encontrado proliferadas e se arrastando vivas, saber que elas haviam testemunhado a formação das grandes jazidas de petróleo e carvão no mundo, e lá estavam durante o grande avanço e depois durante o grande recuo das geleiras – a resistência pacífica. Eu sabia que baratas resistiam a mais de um mês sem alimento ou água. E que até de madeira faziam ...more
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Há trezentos e cinquenta milhões de anos elas se repetiam sem se transformarem. Quando o mundo era quase nu elas já o cobriam vagarosas.
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A hostilidade me tomara. É mais do que não gostar de baratas: eu não as quero. Além de que são a miniatura de um animal enorme. A hostilidade crescia.
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Eles me impediam de sair e apenas com este modo simples: deixavam-me inteiramente livre, pois sabiam que eu já não poderia mais sair sem tropeçar e cair.
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eu só teria ainda chance de sair dali se encarasse frontal e absurdamente que alguma coisa estava sendo irremediável. Eu sabia que tinha de admitir o perigo em que eu estava, mesmo consciente de que era loucura acreditar num perigo inteiramente inexistente. Mas eu tinha de acreditar em mim – a vida toda eu estivera como todo o mundo em perigo – mas agora, para poder sair, eu tinha a responsabilidade alucinada de ter de saber disso.
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qual é o único sentimento de uma barata? a atenção de viver, inextricável de seu corpo.
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Em mim, tudo o que eu superpusera ao inextricável de mim, provavelmente jamais chegara a abafar a atenção que, mais que atenção à vida, era o próprio processo de vida em mim.
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É que inesperadamente eu sentira que tinha recursos, nunca antes havia usado meus recursos – e agora toda uma potência latente enfim me latejava, e uma grandeza me tomava: a da coragem, como se o medo mesmo fosse o que me tivesse enfim investido de minha coragem. Momentos antes eu superficialmente julgara que meus sentimentos eram apenas de indignação e de nojo, mas agora eu reconhecia – embora nunca tivesse conhecido antes – que o que sucedia é que enfim eu assumira um medo grande, muito maior do que eu.
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pela primeira vez eu me sentia toda incumbida por um instinto. E estremeci de extremo gozo como se enfim eu estivesse atentando à grandeza de um instinto que era ruim, total e infinitamente doce – como se enfim eu experimentasse, e em mim mesma, uma grandeza maior do que eu. Eu me embriagava pela primeira vez de um ódio tão límpido como de uma fonte, eu me embriagava com o desejo, justificado ou não, de matar.
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Até então eu nunca fora dona de meus poderes – poderes que eu não entendia nem queria entender, mas a vida em mim os havia retido para que um dia enfim desabrochasse essa matéria desconhecida e feliz e inconsciente que era finalmente: eu! eu, o que quer que seja.
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Sem nenhum pudor, comovida com minha entrega ao que é o mal, sem nenhum pudor, comovida, grata, pela primeira vez eu estava sendo a desconhecida que eu era – só que desconhecer-me não me impediria mais, a verdade já me ultrapassara:
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Que fizera eu de mim? Com o coração batendo, as têmporas pulsando, eu fizera de mim isto: eu matara. Eu matara! Mas por que aquele júbilo, e além dele a aceitação vital do júbilo? Há quanto tempo, então, estivera eu por matar?
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Ter matado abria a secura das areias do quarto até a umidade, enfim, enfim, como se eu tivesse cavado e cavado com dedos duros e ávidos até encontrar em mim um fio bebível de vida que era o de uma morte. Abri devagar os olhos, em doçura agora, em gratidão, timidez, num pudor de glória.
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Eu na verdade – eu nunca tinha mesmo visto uma barata. Só tivera repugnância pela sua antiga e sempre presente existência – mas nunca a defrontara, nem mesmo em pensamento.
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Toma o que eu vi: pois o que eu via com um constrangimento tão penoso e tão espantado e tão inocente, o que eu via era a vida me olhando.
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enquanto eu recuava para dentro de mim em náusea seca, eu caindo séculos e séculos dentro de uma lama – era lama, e nem sequer lama já seca mas lama ainda úmida e ainda viva, era uma lama onde se remexiam com lentidão insuportável as raízes de minha identidade.
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Toma, toma tudo isso para ti, eu não quero ser uma pessoa viva! tenho nojo e maravilhamento por mim, lama grossa lentamente brotando.
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É que eu olhara a barata viva e nela descobria a identidade de minh...
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É que como um pus subia à minha tona a minha mais verdadeira consistência – e eu sentia com susto e nojo que “eu ser” vinha de uma fonte muito anterior à humana e, com horror, muito maior que a humana. Abria-se em mim, com uma lentidão de portas de pedra, abria-se em mim a larga vida do silêncio, a mesma que estava no sol parado, a mesma que estava na barata imobilizada. E que seria a mesma em mim! se eu tivesse coragem de abandonar... de abandonar meus sentimentos? Se eu tivesse coragem de abandonar a esperança.
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Pela primeira vez eu me espantava de sentir que havia fundado toda uma esperança em vir a ser aquilo que eu não era. A esperança – que outro nome dar? – que pela primeira vez eu agora iria abandonar, por coragem e por curiosidade mortal. A esperança, na minha vida anterior, teria se fundado numa verdade? Com espanto infantil, eu agora duvidava.
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Para saber o que realmente eu tinha a esperar, teria eu antes que passar pela minha verdade? Até que ponto até agora eu havia inventado um destino, viv...
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eu não podia senão seguir aquilo que eu bem sabia que não era loucura, era, meu Deus, uma verdade pior, a horrível. Mas horrível por quê? É que ela contrariava sem palavras tudo o que antes eu costumava pensar também sem palavras.
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Mas meu medo não era o de quem estivesse indo para a loucura, e sim para uma verdade – meu medo era o de ter uma verdade que eu viesse a não querer, uma verdade infamante que me fizesse rastejar e ser do nível da barata. Meus primeiros contatos com as verdades sempre me difamaram.
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A vida, meu amor, é uma grande sedução onde tudo o que existe se seduz.
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u chegara ao nada, e o nada era vivo e úmido.
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Mas se eu gritasse uma só vez que fosse, talvez nunca mais pudesse parar. Se eu gritasse ninguém poderia fazer mais nada por mim; enquanto, se eu nunca revelar a minha carência, ninguém se assustará comigo e me ajudarão sem saber; mas só enquanto eu não assustar ninguém por ter saído dos regulamentos. Mas se souberem, assustam-se, nós que guardamos o grito em segredo inviolável. Se eu der o grito de alarme de estar viva, em mudez e dureza me arrastarão pois arrastam os que saem para fora do mundo possível, o ser excepcional é arrastado, o ser gritante.