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December 31, 2023 - December 2, 2024
A ria, hoje, tem um nome que bem lhe quadra: chama-se solidão, fala com o viajante, ininterruptamente fala, conversas de água e limosas algas, peixes que pairam entre duas águas, sob a reverberação da superfície. O viajante sabe que está a querer exprimir o inexprimível, que nenhumas palavras serão capazes de dizer o que uma gota de água é, quanto menos este corpo vivo que liga a terra e o mar como um enorme coração. O viajante levantou os olhos e viu uma gaivota desgarrada. Ela conhece a ria.
Ora, tal religião apregoa mais preocupações de vida eterna do que alegrias desta transitória vida, que alegre devia ser, e plena.
Quer a religião católica que tudo sejam macerações, cilícios, jejuns, e, se isto não quer tanto hoje, continua a resistir mal às tentações. Alegrias, não as há, e os júbilos hão de ser celestes, ou contemplativos, ou místicos e extáticos.
So good that Serramago finally comes out in this book and directly - and rightly - criticizes the Catholic Church. ❤️
O viajante procura a arte dos homens, essa vontade de vencer a morte que se exprime em pedras levantadas ou suspensas, em adivinhações do traço e da cor, e encontra-as nas igrejas, no restante dos conventos, nos museus que daqueles e destes afinal se alimentaram. Procura a arte onde ela está, entra nas igrejas, nas capelas, aproxima-se dos túmulos, e em todos os lugares faz as mesmas perguntas: que é isto?, quem fez?, que quis dizer?, que medo foi o seu, ou que coragem?, que sonho para realizar amanhã?
E como o depósito da gasolina quase secara, a estas horas ainda o viajante estaria na Figueira da Foz se o empregado da bomba, à força de braço, não tivesse praticado a obra de misericórdia que é dar de beber a quem tem sede.
E por falar de Itália, dá-se o viajante à ironia de pensar que a esta igreja puxariam os Italianos o lustro e poriam a render, e depois sempre se arranjariam alguns portugueses para irem visitar longe e virem de lá a lastimar-se por tais preciosidades estarem em país estrangeiro.
Quite the statement on how so many historically significant sites in Portugal were/have been/are allowed to fall into ruin, when in other countries they become tourist attractions.
A esta ruína portuguesa ninguém acode: nem ruína na sua terra se pode ser. É certo que às vezes nos acodem com as compensações, mas quando já não tem remédio. Diga-o, por exemplo, aquela D. Margarida de Melo e Pina, que lá na igreja também está, morta nos cárceres da Inquisição, ao cabo de dezassete anos de contínua prisão. Estava inocente.
Repreende-se por estar brincando com coisas sérias, e encara primeiro Afonso, depois Sancho, um que conquistou, outro que povoou, vê-os deitados sob estes magníficos arcos góticos e decide em seu coração de viajante que neste lugar se celebram quantos desde aquele século xii lutaram e trabalharam para que Portugal se fizesse e perdurasse.
Enfim, aqui está a ponte, agora é subir até Penacova, nome que consegue a suprema habilidade de conciliar uma contradição, reunindo pacificamente uma ideia de altura (pena) e uma ideia de fundura (cova). O que logo se entende quando se verifica que a construíram a meia encosta: quem vem de cima, vê-a em baixo; quem vem de baixo, vê-a em cima. Nada mais fácil.
Apenas tem o direito de não gostar do Palace Hotel, mesmo reconhecendo como bem cinzelada está esta pedra, como são bem lançadas as salas e cómodas as cadeiras, como tudo está disposto para o conforto. O Palace Hotel será, pensa o viajante, o sonho realizado de um milionário americano que, não podendo transportar para Boston, pedra a pedra, este edifício, aqui vem exercitar a sua cobiça.
An early anti-tourist sentiment. What if Saramago lived to see tourism in Portugal in the summer of 2024?!? 😳
É o reino do vegetal. Aqui é serva a água, servos os animais que se escondem na espessura ou por ela passeiam. O viajante passeia, entregou-se sem condições, e não sabe exprimir mais do que um silencioso pasmo diante da explosão de troncos, folhas várias, hastes, musgos esponjosos que se agarram às pedras ou sobem pelos troncos acima, e quando os segue com os olhos dá com o emaranhado das ramagens altas, tão densas que é difícil saber onde acaba esta e começa aquela.
Não se descreve a mata do Buçaco. O melhor ainda é perder-nos nela, como fez o viajante, neste tempo de Janeiro incomparável, quando ressumbra a humidade do ar e da terra, e o único rumor é o dos passos nas folhas mortas. Este cedro é velhíssimo, foi plantado em 1644, hoje ancião que precisa do amparo de espias de aço para não tombar desamparadamente na encosta, e diante dele o viajante faz ato de contrição e declara em voz alta: “Árvore fosse eu, e também ninguém me tiraria”.
Vai andando pela planície, o Sol está-lhe à altura dos olhos, alguma coisa o viajante cresceu depois de ir ao Castelo de Marialva. Ou é o Castelo de Marialva que vai com o viajante e o torna maior. Tudo pode acontecer em viagens como esta.
Embora com um protesto e um voto: que esta Chouriçada passe a ser conhecida e declarada Ao Modo da Guarda, como em português de gente portuguesa se deve dizer. Aceita o viajante que se transforme Malva em Marialva, não pode aceitar que se diga Moda em vez de Modo. As modas são de vestir, os modos são de entender. Entendamo-nos, pois.
Há de pensar isto, e pior, quando entrar no burgo e o percorrer, as melancólicas ruas, de casas arruinadas ou fechadas por abandono de quem cá viveu: é certo que o destino das vilas altas é esmorecerem com o tempo, verem os filhos descer ao vale onde a vida é mais fácil e o trabalho melhor se alcança, mas o que não se pode entender é que se assista de coração indiferente à morte do que apenas esmorecido está, em vez de se lhe encontrarem novos estímulos e energias novas. Um dia equilibraremos a vida, mas já não iremos a tempo de recuperar o que entretanto se perdeu.
This is such a fantastic passage from Saramago! Beautiful and sad, and overflowing with wisdom and saudade. 😪
O viajante não viu mais do que meia dúzia de pessoas, todas de idade avançada, mulheres costurando à porta, homens olhando em frente, como quem se descobre perdido. Aquele que vai custodiar arrasta dolorosamente uma perna e repete um recado que não foi capaz de entender, é o seu último instrumento de trabalho e não sabe como lhe há de pegar. O viajante anda a viajar, não procura pensamentos negros, mas eles vêm, pairam sobre Castelo Rodrigo, desolação, tristeza infinita.
Parece que uma praga caiu sobre a vila. Ali está o brasão, com as armas reais invertidas, por castigo, diz-se, de ter o povo tomado partido por D. Beatriz de Castela contra D. João i. E nem terem deitado fogo os descendentes ao Palácio de Cristóvão de Moura, em 1640, como prova de patriotismo, pôde emendar o erro antigo: invertidas estavam as armas reais, invertidas ficaram. Castelo Rodrigo tem de fazer o inventário das suas armas próprias e lutar pela vida: é o conselho deixado pelo viajante, que nada mais pode.
E assim será em todo este percurso de pé-coxinho que o levará a Ucanha, a Salzedas, a Tarouca e a São João de Tarouca, sem dúvida alguma uma das belas regiões que o viajante tem encontrado, por todo um equilíbrio raro, de espaço e cultivo, de habitação de homens e morada natural.
Porém, antes de ir ver as artes, há de o viajante explicar o que lhe aconteceu quando, passada a última curva da estrada, deu de frente com um tempo anterior da sua vida. São falsas memórias, diz-se, já aqui esteve e não se lembra, sugere-se. Primeiro, o viajante não sabe o que são falsas memórias. Tem-se memória de alguma coisa vista e fixada pelo cérebro. Pode ficar fora da consciência, pode resistir a esforços de recordação, mas no dia em que a imagem voltar a poder ser “lida”, vê-la-emos, com precisão maior ou menor, e o que estivermos vendo é o que vimos já. Toda a memória é verdadeira,
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Para leste, é a vertente do monte, e, até onde os olhos chegam, o vale do rio Pônsul e as encostas de Monfortinho. O viajante está feliz. Nunca na vida teve tão pouca pressa. Senta-se na beira de um destes túmulos, afaga com as pontas dos dedos a superfície da água, tão fria e tão viva, e, por um momento, acredita que vai decifrar todos os segredos do mundo. É uma ilusão que o assalta de longe em longe, não lho levem a mal.
Sai do castelo, desce a vertente para a aldeia. Às portas estão sentados velhos e velhas, o costume português. Estas velhas e estes velhos são partes do sentido. Junta-se um homem, junta-se uma pedra, homem, pedra, pedra, homem, se houvesse tempo para juntar e contar, para contar e ouvir, para ouvir e dizer, depois de primeiramente ter aprendido a linguagem comum, o eu essencial, o essencial tu, debaixo de toneladas de história, de cultura, enfim, como no castelo os ossos aparecendo, até à formação do inteiro corpo português. Ah, o viajante sonha, sonha, mas não passa de sonhos, esquecidos não
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A estrada, abandonada já a que segue para Castelo Branco, faz uma larga curva, atravessa toda a baixa da ribeira de Alpreade, e isto dito assim não é nada, não pode representar a bruma que paira sobre os campos, as árvores, ao fundo as vertentes da Gardunha, e sobretudo a luz, a luz indefinível que é quase só o que resta da passagem dela, não sabe o viajante como explicar. Declare que não sabe, confesse que não pode.
Vem a ser a frequência com que nestas Anunciações o pintor insiste em mostrar a alcova de dormir, enquadrando-a sob um arco abatido, como neste caso, afastando pesados reposteiros, como em outros casos acontece. É verdade que nesta altura estava já Maria casada com José, mas sendo a descida do Espírito Santo incorpórea, está o leito a mais, salvo se, como ao viajante parece, não pudesse o pintor esquecer, e assim o denunciasse, que naquele lugar, em geral, são concebidos os filhos dos homens.
Apenas a convicção firme em que está de que o estilo manuelino não seria o que é se os templos da Índia não fossem o que são. Diogo de Arruda não terá navegado até às paragens do Índico, mas é mais do que certo que nas armadas seguiam debuxadores que de lá trouxeram apontamentos, esboços, decalques: um estilo de ornamentação tão denso como é o manuelino não podia ter nascido, armado e equipado, à sombra das oliveiras lusitanas: é um todo cultural colhido em terra alheia e depois aqui reelaborado. Perdoai ao viajante as ousadias.
Sabe o que ganhou: alguns quilómetros de verdadeiro deslumbramento, a floresta densa por onde a luz entra em feixes, em rajadas, em nuvens, transformando o verde das árvores em ouro palpitante, reconvertido depois o ouro em seiva, nem o viajante sabe para onde olhar. A mata de São Pedro de Muel é incomparável.
Em Alcobaça se coloca, em termos diferentes, a antiga questão de saber se apareceu primeiro o ovo ou a galinha. Quer dizer, é por se chamarem Alcoa e Baça os rios daqui que Alcobaça teve o nome, ou não tendo ainda sido batizados os rios se resolveu partir em dois o nome da terra, toma lá tu, toma lá tu.