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December 31, 2023 - December 2, 2024
Dizem entendidos que o nome de Alcobaça vem de Helcobatie, nome de uma povoação romana que próximo existiu, mas essa explicação não resolve a nossa angustiosa dúvida, pois apenas empurra o problema para outros tempos: chamar-se-iam então os rios Helco e Batie?, deram eles o nome a Helcobatie?, ou Helcobatie generosamente se dividiu em dois para não ficarem os seus rios anónimos?
É bem possível que a vila tenha um modo de viver um pouco artificial.
igreja matriz. Por fora ninguém daria nada por ela: são quatro paredes, uma porta, uma cruz em cima. Um espírito jansenista diria que para adorar a Deus não se requer mais. Ainda bem que assim não entendeu quem desta obra decidiu. Lá dentro, está uma das mais magníficas decorações de azulejos policromos que o viajante teve diante dos seus privilegiados olhos.
Bem fez em ter usado linguagem marinheira. Aqui mesmo à entrada está, à mão esquerda, Vasco da Gama, que descobriu o caminho para chegar à Índia, e, à direita, a jacente estátua de Luís de Camões, que descobriu o caminho para chegar a Portugal.
O viajante não anseia por casas medievais ou ressurgências manuelinas. Verifica que essas e outras ressuscitações só foram e são possíveis graças ao traumatismo violento provocado pelo terramoto. Não caíram apenas casas e igrejas. Quebrou-se uma ligação cultural entre a cidade e o povo dela.
Visto por fora é um enorme paredão com uma porta manuelina ao cimo de meia dúzia de degraus. Convém saber que esta porta é falsa. Trata-se de um curioso caso em que a arte copiou a arte para recuperar a realidade, sem querer saber se fora a realidade que a arte copiada copiara.
Sabendo, per o dizerem autoridades, que Arraiolos foi fundada por Galo-Celtas, trezentos anos antes de Cristo, ou, pouco mais tarde, por Sabinos, Tusculanos e Albanos, fica por sua vez autorizado a supor que o dizedor de décimas da Gafanhoeira é descendente deste pintor de azulejos, ambos artistas, ambos Barco de apelido.
Ora aqui está um nome modesto: havendo uma ribeira de Sor (e Sor, que será?, senhor?), era precisa uma ponte, e fez-se. Depois nasceu a povoação, que nome vai ter, provavelmente nem foi preciso discutir, estava ali a ponte, estava ali a ribeira com o seu nome de uma sílaba só, é Ponte de Sor e não se fala mais nisso. Não saiu mal, mas o viajante, vendo que a montante vem desaguar a ribeira de Longomel, fica a pensar que doce nome teria Ponte de Sor se se chamasse Longomel.
Agora deverá lembrar-se outra vez para certificar-se da exatidão da frase que diz ser Castelo de Vide a “Sintra do Alentejo”. É sempre sinal de inferioridade, que ao disfarçar-se se reconhece, colar estes dísticos em quem por méritos próprios, pequenos ou grandes, os dispensaria.
Há também uns pacientes trabalhos de marfim, em alto-relevo, que deixam o viajante atónito pela minúcia, pela autêntica acrobacia de olhos e mãos que há de ter requerido a obra.
Atravessa a aldeia de Nossa Senhora dos Degolados, e este nome, visto de relance, põe o viajante a pensar na quantidade de descabeçados que povoam a história do cristianismo para se ter achado conveniente arranjar uma Senhora especial que os proteja. A dúvida do viajante é se a proteção há de ser invocada antes ou depois do pescoço cortado.
Mais de cem anos levou a construir (cento e vinte e quatro, para ser exato) e sempre o povo de Elvas, geração após geração, pagou o seu real de água. Quando em 1622 a Fonte da Vila começou enfim a correr, pode-se dizer que os habitantes de Elvas tinham suado bem aquela clara água. Como em Lisboa as Águas Livres. Como em toda a parte a bica ou o fontanário, o tanque da rega ou a pia dos animais.
Oh, que maravilha, torna a dizer. A Estremoz irás, seus bonecos verás, tua alma salvarás. Aí fica um ditado inventado pelo viajante para passar à história.
Depois de contemplar a infinda paisagem que de uma e outra parte se avista, desce às terras baixas, modo de dizer que foi ao Rossio, onde, a um lado, está a Igreja de São Francisco. Foi neste convento que morreu D. Pedro i, e aos frades daqui deixou o coração. Se é verdade que tomaram os frades a herança, em Alcobaça, na hora de ressurgir, não terá Pedro coração para dar a Inês.
Não pode perdoar aos frades franciscanos a imagem que se lhe está representando do agenciamento da capela, com ossos espalhados a esmo, trazidos das valas comuns (que os da gente nobre repousavam debaixo da boa pedra lavrada), enquanto os ditos frades, de mangas arregaçadas, procuram uma tíbia que caiba neste buraco, uma costela que arme as arcadas, um crânio que arredonde o efeito. Não, e não. Vós, ossos, que lá estais, por que não vos rebelais?
O viajante dormirá neste sítio de São Gens, perto de Serpa. Há, aqui para trás, uma Ermida de Nossa Senhora de Guadalupe. O que tem para ver, vê-se de fora. Não é como a paisagem que diante dos olhos do viajante se alonga. Essa quer que a vejam por dentro. É uma distância de árvores e colinas quase rasas, simples cômoros que se confundem com a planície. Já se pôs o Sol, mas a planície não se apaga. Cobre o campo uma cinza dourada, depois empalidece o ouro, a noite vem devagarinho do outro lado, acendendo estrelas. Chegará mais tarde a Lua, e os mochos chamarão uns pelos outros. O viajante,
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A Casa do Capítulo, de bela proporção, com o seu teto delicadamente pintado, reúne uma coleção preciosa de azulejos, a que só podem comparar-se os de Sintra: azulejos de corda seca, sevilhanos, tipo de brocado gótico; azulejos de aresta, sevilhanos; outros valencianos, de Manises, lisos, azuis e verdes com reflexos de cobre.
Este rio nasceu belo e belo acabará, é sina que há de cumprir.
Mas o melhor são duas esculturas, uma mostrando Cristo atado à coluna, outra um Ecce Homo, de robusta anatomia ambas, académicas se não fosse justamente essa robustez, com todos os músculos salientes, uns que o esforço pede a todos nós, outros que só um atleta seria capaz de exibir. O viajante surpreende-se com estas perfeições encerradas numa capela minúscula, pergunta donde vieram as estátuas, parece ele que adivinha, logo ali lhe contam a maravilhosa história de um preso que, há muitos anos, na cadeia de Mértola, esculpiu, em suas muitas horas vagas, as duas imagens do Senhor.
Frustrado, o viajante decide que se trata duma lenda (só faltou que tivessem libertado o homem em paga da sua arte), e não acredita. Talvez faça mal. Pelo menos, a história é fascinante: o preso na sua enxovia, truca, truca, a esculpir, não um, mas dois Cristos, não uma, mas duas chaves, e o mais certo é nenhuma lhe ter aberto a porta da prisão.
E porque está o viajante falando de guerras, não fica mal lembrar que a esta outra cidade de Lagos está ligado o antigo nome de Sertório, aquele romano que foi comandante dos lusitanos depois da morte de Viriato. Quem diz Lusitanos e pensa montes Hermínios, ou serra da Estrela, como hoje lhe chamamos, custar-lhe-á a crer que tão ao sul tivessem chegado os combates. Pois é verdade. Sertório, arredado por sua vontade ou alheia força, das lutas entre Mário e Sila (ou Sula), veio a ser convidado pelos Lusitanos, uns oitenta anos antes da nossa era, para chefiá-los na guerra contra os Romanos. O
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A hugely informative paragraph on ancient Lusitanian history, just sat right in here in his travelogue!
A velha Lacóbriga, romana antepassada de Lagos, ficava ali no monte Molião. Ora, um Metelo, partidário de Sula, que tomara o governo da Hispânia Ulterior (isto é, da nossa banda, para quem do lado de lá estava), decidiu cercar Lacóbriga e rendê-la pela sede, pois nela havia um único poço, provavelmente não farto. Sertório acudiu, mandando por homens seus dois mil odres de água, e como Metelo despachara para reforço do cerco um Aquino com seis mil homens, saltou-lhes Sertório ao caminho e desbaratou-os.
Não é verdade. A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam.