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December 31, 2023 - December 2, 2024
O viajante avança, como na vida, numa mistura de planejamento e casualidade, metas prefixadas e súbitas digressões que levam a outras paragens; erra a estrada, volta atrás, salta rios e riachos; não tem certeza sobre o que visitar e o que deixar de lado, porque viajar também é, assim como a escrita e a vida, sobretudo abdicar.
Again, another beautiful phrase about traveling and allowing the fates of the road to help dictate the journey.
Porém, o que vê é a pedregosa margem espanhola do Douro, de tão dura substância que o mato mal lhe pôde meter o dente, e porque uma sorte nunca vem só, está o Sol de maneira que a escarpada parede é uma enorme pintura abstrata em diversos tons de amarelo, e nem apetece daqui sair enquanto houver luz.
Sem dúvida pode abanar a cabeça e murmurar: “Como o mundo é pequeno...”.
Viajar deveria ser outro concerto, estar mais e andar menos, talvez até se devesse instituir a profissão de viajante, só para gente de muita vocação, muito se engana quem julgar que seria trabalho de pequena responsabilidade, cada quilómetro não vale menos que um ano de vida.
E como o viajante tem excelentes olhos para contrastes e contradições, vai comparando, à chuva, o quadro de Roeland Jacobsz que representa Orfeu amansando com a música da sua harpa as brutas feras, e um outro, de autor anónimo quinhentista, que mostra Santo Inácio a ser devorado pelos leões. Podia a música o que a fé não logrou. Não há dúvida, pensa, houve uma idade de ouro.
Já não é só a complicada história do que falta a uns e sobeja a outros, é, para este caso de agora, o grave delito de não se trazer a esta estrada todos os portugueses de aquém e de além, para que nos seus olhos ficasse a formidável impressão destas encostas cultivadas em socalcos, cobertas de vinhas de cima a baixo, a grafia dos muros de suporte que vão acompanhando o fluir do monte, e as cores, como há de o viajante, em prosa de correr, dizer o que são estas cores, é o jardim do Solar de Mateus alargado até ao horizonte distante, é a floresta junto do rio Tuela, é um quadro que ninguém
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E o viajante tem de disfarçar e enxugar os olhos sentimentais, assim lhes chamaria quem cá não veio, mas entenderá melhor se se lembrar de que Marão é Casa Grande, e entrar aqui é o mesmo que estar no mais alto monte da serra, recebendo todo o vento na cara e olhando de cima os vales profundos e negros.
Entre Marco de Canaveses e Baião, tem o viajante ocasião e tempo para dar a mão à palmatória. Disse ele, quando do Marão falou, que toda a serra era de arredondados montes, com amenas florestas, um vergel. Não retira nada do que disse, que assim é o Marão entre Vila Real e Amarante, mas aqui, Marão é isto também, e contudo não pode haver orografia mais diferente, áspera e dura, com as agudas pedras que mais a norte faltam. Tem esta casa grande, afinal, muitas moradas, e a que o viajante agora vai percorrendo é decerto a casa dos ventos e das cabras monteses, desabitada casa se diga, porque
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Os dólmenes não estão à vista. Agora é preciso avançar pelo mato dentro, há uns delgados carris que se interrompem, maneiras de negaça que o deixam perplexo. É um quebra-cabeça malicioso, traçado em monte deserto para obscuros fins. O viajante avança pelo mato, tem de encontrar a mina de ouro, a fonte milagrosa, e quando já lança pragas e imprecações (bem está que o faça neste cenário inquietante) vê na sua frente a mamoa, o primeiro dólmen meio soterrado, com o chapéu redondo assente sobre esteios de que só se veem as pontas, é como uma fortificação abandonada. O viajante dá a volta, aí está
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Arões. Lástima tem o viajante de que uma linha de palavras não seja uma corrente de imagens, de luzes, de sons, de que entre elas não circule o vento, que sobre elas não chova, e de que, por exemplo, seja impossível esperar que nasça uma flor dentro do o da palavra flor. Vem isto tão a propósito de Arões como de qualquer outro lugar, mas como a paisagem é esta beleza, como a igreja matriz é este românico, tem o viajante este desabafo. Mesmo agora sentiu o cheiro das folhas molhadas e não sabe onde está a palavra que devia exprimir esse cheiro, essa folha e essa água. Uma só palavra para dizer
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Está assim desamparado, entre as falsas muralhas, quase a suspirar de frustração, quando vencidamente olha para o chão e nele subitamente se reconforta, tão perto se encontrava a explicação de tudo, e ele não a via. Está de pé sobre as grandes pedras brutas que Afonso Henriques pisou e a peonagem popular, quem sabe se mesmo aqui foi deitado alguém que morria, um Martim qualquer, um Álvaro, mas a pedra, o chão, o céu que está por cima, e este vento que de rajada passa, sopro de todas as palavras portuguesas ditas, de todos os suspiros primeiros e finais, murmúrio do profundo rio que é o povo. O
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terá sido sua a culpa porque escolheu mal a hora, mas na praia as moscas eram milhões, os restos de peixe, as tripas, os filamentos gelatinosos, e excrementos diversos. São pitorescas as “cubatas” de algas, as pedras que seguram a cobertura de palha como um colar de grossas pérolas irregulares, porém, estando vistas, não há mais que ver.
E como alguma coisa tem visto do mundo e da vida, igualmente sabe que a esta hora da manhã em que vai a Aguçadoura ver os “campos-masseiras”, o jardim da Bela Adormecida tem outra luz e outro cheiro, anda alguém a varrer as folhas para delas fazer estrume, e, lástima suprema, a enigmática donzela do mosteiro está agora dando ordens às criadas e ralhando com a desastrada que partiu o bule do chá.
pórtico, de cinco arquivoltas, esculpidas as duas interiores, mostra no tímpano um Cristo em mandorla ou nimbo oval, com duas personagens santas ladeando, postas, uma e outra, sobre figuras prostradas, o que ao viajante parece pouco cristão, salvo se tais figuras são representações demoníacas, e mesmo assim.
Dirá que o lançamento destes arcos, diferentes uns dos outros, quebrados uns, de volta inteira outros, e um derradeiro ogival, prova como a diversidade pode resultar em homogeneidade. Dirá, enfim, que a igreja de Rates justifica a celebração de novas peregrinações para virem aprender os que têm ofício de buscar perfeição. Talvez aqui se consolidem fés.
É desafogado o caminho para Fão e Ofir, e certamente nestes lugares haveria motivos para demora, porém o viajante tem andado por medievais terras, pesa-lhe este bulício turístico, o cartaz dos imobiliários, o anúncio do snack-bar (abominação que veio riscar dos costumes portugueses o saboroso vinhos e petiscos, que honradamente diz logo quanto vale), e, quando a Esposende passa, vê-se perdido nas largas avenidas costeiras, reflete se lhe vale a pena, e torna a ter saudades, desta vez de montanhas e águas maneirinhas.
O tempo não para. O viajante torna pelo mesmo caminho, vai procurando fixar tudo na memória, as grandes lajes do chão, o rumor da água, as vides suspensas das árvores, o verde-azebre nas cruzes, e em seus pensamentos diz que a felicidade existe, já não é a primeira vez nesta viagem, que lhe acontece fazer tal descoberta.
Monção é aquela terra onde se deu o caso infalivelmente contado às crianças do tempo em que o viajante também o era, cujo foi o de Deuladeu Martins, mulher engenhosa que, estando a praça sitiada e carecida de alimentos, mandou amassar e cozer as últimas poeiras de farinha, lançando depois das muralhas abaixo, em grande alarde de prosperidade, as cheirosas bolachas, assim derrotando, por convencimento da inutilidade do cerco, as tropas de Henrique ii de Castela que queriam tomar o castelo.
Mas este rio Vez, por alturas de Sistelo, que é onde o viajante o alcança, e depois o rio Cabreiro, que a ele aflui, são maravilhas verdadeiras que juntam a doçura e a aspereza, a harmonia dos socalcos verdes e o pedregar das águas, sob a fortuna duma luz que começa a baixar e recorta, linha por linha, cor por cor, a mais bela paisagem que cabe nas imaginações. O viajante põe ao lado dela o que a memória lhe guarda do rio Tuela, e nada mais dirá.
É a Casa do Raio, em palácio, uma das mais preciosas joias setecentistas que Portugal guarda. Causa algum espanto como um estilo que nas composições interiores dificilmente conseguiu manter o equilíbrio entre a forma e a finalidade, foi capaz, nos exteriores, de comprazer-se em jogos de curva e contracurva, integrando-os nas exigências e possibilidades dos materiais. E o azulejo que, pelo seu geometrismo rígido, não parecia poder ser submetido aos recortes que as pedras lhe impõem, surge aqui como um fator complementar de extrema precisão.
Se o viajante não se engana, Braga começou por querer não ficar atrás de Santiago de Compostela.
Assim foi por muitos anos, até que veio um dia, nefasto, em que ao cavalo que havia de transportar o santo foram postas ferraduras novas, por estarem gastas as velhas. Sai o cortejo, toma S. Jorge o seu lugar na procissão, e às tantas tropeça a besta numa calha dos carros elétricos, foge-lhe o chão debaixo de mãos e patas, e aí vai S. Jorge desabar contra a calçada, em terrível estrondo, pânico e consternação.
Mas as papas de sarrabulho, oh senhores, as papas de sarrabulho, que há de o viajante dizer das papas de sarrabulho senão que nunca outro melhor manjar comeu nem espera vir a comer, porque não é possível repetir a inventiva humana esta maravilhosa e rústica comida, esta macieza, esta substância, estes numerosos sabores combinados, todos vindos do porco e sublimados nesta malga quente que alimenta o corpo e consola a alma. Por todo o mais mundo que o viajante andar, cantará louvores das papas de sarrabulho que comeu no Arantes.
A estrada segue ao longo do Cávado, pela margem norte, e atravessa o que à vista só poderiam ser hortas, pomares, vergéis, e talvez o não sejam, mas este Minho é de um tal viço, agora em Novembro como o será em Maio, que o viajante se aturde e perde em meio de verdes que resistem às outoniças cores e acabam por vencer.
Este canto da terra, o grande lago sereno, liso como um espelho polido, os montes altos que contêm a enorme massa de água dão ao viajante uma impressão de paz como até agora ainda não experimentara. E quando, depois de subir a estrada do outro lado e terminar a jornada, torna a olhar o mundo, acha que tem direito a isto, apenas porque é um ser humano, nada mais.
Quando o viajante estiver longe daqui, lá na grande cidade onde vive, e for amargo o seu dia, lembrar-se-á deste lago, destes braços de água que invadiram os vales pedregosos e às vezes as terras férteis e as casas de homens, verá com os olhos da lembrança as encostas íngremes, o reflexo de tudo isto na superfície incomparável, e então dentro de si se fará o grande silêncio dos ares, das nuvens altas, o necessário silêncio para poder murmurar, como se fosse essa a sua única resposta: “Eu sou”.
Afinal, o Porto, para verdadeiramente honrar o nome que tem, é, primeiro que tudo, este largo regaço aberto para o rio, mas que só do rio se vê, ou então, por estreitas bocas fechadas por muretes, pode o viajante debruçar-se para o ar livre e ter a ilusão de que todo o Porto é Ribeira.
Mas Nicolau Nasoni riscou no papel viagens não menos aventurosas: o rosto em que uma cidade se reconhece a si própria.